Na elaboração de um relato sucinto da construção da democracia na PUC-SP, no período 1964-88, optou-se por deixar que protagonistas desse processo expusessem suas opiniões, a fim de que se evitasse, tanto quanto um breve texto como esse permite, o risco da parcialidade com as diferentes posições/lideranças que participaram desse processo. Por essa razão, os textos que se seguem expressam, livremente, as opiniões de seus autores, mesmo que divergentes entre si, exatamente para refletir a riqueza do debate nesse período.
Pus os pés na PUC-SP pela primeira vez em 1968. O grupo de teatro TUCA voltara do Festival Internacional de Teatro Universitário de Nancy com o Prêmio por sua montagem de “Morte e Vida Severina”. Fui assistir a essa apresentação no retorno do grupo. Uma noite memorável. Eu era estudante calouro de Filosofia numa Faculdade particular, dos jesuítas. Decidi: quando concluísse meu curso, iria fazer Pós-Graduação na PUC-SP.
Assim foi. Em setembro de 1972 vim fazer minha inscrição para a seleção do Mestrado em Filosofia da Educação. Aqui, fiquei sabendo que o Ciclo Básico, recém-implantado, estava recrutando professores para atender a sua demanda de ampliação. Inscrevi-me aí também e fui aprovado em ambas as seleções. Assim, iniciei as atividades de docente no Ciclo Básico em fevereiro de 1973 e o mestrado em março.
O Ciclo Básico era um dispositivo da Reforma Universitária implantada pelo regime militar (Lei 5540/68). Mas na PUC-SP, a comissão (composta por José Nagamine, Joel Martins, Geraldo Pinheiro Machado e Casemiro dos Reis Filho) encarregada de implantar a Reforma deu-lhe um novo sentido. Referenciada pelo Documento da Conferência Episcopal Latino-Americana intitulado “Missão da Universidade Católica na América Latina” (Buga, Col., 1967), a Comissão desenhou um projeto dentro de uma visão política democrática de universidade, definindo como sua missão realizar uma universidade de qualidade, adotando um conceito ampliado de formação profissional, com métodos pedagógicos inovadores, com gestão democrática, tendo como apoio dois polos institucionais de inovação: o Ciclo Básico e a Pós-Graduação. A inovação no Ciclo Básico se mostrava em: trabalho integrado das disciplinas comuns (os professores atuavam em interequipes); acompanhamento contínuo e integrado dos alunos (suprimindo-se o sistema notas para avaliação); avaliação conjunta e contínua dos alunos, com sentido formativo; apoio na monitoria de alunos dos anos mais avançados; e diversos outros dispositivos pedagógicos inovadores.
Em meu mestrado eu tratava de alinhar minha formação originariamente tomista, assimilada na graduação com os jesuítas, com a fenomenologia vinda uma parte dos meus professores formados em Louvain (Antônio Joaquim Severino e Newton Aquiles Von Zuben) e Québec (Geraldo Tonaco), e com o empreendimento nos estudos marxistas de meu orientador Demerval Saviani. Encontrei uma saída que alinhavava uma porção de cada uma dessas três tendências: a filosofia de Enrique Dussel. Com uma visão radicalmente democrática e popular, Dussel buscara, no final dos anos 1960, construir uma “filosofia latino-americana”; agora, desde 1972, tratava de construir uma filosofia da libertação latino-americana e analogamente mundial. Fazia parte de seu empreendimento situar a educação (que ele designava de “a Pedagógica”) nesse projeto político-filosófico. Escolhi dedicar-me a esse tema para meu mestrado: a pedagógica de Enrique Dussel.
O Grão Chanceler da PUC-SP, Dom Paulo Evaristo Arns, já outorgava total autonomia acadêmica à PUC-SP para desenvolver seus projetos. Com a nomeação da Profa. Nadir Kfouri para o cargo de Reitora (1976-1980), esse projeto de autonomia se consolidou. A PUC-SP definia democrática e autonomamente seu rumo acadêmico. A Profa. Nadir (signatária do acima referido documento de Buga, 1967), empenhava sua biografia nesse inovador projeto de universidade.
