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BOLETIM CLÍNICO - número 20- julho/2005

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos


ANÁLISE DO CASO CLÍNICO

Camila, 25 anos, é a filha mais velha de uma família conservadora, que, de acordo com ela, conquistou uma condição financeira privilegiada. Apesar da idade apresenta uma posição mais infantil e em alguns momentos parece tomar algumas atitudes por birra, inveja, ou simplesmente para afrontar os pais.

Conta de uma relação bem difícil com a mãe, de quem não se recorda de nenhuma preocupação em relação a ela ou de alguma manifestação de carinho. Ao contrário, relata, com algum sofrimento, insultos e agressões protagonizadas por sua mãe. Muitas de suas dificuldades serão atribuídas por ela a esta relação.

E como sabemos, a relação primal mãe -filho tem um valor fundamental para o desenvolvimento da personalidade e da estrutura psíquica do indivíduo, já que representa um modelo para as relações interpessoais que o indivíduo irá desenvolver no futuro. É possível imaginar que o relacionamento não satisfatório com o materno tenha deixado marcas profundas na relação que a paciente tem consigo mesma e com os outros.

Camila conta que na adolescência rebelou-se e tornou-se mais agressiva com a mãe, impedindo que ela pudesse machucá-la ainda mais. Nesta fase envolveu-se com drogas e começou a ter suas primeiras experiências homossexuais.

Atualmente, a paciente mora com a namorada, deixou a casa dos pais e todo o conforto que lhe era proporcionado, pois estes não aceitaram o fato de ser homossexual. Essa informação confirma que para sua família, assim como ocorre nas famílias de indivíduos identificados com o bode expiatório, o valor fundamental é estar de acordo com os padrões coletivos, e por isso, acredito que foi tão difícil aceitar uma filha homossexual.

Apesar de ter escolhido sair da casa dos pais, em muitos momentos parece se perguntar se esta foi a opção mais correta. Às vezes dá indícios de querer voltar a morar com sua família e parece se esquecer de que a convivência na sua casa já estava muito difícil, pois não a aceitavam em suas diferenças. Sofre com as conseqüências desta decisão e se ressente por se sentir excluída da família. Parece não ter consciência de que este sentimento de exclusão independe de morar junto com os pais ou não, que esta é uma questão muito mais antiga e complexa.

O sentimento de inferioridade e de rejeição está presente não só na relação com a família, mas também em outras relações. Desde pequena convive com a sensação de não se sentir parte de nenhum grupo, nem na escola; nem em ambientes de trabalho, onde não se sente à vontade com os colegas; e muitas vezes nem mesmo com o grupo homossexual, no qual não se identifica com a perversão e estereotipia das lésbicas masculinizadas e dos "bichas" que, segundo, ela, só fazem intrigas. Dessa forma, vive, como coloca Perera (1991), um profundo, angustiante e perene sentimento de não-pertencer. O sentimento de inadequação é muito constante para ela, assim como o sentimento de exclusão.

A paciente procurou psicoterapia, pois estava muito confusa, não sabendo mais o que fazer para mudar sua vida, não conseguindo mais distinguir o que era certo e o que era errado. Sentia que sua vida estava estagnada, como se o tempo tivesse parado na sua infância, que foi uma etapa traumática na sua vida, na qual viveu uma relação problemática com a mãe. Neste período instaurou-se um profundo sentimento de rejeição, que veio a abalar profundamente sua auto-estima, sua confiança nos outros e em si mesma.

Trouxe também queixas com o trabalho, no qual não se sente mais estimulada; com a própria aparência, já que se sente gorda e diferente fisicamente de sua família; com a própria família, que não apoiou sua opção sexual e sua saída de casa; e com a namorada, com quem tem mostrado muita impaciência.

Ao mesmo tempo em que foi aparecendo uma insatisfação em diversos planos de sua vida, que reforçaram a sensação de estagnação, também surgiu um desejo de transformação, de poder fazer algo para mudar sua trajetória de vida. Porém, esta vontade logo era substituída por um conformismo e por um sentimento de culpa toda vez que se queixava do comportamento dos outros. Esta alternância e contradição entre os sentimentos foram constantes no processo terapêutico.

