aprimoramento - topo banner - clínica psicológica - puc-sp

BOLETIM CLÍNICO - número 20- julho/2005

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos


9. O Sintoma da Criança como Verdade do Par Familiar

No trabalho analítico com a criança, a demanda inicial geralmente é feita pelos pais ou por seus substitutos. A criança não pede para ir ao analista, são os pais que a levam ao consultório em busca de uma solução para os sintomas que apresenta. Com freqüência, a criança toma para si o papel de sintoma da família, e a função do analista consiste em ajudá-la a construir sintomas próprios. Assim, não há somente um discurso a ser ouvido, uma só fala a ser dita, uma única demanda. O analista deve se interrogar sobre o sintoma da criança e sobre o que ela representa na estrutura familiar.

Na carta que enviou a Jenny Aubry, Lacan afirmou que "o sintoma da criança está na posição de responder ao que há de sintomático na estrutura familiar. O sintoma pode representar a verdade do par familiar". Esse é o caso mais complexo, mas também o mais aberto as nossas intervenções. Impossibilitada de dizer a verdade toda, a criança se constitui como sintoma do casal parental, o que corresponde à neurose.

Neste sentido, o trabalho aqui exposto parte da afirmação do sintoma da criança como expressão da verdade do par familiar e do fantasma dos pais.

Recebo na PUC Maria, 8 anos, que foi trazida para consulta pela mãe porque desde os oito meses apresenta uma constipação crônica, ou seja, ela tem dificuldade em evacuar, retendo as fezes a ponto destas empedrarem causando um inchaço na barriga.

A paciente já foi objeto de inúmeras consultas médicas. Aos três anos estava em tratamento com sintomas de megacólon. Nesta época foram feitas várias internações com o intuito de realizar uma cirurgia. De acordo com a mãe eles internavam a paciente para fazer uma bateria de exames que poderiam confirmar o megacólon, mas quando chegava nos últimos exames o diagnóstico não era confirmado, não podendo assegurar a necessidade da cirurgia. "Se ela fizesse e não fosse o que eles imaginavam teria que usar fraldas para o resto da vida". Foi nesta época que foi colocado para a família a possibilidade deste sintoma ter uma origem de fundo emocional, daí a busca por uma ajuda psicológica.

A mãe fala que mesmo tendo passado por várias internações e duas biopsias, este foi um período de festa para a paciente. "Ela gostava de lá. Para ela era normal". Nesta época a mãe já estava separada. Ela conheceu o pai da paciente no Sesi e namorou de três a quatro anos. Ficou grávida com dezoito anos e se casou por causa da gravidez. Quando perguntada sobre este período ela comenta que teve uma gravidez tumultuada, porque estava enfrentando problemas com o marido. Ele dormia fora de casa, faltava no trabalho e muitas vezes lhe agredia fisicamente.

Quando a paciente estava com aproximadamente seis meses a mãe relata um episódio em que pediu ao esposo várias vezes que trocasse a filha, e tendo ele demorado ela vai trocá-la. Ele então pega a fralda de cocô e passa na cara da paciente, o que a fez chorar muito.

Ao analisarmos teoricamente este episódio fica claro que a mãe demanda do pai que limpe o cocô. Este ao invés de atender esta demanda faz um acting out colocando a paciente em uma posição de objeto anal do Outro. "Você é toda cocô". Esta cena é uma cena traumática porque indica a intrusão de um significante que marca o lugar da criança no Outro como objeto do gozo - um objeto anal. O que aparece aí é o gozo do pai revelando a posição da criança frente ao gozo materno, gozo originário, inscrito agora pelo simbólico.

O impacto da mãe diante da cena de horror se deve ao fato de ter seu gozo revelado, gozo no qual o filho-falo a completa. E o choro neste caso coloca a menina na posição de um sujeito a de vir e funciona como um apelo que nega: "Não sou isto que você diz que sou".

Ainda em relação à entrevista com a mãe esta fala que quando se separou estava grávida de cinco meses e a paciente tinha três anos, ambas gestações não foram planejadas e foi um choque tanto para ela quanto para o marido. O término da relação foi ocasionado por uma traição dele. Depois de um ano que tinha se separado ele foi preso (1999), acusado de seqüestro relâmpago, roubo a ônibus..."Cada um fala uma coisa. A única coisa que eu sei é que ele esta respondendo por cinco artigos".

O ex-marido ficou preso até novembro do ano passado e quando saiu da prisão foi visitar os filhos. A paciente neste dia se fechou no quarto e não saiu. Ela ficou quase quatro anos sem ver e falar com o pai. Interrogada sobre como a paciente ficou sabendo da prisão a mãe comenta que tinha um mistério. Eles falavam para ela que o pai tinha viajado e que iria voltar um dia e acrescenta: Pode ser que ela tenha escutado eu falar para alguém porque um dia ela comentou: "Oh, mãe! O meu pai não é ladrão. Neste sentido, a família recalca tanto a prisão quanto a própria condição do pai (ser ladrão).

Dolto coloca que não é tanto o confronto da criança com a verdade penosa que é traumatizante, mas o seu confronto com a "mentira" do adulto (vale dizer, o seu fantasma). No seu sintoma, é exatamente essa mentira que ela presentifica. O que lhe faz mal não é tanto a situação real quanto aquilo que, não foi claramente verbalizado. É o não-dito que assume aqui um relevo.