Nosso grupo de professores do Ciclo Básico, cerca de 160, na maioria jovens recém-formados, politicamente entusiasmados na tarefa de reconstrução da democracia no País, tratávamos de realizar no âmbito institucional o que de melhor visualizávamos para o futuro do País. Com esse espírito, em 1976 atuamos decisivamente para a fundação de uma entidade representativa dos professores: a APROPUC. Assinei a ata de fundação da entidade, mas não aceitei participar de sua primeira equipe gestora, pois tinha em mãos a concessão de uma Bolsa de Estudos imediata para a Universidade de Genebra que, finalmente, lamentavelmente, foi adiada em um ano, para ter início apenas em 1977.
Entretanto, em julho de 1977, a PUC-SP acolhe a 29a Reunião Anual da SBPC que havia sido proibida pelo regime militar. Entendo que este gesto de coragem democrática e autonomia universitária tornou-se o principal emblema do projeto de universidade inovadora a que a PUC-SP se propunha. Em 22 de setembro, buscando reconstruir a UNE, dezenas de estudantes vindos de todo o País realizam no campus da PUC-SP, clandestinamente, o III Encontro Nacional de Estudantes, que também havia sido proibido pelo regime militar, não obstante uma numerosa tropa de militares da PM paulista encontrar-se em torno do campus sede da Rua Monte Alegre. À noite, cerca de 80 professores reuniram-se em um auditório do prédio Novo para acompanhar os acontecimentos decorrentes do cerco policial à universidade. Juntamente com o professor Nicola, eu coordenava aquela reunião. Ao mesmo tempo, em Ato Público defronte o TUCA, cerca de 2000 estudantes se reuniram e aplaudiram entusiasticamente ao saberem da realização do Encontro Nacional à revelia dos militares. A consequência foi instantânea: o Coronel Erasmo Dias e sua tropa lançam bombas de efeito moral e invadem a universidade. Duas alunas são gravemente feridas por bombas. Os alunos em massa entram no campus e sobem as rampas do prédio Novo para se proteger. Nicola e eu, ao percebermos que os militares vinham atrás, temendo por fatalidades, com alunos encurralados na pérgola do prédio, descemos a rampa para tentar deter os militares. Fomos recebidos por cassetetes. Cerca de 1500 alunos e professores fomos detidos no Estacionamento em frente ao TUCA. A Reitora Nadir Kfouri, acompanhada pelo Pe. João Edênio Valle, seu Vice-Reitor Comunitário, enfrenta o Coronel Erasmo Dias, em frente ao Estacionamento, e o repreende pela invasão. Eu estava bem perto da cena. O Coronel diz: “pagaremos todo o prejuízo material”; a Reitora responde: “há prejuízos que não se pagam, Coronel”. Já de madrugada, cerca de 800 alunos foram levados de ônibus para o Batalhão Tobias de Aguiar, onde foram fichados. Cerca de 40 alunos foram enquadrados na Lei de Segurança Nacional. Quando retornamos à universidade, no dia seguinte, encontramos “pixada”, na sala dos professores da disciplina PFTHC (Problemas Filosóficos e Teológicos do Homem Contemporâneo), do Ciclo Básico, sobre o feltro verde do nosso quadro de avisos, em giz branco, em vários pontos, a sigla CCC - Comando de Caça aos Comunistas.
Duas semanas após, embarco para Genebra, onde permaneceria por um ano, frequentando o curso Internacional de Especialização em Educação e Desenvolvimento do Terceiro Mundo, na Universidade de Genebra, em parceria com o Conselho Mundial de Igrejas. Ali conheci Paulo Freire e, por contingências da situação, ajudei-o frequentemente, fazendo a revisão de seus escritos, especialmente do seu livro Cartas à Guiné Bissau.
No ano seguinte, 1978, retorno a minhas atividades docentes na PUC-SP, concluo minha Dissertação e a apresento publicamente em maio de 1979. Em minha banca, Demerval Saviani (orientador), Rubem Alves e João Edênio Valle.