Esta fase reflete a insatisfação da paciente com o momento atual de sua vida, e o temor pela mudança, o medo de querer algo melhor para si mesma e de se frustrar novamente. Este período é muito bem ilustrado por Perera (1991), que comenta sobre a dificuldade que o indivíduo identificado com o bode expiatório possui para se libertar dos ideais coletivos, e de mostrar os esforços criativos e espontâneos.

Camila coloca também um questionamento a respeito da própria homossexualidade e parece não se sentir totalmente segura a respeito de sua opção sexual. Em algumas sessões demonstrou o desejo de tentar compreender melhor sua sexualidade e assumiu o conflito de não saber se apenas sente repulsa pelos homens, como ela mesma declarou, ou se realmente tem atração por mulheres.

Desde o início dos atendimentos seus relacionamentos amorosos pareciam estar mais enraizados num forte companheirismo e numa ligação associada à fuga dos problemas familiares enfrentados pelas parceiras. E por outro lado, como a paciente revelou num atendimento, o lado sexual sempre apareceu como uma grande dificuldade pessoal tanto em relações homossexuais, quanto nas experiências heterossexuais que teve.

Infelizmente não foi possível avançarmos muito a respeito dessa complexa questão, entretanto acredito que este é um ponto fundamental que deve ser aprofundado por ela em seu processo de amadurecimento.

Nos relacionamentos interpessoais em geral, incluindo os amorosos, revelou sua dificuldade de aproximação das pessoas, com o toque, com o compromisso e com o aprofundamento das relações. A questão da confiança também foi colocada como mais uma problemática sua a ser trabalhada, pois desconfia a priori das pessoas que se aproximam dela, e tem o hábito de rotular as pessoas antes de conhecê-las mais a fundo. Dessa forma, acaba cortando a possibilidade de um envolvimento maior com as pessoas.

Como vimos anteriormente essa insegurança básica é proveniente de uma relação insatisfatória da paciente com a mãe, que não pôde passar um sentimento de confiança. E a dificuldade com o tocar e o ser tocado (fisicamente e emocionalmente), segundo Perera (1991), vem da própria inabilidade dos pais para lidar com o lado afetivo. Conseqüentemente, a paciente identificada com o complexo de bode expiatório desenvolveu uma dificuldade com a vinculação e o envolvimento, e, assim, acredita estar evitando novas possibilidades de frustração.

Perera (1991) lembra que para o indivíduo identificado com o bode expiatório nenhuma experiência poderá ser vivida em profundidade, assim como nenhum relacionamento com um Outro poderá desenvolver-se.

Profissionalmente também existe uma influência desse padrão comportamental, já que não consegue se fixar e se desenvolver em um emprego. Tem o costume de abandonar o cargo quando não se sente acolhida por colegas no ambiente de trabalho. Com isso, apesar de seu potencial, não consegue crescer profissionalmente e o resultado disso é que já passou por diversos empregos (registrados em carteira), sendo todas empresas restaurantes e hotéis reconhecidos e de grande porte.

Além disso, Camila parece ter a impressão de que seu fardo é muito maior do que o dos outros, e que para todos a vida é mais fácil. Isto se evidencia na relação com sua irmã do meio, que é vista como alguém que deu certo na vida, e também na rotina de sue trabalho no hotel, em que tem contato com artistas, jogadores de futebol e até prostitutas que, a seu ver, desfrutam de diversos luxos.

Aparenta estar fixada na idéia de obter sucesso de forma rápida, quase mágica, e não considera as dificuldades e sacrifícios envolvidos neste processo de se tornar alguém bem sucedido. Acredito que este desejo de poder está relacionado à vontade de provar para os outros, todos aqueles que não acreditaram nela, do que é capaz de obter sem a ajuda de ninguém. Porém, fomos nos dando conta de que dessa maneira não está conseguindo progredir e ainda é obrigada a lidar com uma grande frustração por não conseguir atingir os sonhos que tem para sua vida. Em alguns momentos a paciente é tomada pela desesperança, e chega a dizer que não vai mais esperar nada e que vai deixar a vida levá-la para onde quiser, já que seus desejos nunca se concretizam.