Através da situação familiar, a atenção deve recair na palavra dos pais e na da mãe em particular - pois veremos que a posição do pai para a criança vai depender do lugar que ele ocupa no discurso materno.

No caso de Maria o discurso da família juntamente com o fantasma materno não permite um posicionamento do pai para com ela. A avó em entrevista coloca que a família sempre incutiu na mente da paciente que ela deve ser honesta, trabalhadora e que o pai não esta junto dela porque fez coisas erradas (não foi honesto, trabalhador..). Outro aspecto apresentado que também corresponde ao fantasma materno é o medo que esta mãe tem de deixar os filhos irem para a casa do pai e a própria justificativa de que os filhos não gostam de ir. Buscando compreender a natureza do sintoma na vida fantasmática mãe-filho transcrevo o relato da mãe de Maria quanto ao medo que esta tem de polícia e o próprio comentário em relação ao sentimento da filha: "Eu tenho medo que eles estejam com o pai, aconteça alguma coisa e chega a polícia".

A mãe diz que o pai tem pouca convivência com a filha e que tem ignorado a presença desta, mas sempre que tem oportunidade de estar com o pai a mãe intervem não possibilitando a reaproximação dos dois. Em uma das sessões a paciente conta que o pai tinha ido até sua casa, mas que ela só falou oi, porque estava chovendo e a mãe pediu que ela entrasse, não convidando o pai para entrar também. Quando coloco que a mãe deveria deixar ela conversar com ele, ela concorda. Em uma outra sessão ela traz um álbum com as fotos do aniversário do irmão para me mostrar. Vendo as fotos pergunto se o pai não foi e ela diz que a mãe não deixou convidá-lo.

Quando a mãe impede a filha de falar com o pai reforça a face de pai real, a face de gozo em detrimento da face desejante, simbólica, que permitiria Maria interrogar-se sobre o desejo do Outro: o que sou para o Outro? Ao fazer este questionamento a paciente poderia se apropriar da cena traumática que revelou seu ser de gozo e nega-la, constituindo-se como sujeito deste gozo.

De acordo com Lacan, o discurso dos pais age sobre os filhos, que repetem o que ouvem de maneira eletiva. Sempre há um sujeito que, ao se posicionar diante do que ouve, trama de maneira particular sua história. Quando, durante o tratamento, é detectado o verdadeiro lugar da enunciação dos pais, desaparecem as palavras e frases que parasitavam a criança, possibilitando-lhe encontrar seu próprio discurso, que varia de acordo com sua idade no momento do trauma.

Já Maud Manonni coloca que a palavra da mãe e do pai, no universo fantasmático da criança precisa ser interrogada pelo analista, bem como a forma como o discurso da mãe apresenta o pai.

Quando recebi a paciente para atendimento a mãe relatou que iria fazer um ano naquele mês que seus sintomas tinham melhorado. Maria anteriormente tinha feito um acompanhamento terapêutico na clínica. No decorrer da entrevista a mãe associou a reincidência dos sintomas da filha à forte crise que a avó (diabética, com pressão alta) teve, tendo até mesmo, que ser reanimada com choques. A paciente convive mais com a avó, pois a mãe trabalha o dia inteiro e só volta à noite. Nas duas últimas vezes que a avó foi internada a paciente passou mal, teve febre e vomitou.

Atualmente a prisão de ventre de Maria esta associada com a presença do pai, que mora com uma outra mulher e suas duas filhas na mesma rua da paciente. De acordo com a avó sempre que ela vê o pai com as meninas prende o intestino. A presença do pai funciona como signo de gozo, em que ela é puro objeto anal do Outro.

Maria no início do tratamento apresentava uma dificuldade para se expressar frente ao analista, demonstrando uma certa passividade na sessão. Muitas vezes quando interrogada sobre o que gostaria de fazer, esta não conseguia expor seu desejo, permanecendo em silêncio e com uma certa apatia. Posteriormente Maria começou a desenhar e com o desenho trazer aspectos de sua própria conflitiva. Era comum em seus desenhos o aparecimento de um parquinho acompanhado de histórias endereçadas à presença do pai. De acordo com a família este era um lugar aonde ia freqüentemente com o pai, que era representado pela cor preta, tomada neste sentido, como o significante da ausência do pai e como aquilo que foi recalcado e esta sem palavras.

Na última sessão que tive com a paciente esta pode colocar em palavras à vontade de estar com o pai para poder lhe mostrar as fotos do aniversário de seu irmão. Maria atualmente tem falado mais nas sessões, e mesmo, expressado seu desejo de fazer uma coisa e não outra. Seus sintomas já não ocorrerem com a mesma freqüência e estão amplamente relacionados com a presença do pai (quando vê ele, prende).

Aqui cabe mencionar, que o papel da família é primordial no tratamento de Maria é preciso conseguir deles uma entrada, uma espécie de franqueamento para a intervenção no sintoma dela, que muitas vezes custa o preço da própria verdade do par familiar.

Em relação a tudo o que foi exposto, término meu trabalho lembrando Alicia Hartmann que diz que a idéia da presença dos pais indica o aparecimento de questões na dimensão do real ao longo da análise. "A criança não pode se curar da presença de seus pais. Poderá somente se colocar de maneira diferente frente à pergunta, pela castração e desejo do Outro".