Em 1979, assumo a Diretoria Regional Sudeste (SP, MG, RJ e ES) da ANDES – Associação Nacional de Docentes do Ensino Superior, de cuja fundação eu participara ao lado de outros professores da PUC-SP, como Aloisio Mercadante, Laurindo Leal Lalo Filho, Maria Amália Andery, Tereza Maria Pires Sério, e outros colegas de outras universidades, como Luis Pinguelli Rosa, Newton Lima Neto, Carlos Estêvão Martins, Baldijão etc. A ANDES tinha a pretensão de vir a tornar-se um Sindicato Nacional de Professores do Ensino Superior. Sua visão estratégia era a construção de um “padrão único” de universidade no País, de qualidade política, social e acadêmica, democrática, autônoma, pública, laica, gratuita, universal. Os professores da PUC-SP cumpriram importante papel nesse projeto.
Em1980, findando o mandato da Reitora Nadir Kfouri, muitos de nós a buscávamos, tentando convencê-la a se apresentar para um novo mandato de Reitoria. Tudo era favorável a um salto de qualidade institucional: realizar a primeira eleição direta para Reitor de universidade brasileira. A Prof. Nadir aceitou, e nós, da APROPUC, tomamos a dianteira de fazer a sua campanha. A principal peça da campanha era a foto da Profa. Nadir, ao lado do Prof. Edênio, enfrentando o Coronel Erasmo Dias, na noite da invasão. Não haveria imagem mais emblemática para expressar o projeto de universidade no qual ali se investia. Profa. Nadir foi eleita para novo mandato (1980-1984). Ato contínuo, convocou eleições diretas para todos os cargos de representação junto aos Conselhos gestores da universidade. Candidatei-me como representante dos professores do Centro de Ciências Humanas junto ao CONSUN e fui eleito, tendo como suplente o Prof. Sérgio Luna. Pouco depois, fui nomeado pela Reitora para dirigir o Escritório de Projetos e Convênios da universidade, encarregado de articular todos os projetos interinstitucionais da PUC-SP, nacionais e internacionais, assim como buscar recursos externos para projetos de pesquisa e extensão da universidade.
Mas a Reitora convocou eleições diretas também para todos os cargos de direção acadêmica na universidade. No caso, inclusive o de Coordenador Pedagógico do Ciclo Básico. Depois de oito anos de acúmulo de experiência profissional como docente daquela unidade, decidi apresentar-me como candidato à sua coordenação. Outra candidatura se apresentou, com diferenças pequenas de programa entre uma e outra, e a eleição produziu uma divisão entre o conjunto de professores do Ciclo Básico. Venci a eleição, fui nomeado Coordenador para um mandato de dois anos, e empenhei-me em refazer a unidade da unidade, no que fui razoavelmente bem sucedido. É desnecessário ressaltar a importância política que então o Ciclo Básico cumpria na universidade. Enquanto isso, repercutia no País a experiência da “democracia na PUC-SP”. Por força de minha militância na APROPUC e como Coordenador do Básico, compareci em várias universidades do País para relatar e refletir sobre o processo de democracia na nossa universidade (Universidades Católicas de Goiás, Pelotas, Salvador, Recife, UFMT, UFCG, UFRJ, UFES, entre outras). Na Universidade Mackenzie fui acossado inclusive fisicamente por grupos de estudantes de direita que bradavam “Mackenzie não é PUC!”. Tumultuaram a palestra, que teve que ser interrompida e suspensa por precaução. Saí do recinto escoltado por estudantes moças, pois, segundo os organizadores, os estudantes de direita não ousariam agredir fisicamente as moças... Fiquei sem entender, mas funcionou, e evadi-me do campus com segurança. Mesmo com tropeços, a PUC-SP se fazia presente no País e alimentava análogos ideais de inovação democrática nas universidades.