Também apareceu nos atendimentos uma dificuldade de não querer ir mais a fundo em nenhum assunto que era mencionado por ela. Portanto, apresentou a tendência a banalizar suas questões mais problemáticas, pois falava com descontração e ironia de assuntos sérios, e uma dificuldade de entrar em contato com a emoção, de aprofundar o entendimento sobre si mesma. Em praticamente todas as sessões mantinha um momento de descontração no qual me contava as fofocas do mundo artístico, que acaba tendo contato por trabalhar no ramo hoteleiro. Penso que o humor nesse caso aparece como uma tentativa de contrabalançar todo o sofrimento vivido.

Em uma sessão, ao apontar essa dificuldade de aprofundar e de se comprometer com o processo terapêutico, a paciente admitiu que teve que criar uma "casca", e por isso evita relembrar situações difíceis pelas quais passou.

Mostrei também a alternância que aparecia de uma sessão para outra e que matava seu desejo de transformação antes mesmo de pensar em realizá-lo. Este comportamento indica que muitas vezes a paciente é tomada pelo medo e prefere se conformar com sua realidade e não arriscar desejar algo melhor para sua vida. Além dessa insegurança profunda, o pessimismo e a desesperança também a acompanham constantemente.

Acredito que a paciente, até por uma questão de sobrevivência psíquica, acabou desenvolvendo defesas, que podem ser consideradas saudáveis e que serviram como proteção por muito tempo.

Assim, como disse, tentou apagar de sua memória todas as lembranças desagradáveis da infância. Mas percebemos que tais recordações estavam apenas adormecidas para virem à tona num momento mais oportuno. Tudo indica que essa defesa estava impedindo que pudesse progredir na vida e para isso seria necessário suspender no tempo certo essa barreira para poder entrar em contato com o sofrimento vivido, que faz parte da sua história.

Outra defesa que desenvolveu foi a de auto-suficiência, pois sempre se virou bem sozinha, preferindo não depender dos outros para nada. Esta proteção está ligada a desconfiança que sente na relação com os outros. Em sua família tem a idéia de que irão pedir algo em troca caso venha a pedir a ajuda deles e que irão apontar a todo o momento a sua fraqueza.

Porém, a independência exacerbada acaba reforçando ainda mais sua exclusão dos grupos sociais, na medida em que recusa a aproximação e o envolvimento das pessoas com suas questões. Mas esta atitude defensiva não evita o sofrimento, porque percebo que a paciente também sofre com a reação das pessoas que obedecem ao seu pedido de não se aproximar. Esta posição pode ser questionada, pois ao mesmo tempo em que tenta não criar expectativas sobre os outros, também deixa de lado a intensidade e a emoção da vida, que envolve os riscos, vivências de prazer e de sofrimento.

Entretanto, na sessão seguinte, após a exposição da percepção dessas defesas e o questionamento sobre a funcionalidade destas no processo terapêutico, a paciente revelou o impacto que esta colocação teve sobre ela. Disse que ficou muito triste e que pensou em desistir da terapia, pois não estava disposta a se abrir e sofrer com o que tinha para me contar. Mas ao contrário com um grande esforço decidiu me contar fatos que marcaram sua vida.

Este pode ser considerado um marco neste atendimento, que deu início à segunda fase do processo, no qual ela começou a trazer suas reais dificuldades, seus medos, e todo seu sofrimento.

A partir daí pôde falar sobre seus traumas de infância que estão relacionados a situações vividas com sua mãe. Contou de insultos que ouvia de sua mãe quando era pequena, principalmente no que se refere a sua aparência. O que mostra mais uma vez o quanto os ideais coletivos são importantes para sua família, em especial para sua mãe que demonstra dificuldade em aceitar uma filha que não está de acordo com os padrões estéticos que a sociedade impõe.