Como Coordenador Pedagógico do Ciclo Básico eu tinha assento como membro nato no CEPE, ao mesmo tempo que participava como representante docente no CONSUN. É desnecessário destacar quanto de novos projetos de adensamento da qualidade acadêmica da PUC-SP se desenhavam e se decidiam naqueles conselhos superiores, naquele fértil período. Tragicamente, porém, a crise econômico-financeira da universidade se intensificava, e boa parte dos projetos acadêmicos se viam sacrificados por falta de recursos. A crise econômico-financeira estava menos relacionada a eventuais disfunções de gestão e mais à mudança do modelo sistêmico de financiamento das universidades particulares no País. No modelo das décadas anteriores as universidades particulares de qualidade podiam contar com aporte de substantivos recursos do Governo Federal para seus projetos de qualidade acadêmica, equipamento de laboratórios etc. Esses recursos passaram a minguar já nos anos 1970. Essa míngua das verbas públicas para a PUC-SP, contraditoriamente, era defendida com veemência por notáveis professores da própria PUC-SP do lado esquerdo do espectro político (“verbas públicas exclusivamente para universidades públicas”). Para eles os projetos estratégicos de avanço das políticas de esquerda no País se sobrepunham ao projeto local de uma universidade da Igreja Católica, conquanto que de qualidade.
Em 1981 inscrevi-me e fui selecionado para compor a segunda turma de Doutorado em Filosofia da Educação da PUC-SP, mais uma vez sob a orientação do Prof. Demerval Saviani. Meu projeto de pesquisa expressava o impacto que sobre mim produzia toda aquela experiência de profissional e militante político em prol de um projeto de universidade democrática, autônoma, de qualidade: comprometi-me a pesquisar as origens do projeto da Igreja de criação de universidades católicas no Brasil. Eu queria captar e compreender a inteligência estratégica daquele projeto e, dentro dele, compreender a história da PUC-SP.
Não obstante a crise econômico-financeira da PUC-SP, em 1982 a Reitora Nadir Kfouri lança um projeto de reforma do Estatuto da universidade, a ser elaborado de modo democrático: a chamada “Constituinte” da PUC-SP. Alguns de nós argumentamos que a expressão mais adequada teria sido “Instituinte”, mas a analogia com a desejada nova Constituição democrática do País, pós-regime militar, se impôs. Fui nomeado membro da Constituinte, na condição de Coordenador do Ciclo Básico. E compus a Mesa Diretora dos trabalhos, então presidida pelo Prof. Antônio Joaquim Severino, Vice-Reitor Acadêmico. A Constituinte foi profícua na formulação de propostas. O grupo de docentes do Ciclo Básico articulou-se para apresentar uma proposta de Estatuto, que veio a ser inscrita sob o título de “Projeto 11”. Nossa ênfase era na articulação radical entre ensino, pesquisa e extensão-serviços, adoção de alguns dos princípios metodológicos do Ciclo Básico para toda a universidade, interdisciplinaridade, adoção do conceito ampliado de “formação profissional”, entre outros aspectos.
Na reta final os projetos buscaram se aproximar, construindo alianças, de modo que no fim do processo o que se teve foi um projeto de Estatuto bastante consensual em seus fundamentos, embora longe de ser unânime. Entretanto, a Fundação São Paulo não aprovou o teor do novo Estatuto no que se referia à mudança da identidade católica da universidade; muitos outros pontos teriam sido consensuais, mas o processo estagnou politicamente e o novo Estatuto acabou não sendo enviado ao MEC para homologação.
Em 1983 foram realizadas eleições para a direção da APROPUC. Aloisio Mercadante, Maria Amália Andery, Márcio Percival (Peixe) e eu nos apresentamos com a proposta de composição de uma Presidência Colegiada, que foi aceita e eleita para um mandato de dois anos. O principal de nossa plataforma era contribuir para consolidar a democracia na PUC-SP articulando ações e militância com outras associações de professores de outras universidades públicas.
Em 22 de setembro de 1984, exatos sete anos após a invasão da universidade pela tropa do Coronel Erasmo Dias, um incêndio criminoso destruiu o TUCA. Eu morava próximo à universidade e acudi imediatamente. Uma cena me permanece cristalizada na memória até hoje: Prof. Salma Muchail, Profa. Leila Bárbara e eu, postados no meio da Rua Monte Alegre, diante do Teatro em chamas, paralisados de comoção. “Meu sentimento é de que estão queimando a minha casa”, respondi a um jornalista da Folha de São Paulo que me abordou. A APROPUC se movimentou, coletamos centenas de moções de solidariedade e de apoio político; intensificamos a divulgação do fato por toda a mídia. Os autores do crime nunca foram descobertos, não obstante o Secretário de Segurança do Estado ser, na ocasião, um professor da casa, o Prof. Michel Temer.
Em novembro de 1984 findaria o mandato da Reitora Nadir Kfouri e a PUC-SP entrou em novo período de intensificação de sua vida política. Luiz Eduardo Wanderley e Lucrécia D’Alessio Ferrara apresentaram-se como candidatos. Estando próximo do Prof. Wanderley, dediquei-me à sua campanha, tendo assumido a sua coordenação política. Tendo ele sido eleito, convidou-me para assumir a Vice-Reitoria Administrativa, que era o cargo mais espinhoso da Reitoria. Essa tamanha responsabilidade não estava em meus planos, mas aceitei-a. Montamos nossa equipe, que incluiu dois futuros ministros de Estado: José Eduardo Cardozo como chefe de Gabinete do Reitor e Guido Mantega como meu adjunto na Vice-Reitoria Administrativa.
O período que se seguiu foi dos mais difíceis para a vida da PUC-SP. De partida, um novo fato político preocupante: em 14 de dezembro de 1984, duas semanas após a posse da nova Reitoria, novo incêndio criminoso no TUCA. De menores proporções, mas não menos preocupante dada a reincidência do ato de terror.
Administramos a falta de recursos ao longo de 1985 até que em 28 de fevereiro de 1986 o Presidente Sarney e seu Ministro da Fazenda Dilson Funaro assinam um decreto baixando o Plano Cruzado, que congelou os preços dos bens e serviços vigentes no dia anterior. Para a PUC-SP esse Plano foi um desastre ainda maior sobre suas já combalidas finanças, pois a Reitoria já havia negociado o reajuste salarial dos professores e funcionários (em tempos de inflação descontrolada) e aguardava autorização do MEC para repassar para as mensalidades dos alunos esse índice. Resultado: salários congelados em alta; mensalidades congeladas em baixa. Uma diferença da ordem de 30% no orçamento. Para agravar: grupos de alunos passaram a não pagar suas mensalidades, preferindo arcar com a multa de atraso que era muitíssimo inferior ao que aferiam aplicando no mercado financeiro de over-night. A PUC-SP chega à beira de uma falência irreversível. Em acréscimo ao pesado ônus político e administrativo a gerir internamente, fomos a campo buscar um empréstimo que nos permitisse quitar as dívidas bancárias de curto prazo e alongar o prazo de nossas outras dívidas. Conseguimos depois de imensos esforços um empréstimo junto ao Fundo de Apoio Social – FAS, da Caixa Econômica Federal, o qual deu sobrevida de mais uns poucos anos à universidade. Era necessário e urgente repensar estrategicamente o futuro da PUC-SP enquanto organização. Propusemos, e o Conselho Universitário aprovou o projeto de um Congresso Universitário para discutir e apontar caminhos de saída estratégica para o futuro da PUC-SP. No bojo desse processo, três propostas se apresentaram: uma em prol da “Estadualização”, outra em prol da “Publicização” (que era a nossa proposta de Reitoria) e outra em prol de uma “Fundação Mista”. Após discussões, as duas últimas propostas se fundiram. Levadas a plebiscito as duas propostas restantes, venceu a primeira, em defesa da “Estadualização”. Mas o governo do Estado de São Paulo não se mostrou interessado em assumir o ônus da PUC-SP, aceitava apenas incorporar o núcleo da Pós-Graduação e um ou outro curso. Por outro lado, Dom Paulo declarou-se contrário ao desfazimento da identidade da universidade católica. O resultado é que, sem viabilidade, a proposta de Estadualização estagnou e se desarticulou.
As disputas políticas internas abalaram muitos dos projetos acadêmicos em curso na universidade. Entre eles, o Ciclo Básico, que foi extinto pelo Conselho Universitário em 1987, sendo sua carga horaria absorvida pelas Faculdades mediante projetos pedagógicos específicos de cada uma.
Em 29 de novembro de 1988 nossa equipe entrega a Reitoria à recém-eleita nova Reitora Profa. Leila Bárbara. As finanças estavam parcialmente equacionadas no curto prazo, os salários estavam relativamente compatíveis com o mercado das instituições de qualidade, os laboratórios e Faculdades estavam relativamente bem equipados. Mas para o médio e longo prazo a PUC-SP continuava sendo uma incógnita, com mais chances de insolvência do que de solução.