Esta percepção da mãe foi passada para filha que até hoje não consegue se sentir bem com sua aparência física, e se sente gorda e feia. Este ideal perfeccionista, de acordo com Perera (1991), reforça ainda mais o sentimento paralisante de fracasso e rejeição. Ainda segundo a autora, o foco nesta parte do corpo, que a pessoa sente como inadequada, acaba abrigando o sentimento de deficiência, que, entretanto, é algo muito maior do que apenas uma sensação física.

As agressões tanto físicas quanto psíquicas que sofreu instauraram um sentimento de rejeição a ponto de se questionar na infância se realmente era filha legítima de seus pais, já que se considera diferente fisicamente de todos da família.

Comentou sobre uma sensação de que pode ter sido violentada quando pequena, embora não saiba como e quem poderia ter feito isso. Percebemos que as atitudes da mãe com ela, que indicavam uma forte rejeição, muitas vezes foram vividas como um abuso, uma violência, mas não necessariamente sexual. Neste momento trouxe também suas dificuldades sexuais, sua falta de desejo sexual tanto por homens como por mulheres.

Essas revelações, que foram favorecendo a compreensão do caso, também foram anunciadas por seus sonhos através das "bombas" que apareceram. Apontavam para o risco e o sofrimento que poderia vir junto com esses temas mais sombrios, mas também mostravam o lado positivo, a "recompensa" decorrente desse aprofundamento.

Entretanto, nesta etapa também ficou mais forte a sua ansiedade, e a pressa para compreender-se melhor e para sentir-se melhor. Em algumas sessões deixou claro que somente os atendimentos não estavam dando conta de sua ânsia e passou a buscar apoio em sites, livros, conversas com amigos e com um médico acupunturista.

Até mesmo na semana de férias em julho continuou com o trabalho psíquico através de um livro que comprou e que falava sobre conceitos junguianos, como ego e sombra. Gostou muito do livro "Ao Encontro da Sombra" e ao mesmo tempo em que foi se identificando com o que lia, por outro lado ia ficando cada vez mais triste, tendo que pular alguns trechos que a faziam sofrer.

Comentou, na sessão após as férias, que achava que sua sombra era muito grande, já que sentia que carregava a sombra de sua família. Começou a responsabilizar sua mãe por isso e conforme lia ia ficando com mais raiva dela.

O ressentimento também foi dirigido a seu pai que, segundo ela, nunca foi capaz de fazer nada para impedir a agressividade da mãe direcionada principalmente a ela, e que também nunca soube dar afeto para as filhas, apenas coisas materiais.

A decepção com os pais se intensificou quando sua família se mudou para Manaus, onde já mora sua irmã do meio. Reviveu neste momento um sentimento de abandono, no qual chegou a se perguntar: "E eu, poxa?". Sentiu-se frustrada, pois até então havia uma proposta de sua família para ajudá-la e estavam insistindo para que ela fosse morar lá com sua irmã, e sem mais nem menos todos foram, enquanto ela ficou.

A paciente tem uma relação de competição com esta irmã, e enquanto ela fica com o lugar de boa filha na família, de bem sucedida, Camila parece ocupar um não - lugar. E sente que enquanto sua irmã atrai sua família para perto, ela os afasta.

Os conteúdos de agressividade logo foram substituídos por um sentimento contraditório de culpa, de compreensão com os possíveis motivos que levaram seus pais a agirem dessa forma com ela.

Na última sessão que veio, contou que já estava melhor, que começou a fazer acupuntura, que parou com suas leituras e que agora estava lendo um livro de budismo. Colocou que estava bem com a parceira, e que os pais estavam ajudando a comprar um apartamento para ela. Além disso, disse que estava mais tranqüila, conseguindo falar mais dos seus incômodos. E depois desse dia não veio mais dizendo que não conseguiria mais conciliar o horário da terapia com sua escala no trabalho.

Avalio positivamente o processo na medida em que propiciou que muitas questões fossem trazidas à consciência e que fossem estabelecidas várias associações que favoreceram para uma melhor compreensão de seus problemas.