Durante o período da nossa Reitoria (1984-1988) eu aliviava meus pesadelos de responsabilidade administrativa com saídas a cada 2-3 meses, retirando-me cada vez por uma semana, para dedicar-me à conclusão de meu doutorado. Contratei por minha conta um auxiliar de pesquisa para me ajudar no levantamento de documentação, posto tratar-se de uma pesquisa fortemente bibliográfica e documental. Em início de 1989 concluí minha tese, intitulada: “Universidade Católica no Brasil: elite intelectual pela restauração da Igreja”. A tese era que a Igreja no Brasil já desde a Questão Religiosa (1873), até a ida de Dom Leme para a arquidiocese do Rio de Janeiro (1921) alimentara um ideal inicialmente vago de restauração da Cristandade no País. Após 1921, mediante as ações articuladas e estrategicamente inteligentes do futuro Cardeal Leme, na capital da República, o projeto ganha novo contorno, por entrar agora na disputa pela hegemonia cultural do País, pelo caminho da formação de uma elite cultural católica em universidades católicas. A essas alturas, porém, minha decepção com os caminhos trilhados pela PUC-SP, sobretudo dada sua precária condição econômico-financeira, despotencializaram minha crença num projeto de universidade diferenciada, tal como imaginávamos no final dos anos 1970 e começo dos 1980. Mas a decepção vinha também do lado dos resultados da própria pesquisa, que me corroborou as evidências do forte caráter corporativo da instituição Igreja e a enorme distância entre seu discurso universalista e suas práticas de interesse institucional, ademais da sua crônica e fundamental dependência do seu sentido histórico centralmente definido pelo Papado.
Mas já ao final de 1988, Luiza Erundina de Sousa havia sido eleita Prefeita de São Paulo. Mulher, nordestina, de origem popular, de esquerda. Tinha tudo para dar errado na gestão da cidade mais rica e mais conservadora do País. Mas quem teria autoridade política para dizer-lhe que seu projeto era inviável? Erundina convocou notáveis intelectuais, militantes, gente de todas as latitudes políticas do campo de esquerda e centroesquerda. Como ex-professora da PUC-SP, daqui recrutou Paul Singer para ser seu Secretário de Planejamento, cumprindo a função de uma espécie de “primeiro secretario” com função de articular a ação de governo. Paul Singer me convidou para auxiliá-lo como seu Assistente de Gabinete justo para essa tarefa de coordenação da ação do Governo. Meses depois, eu seria deslocado para assumir a Chefia do Gabinete da Prefeita e acumularia esse cargo com o de Secretário Municipal de Negócios Extraordinários. Mas, em 1988, comigo foram convidados da PUC-SP também Paulo Sandroni e Guido Mantega, que já havia sido meu assessor na Reitoria. Para a área de Educação Erundina levou Paulo Freire, Mário Sérgio Cortella, Moacir Gadotti, Ana Maria Saul. Para a área Social, Aldaíza Sposati, Rosalina Santa Cruz e Marta Campos. Para assuntos jurídicos e Secretaria do Governo, José Eduardo Martins Cardozo e Fábio Ulhoa Coelho. E muitos outros, dessas e de outras áreas. Lamento não poder citar todos. A energia democrática utópica da PUC-SP agora de desborda para além do campus e vai buscar outros campos, outras metas, em âmbito mais amplo e de, talvez, maior alcance.
Na parede da memória, uma lembrança; e ao lado dela uma esperança, ainda que débil: a de que um levante de projetos possa, um dia, quem sabe, trazer à superfície a verdade puquiana construída ao longo de pelo menos duas décadas. E a crença de que a universitas deve ser maior e mais perene que as contingências da Igreja, do Estado e do Mercado. E que ela, quem sabe, nos aguarda em alguma próxima geração à nossa frente.
Como contribuição ao documento que está sendo elaborado pela Comissão da Verdade/Pucsp, sugiro a inclusão de alguns fatos que me parecem relevantes, dos quais participei ativamente e que, talvez, tenham ficado esquecidos ou pouco explorados. São eles:
1) Em 1962, a Puc esteve diretamente presente na experiências de alfabetização de adultos lideradas por Paulo Freire e desenvolvidas de forma crescente e cada vez mais abrangente em Recife, Brasília e Rio de Janeiro (experiência Rocinha). Em 63, teve início a experiência em São Paulo (Jardim Helena Maria/Osasco) que se desenvolveu até 31 de março de 64. A Puc-SP colaborou diretamente em todas essas experiências, criando condições para o deslocamento dos monitores até Osasco, diariamente, no período das 18:0 às 23:0hs. Em 68, a Puc foi argüida por ter colaborado com uma atividade acadêmica e de pesquisa considerada, à época, de natureza subversiva.
2) No período de 1966 a 69 e como atividade do debate sobre a reforma dos estatutos e regimentos da Universidade, houve intenso movimento acadêmico com participação ativa de alunos e professores nas comissões paritárias, onde eram debatidos, em plano de intensa troca de pontos de vista, todos as questões relativas à vida universitária e sua atuação de ensino e pesquisa. Acredito que essa experiência constituiu possibilidade de formação política que, conscientemente, procurava interferir diretamente no cotidiano da Universidade, a fim de que ele se tornasse reduto de democracia e resistência. Considero que essa experiência foi fundamental para a formação política de alunos e desempenho responsável de professores.
3) No período de 1965 a 66 desenvolveram-se as atividades de formação cultural que tinham o texto dramático como elemento de reflexão estética, mas em suas decorrências políticas relacionadas à repressão vivida no momento. Essa atividade contou com a participação direta de professores e alunos de vários departamentos e cursos da Universidade, culminando com a montagem da peça Morte e Vida Severina de João Cabral de Melo Neto, consagrada nacional e internacionalmente. Com a liderança dos Centros Acadêmicos, a atividade dos alunos levou à constituição do Teatro da Universidade Católica - Tuca que utilizava o Auditório Tibiriçá como local das representações. O sucesso dessa atividade destacou a dimensão do processo democrático de gestão que se iniciava na Puc e difundiu sua experiência nacional e internacionalmente. Posteriormente e na esteira do sucesso daquela peça teatral, o Auditório Tibiriçá incorporou o nome Tuca à sua própria designação, porém, as atividades de natureza democrática do teatro foram substituídas por atuações comerciais que, mais rentáveis, permanecem até hoje, mas sem conservar a memória do seu início.
4) Em 1968, começaram as primeiras reuniões para debater o início, na Universidade, das atividades de um setor de ensino e pesquisa em nível de pós-Graduação. Desde então, o Setor de Pós Graduação está presente na vida da Universidade e seu projeto inicial apoiado na qualidade de ensino e pesquisa continua sólido, embora se observe certa ausência da lembrança do seu início e, sobretudo, da sua importância para a vida da Universidade do passado ao presente.
Nos anos 80 e 90 do século passado, a PUC de São Paulo enfrentou muitos desafios e elaborou propostas de novos caminhos alternativos, tendo por foco as relações entre o público e o privado, o público e o estatal, as políticas públicas, o Estado e a Sociedade Civil. Os que defendiam elementos para a publicização, nos planos interno e externo, adquiriram crescente publicidade e aceitação. Uma ideia expressa na expressão público não estatal adquiriu difusão.
Sempre preocupado com questões ligadas à temática, no período em que estava na reitoria (1984-1988), escrevi um texto sobre a realidade puquiana “Caminhos da publicização, o caso da PUC/SP” (Porandubas, maio 1987), que abordava aspectos estruturais e conjunturais da mesma.
Antes de recuperar alguns pontos básicos sobre o mesmo, trago à baila uma rápida visão de pontos escritos em anos posteriores, mas envolvendo certos atributos do sentido de público. E afirmando que os mesmos devem estar necessariamente interconectados e devem ser analisados numa perspectiva de conjunto.
- Universalidade. Ele objetiva o atendimento de toda a população de uma nação, sem discriminação de qualquer tipo, e que precisa ser efetivada em todas as áreas societárias.