Acredito que foi necessário parar a terapia, pois não estava agüentando entrar em contato com tantas lembranças dolorosas de rejeição e abandono, e com o ressentimento com os próprios pais. A culpa por esses sentimentos parece ter tomado uma dimensão muito grande e talvez por isso tenha optado por terminar o processo terapêutico de forma tão abrupta. Com isso, fica comprovado o quanto realmente é difícil expressar hostilidade pelos pais perseguidores devido ao forte vínculo que é estabelecido com eles.

Preferiu ficar com uma idéia mais confortante de que estava tudo bem e talvez com uma esperança de que a atitude dos seus pais ou de sua namorada poderia mudar. E é provável que esta tenha sido uma proteção necessária, uma forma do inconsciente mostrar que ainda não é o momento para revisitar esses aspectos de sua vida.

Isto porque seus sonhos já apontavam para o risco de entrar em contato com esses fortes conteúdos. Um deles indicou através de uma corda frágil que a segurava num penhasco que sua estrutura psíquica era frágil e que poderia se romper. Mas por outro lado também mostrava que era importante abordar esses temas mais dolorosos, pois seria recompensada com algo positivo e com uma maior segurança e tranqüilidade na sua vida. Por isso, acredito que, em algum momento, seja importante para a paciente retomar o processo terapêutico, pois poderá receber bons frutos deste trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No caso analisado, acredito que muitas das dificuldades atuais de Camila sejam decorrentes de uma relação primal não satisfatória. Chegou a se questionar em algumas sessões se realmente foi desejada pelos pais ou se é filha legítima deles. Vejo esta questão como uma tentativa de tentar entender o porquê de tanta rejeição e abandono.

O olhar dos pais, os desejos que possuem para os filhos, até mesmo antes de nascerem, são captados inconscientemente por eles que tentam de alguma forma satisfazer essas expectativas.

Porém, no caso analisado, a paciente parece ter sentido que não conseguiria corresponder às expectativas dos pais e talvez por isso tenha trilhado caminhos que são condenados por eles, tornando-se assim um bode expiatório para a projeção da sombra dos outros. Assim, não só captou a sombra familiar, como se identificou com esses conteúdos sombrios.

A paciente parece ter assumido de fato a concepção que os pais tem sobre ela, e por isso encontra-se presa ao padrão coletivo, ao perfeccionismo que acaba tornando-a muito mais exigente consigo mesma e exaltando os sentimentos de incapacidade e de rejeição toda vez que vive um fracasso.

Talvez por ter recebido desde muito cedo uma imagem negativizada através da mãe, a paciente tenha tanto problema com sua auto-imagem e acredito que até uma distorção de sua autopercepção.

A dificuldade com a confiança também foi outra herança desta relação primal conturbada, já que é neste relacionamento que este atributo irá se desenvolver. A paciente naturalmente desconfia das pessoas, prefere manter uma relação superficial com os outros e se sente muito à vontade sozinha com seus pensamentos e fantasias. Mas por outro lado se ressente desse isolamento, e muitas vezes, em momentos de confusão, encara o afastamento das pessoas como abandono e não como algo que muitas vezes é ela mesma que provoca.

O medo é um sentimento que a acompanha e ajuda a reforçar a sensação de que não está progredindo na vida. Prefere não correr o risco de ter a possibilidade de reviver as frustrações e por isso evita o envolvimento com as pessoas e o aprofundamento das relações.

Além de interferir nos vínculos afetivos, este traço de personalidade também acaba impedindo o seu desenvolvimento profissional, já que não consegue se fixar em um emprego e prefere pedir demissão sempre que não se sente acolhida e valorizada pelos colegas de trabalho.

A inveja da vida alheia é outro fator que dificulta o seu desenvolvimento pessoal, pois acaba se espelhando na imagem fantasiosa que tem da vida dos outros, cercada de luxo e com poucos sacrifícios, e fundamenta seus sonhos nesse padrão. Dessa forma, busca atingir o sucesso de forma rápida, ao invés de batalhar aos poucos nesse processo de obter reconhecimento profissional. E, assim, se decepciona ao perceber que não evoluiu tanto quanto desejava.

Portanto, as marcas deixadas na paciente por esta relação inicial realmente foram muito profundas e afetaram suas relações em geral, o sentimento de confiança básica (em si mesma e nos outros), e sua auto-estima.

Entretanto, não cabe neste estudo e acredito que nem para a psicologia qualquer tipo de julgamento a fim de responsabilizar alguém pelo que se passou. Penso que o mais importante é compreender não só toda essa sua história pessoal, como poder fazer algo a partir disso.

Quando a paciente procurou psicoterapia, tudo levava a crer que as defesas que a paciente teve que criar para se proteger do sofrimento não estavam mais servindo como antes, e estavam provocando uma sensação de estagnação diante do complexo do bode expiatório, já que muitos aspectos (profissional, afetivo, etc.) não estavam fluindo bem. Camila expressou essa sensação como se estivesse paralisada nas tristes lembranças de sua infância, nas agressões de sua mãe para com ela e na apatia de seu pai em relação a essa situação.

Dessa forma, a paciente parece experimentar a vivência da vítima de forma defensiva e não criativa, que poderia levar a uma elaboração e a um crescimento pessoal através da compreensão do complexo que a domina.

Portanto, é necessário que possa sair deste estado de estagnação, no qual se encontra, e desistir da ilusão e da expectativa de voltar no tempo para ter uma família diferente mais amorosa, compreensiva e dedicada. Portanto, é importante que possa se conformar com aquilo que sua família é, pois assim acredito que poderá realmente seguir a sua vida e tornar-se menos determinada por essas situações traumáticas que marcaram na infância.

Penso que para um crescimento pessoal significativo, como coloca Cowan (1994), seria fundamental entrar em contato com a experiência de vítima, com o sacrifício, para poder elaborar suas vivências dolorosas. Ainda de acordo com a autora, mesmo que não se encontre um motivo que justifique a história de agressões pela qual a vítima passa, é importante vivenciar o sofrimento como algo dotado de sentido.

Torna-se necessário para a paciente aceitar a figura da vítima que está constelada em sua psique, e encontrar um sentido pessoal para essas vivências dolorosas em sua vida. Para tanto, será importante abrir uma brecha nas defesas que teve que construir na sua vida, deixando um pouco de lado a proteção que desenvolveu contra qualquer possibilidade de frustração. Assim, percebo que é importante para a paciente rever as etapas difíceis que já viveu e intensificar suas relações, pois, dessa forma, poderá se arriscar mais e desfrutar mais dos prazeres da sua vida, e não da dos outros.

Acredito que, em algum momento, pode ser igualmente importante para a paciente entender e aceitar as dificuldades e limites de sua mãe pessoal para, então, poder perdoá-la, já que, por enquanto, esta é responsabilizada por todos os males que interferem no seu desenvolvimento. E creio que este perdão pode se dar através do reconhecimento do próprio lado acusador e agressor que também existe nela mesma.

Por esses motivos penso que ainda há muito trabalho a fazer, e a terapia poderá ter um valor fundamental para que Camila possa lidar melhor com estas questões que ainda não foram totalmente elaboradas e compreendidas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COWAN, Lyn Christine. A Vítima. In: DOWNING, Christine (org.) Espelhos do Self: As Imagens Arquetípicas que Moldam sua Vida. São Paulo: Cultrix, 1994, p. 216 - 225.
NEUMANN, E. A criança - Estrutura e Dinâmica da Personalidade em Desenvolvimento desde o Início de sua Formação. São Paulo: Cultrix, 1980.
NEUMANN, E. Psicologia Profunda e Nova Ética. São Paulo: Paulus, 1991.
PERERA, Sylvia Brinton. O Complexo de Bode Expiatório. São Paulo: Cultrix, 1991.
SANFORD, John A. Mal, o Lado Sombrio da Realidade. São Paulo: Paulinas, 1988.
ZWEIG, Connie & ABRAMS, Jeremiah (orgs.). Ao Encontro da Sombra: O Potencial Oculto do Lado Escuro da Natureza Humana. São Paulo: Cultrix, 1994.