- Transparência. Exige visibilidade social nas ações governamentais, publicidade e fidedignidade das informações que orientam as deliberações em todas as clivagens.
- Controle social. Significa acesso de instâncias governamentais e da sociedade civil na fiscalização competente sobre as regras, aplicação dos recursos e prestação de contas, a atuação dos representantes nos cargos e funções exercidas.
- Sustentabilidade. Entendida como um processo constante de reprodução institucional, com um equilíbrio entre os objetivos e o orçamento, os recursos materiais e humanos, as necessidades da administração e gestão, com as demandas das populações e a realização das políticas públicas e sociais.
- Cultura pública. Base de referencia para os demais atributos. Tem origem na cultura cívica, que se promove nas famílias, nas escolas, nas comunidades, nas associações, nas igrejas, na mídia, nos governos.
Estes atributos e outros, numa análise teórica e prática, encontram base de sustentação na democracia. Neste ponto, os diversos processos de democratização, ocupam um lugar essencial na publicização, para compatibilizar consensos e conflitos, sistemas abertos e autônomos de representação e de escolha de representantes, formas autênticas de gestão que concretizem a governança e a governabilidade.
Para exemplificar, os processos abrangem a democracia político-institucional, fundada na democracia representativa. A democracia econômica, objetivando que todos tenham acesso e usufruto dos bens produzidos. A democracia social, atentando para os avanços da democracia representativa (redes e fóruns), lutas contra as desigualdades sociais, denúncias e protagonismo. Outra faceta valiosa vem da democracia cultural, que contempla a dominação de uma cultura sobre outras, ao lado das que buscam o diálogo ético e assumido, o respeito à diferença, a defesa do multiculturalismo, atividades de inculturação, o macroecumenismo, o respeito e valorização das culturas populares.
Caminhos da publicização
- Assegurar na Constituição o princípio do ensino público e gratuito, e a fixação dos recursos para a União, Estados, Municípios e Distrito Federal.
- Destutelação progressiva das escolas públicas, criadas e mantidas pelos governos, pelo Estado. E assegurar a autonomia universitária com controles adequados da sociedade.
- Avaliação institucional (auto-avaliação e avaliação externa) das instituições de ensino superior, públicas e gratuitas.
- Constituição e desenvolvimento de um sistema de ensino educacional que permita aos alunos uma formação ampla para se integrar na sociedade.
- Transformação de instituições de ensino particulares em instituições públicas não estatais, o que exige mudanças na organização e no estatuto jurídico. E um ponto bem polêmico se o caráter das verbas públicas se destina exclusivamente para escolas públicas estatais. Uma fórmula possível seria de fundações mistas, composta de representantes da comunidade universitárias, da sociedade civil, do Estado, das mantenedoras. Um ponto difícil é o de determinar as obrigações econômico-financeiras de cada parte.
Neste quadro complexo, defendi que a PUC São Paulo está habilitada a encontrar novos caminhos e assinalava:
1. Competência. Contamos em nosso quadro com professores de reconhecida competência, situados em cursos de graduação e em programas de pós-graduação. Há uma constante progressão na carreira de magistério. Estimulamos a titulação apesar de estarmos aquém do desejado por falta de recursos. Apoiamos a pesquisa individual e coletiva, na graduação e com expansão progressiva na pós-graduação. Várias faculdades fizeram reformas curriculares, objetivando melhor qualificação e adequação à realidade social. A política de prestação de serviços passa por uma reorientação que a integre organicamente com o ensino e a pesquisa. A competência foi reforçada com a luta pela autonomia universitária que nos permitiu inovar na estruturação acadêmica, na composição de órgãos deliberativos, que permitiu acolher professores cassados das universidades estatais, e assegurou ampla liberdade de opinião em todas as atividades, sem nenhuma interferência externa ou das direções sobre orientações doutrinarias e filosóficas de professores e cursos.
2. Democratização de acesso. Tem aumentado nos últimos anos, o número de alunos assalariados ou filhos de trabalhadores, ou filhos de trabalhadores na instituição, alterando o perfil do alunado. Considerando esta situação e a necessidade de maior democratização no acesso, estão em andamento estudos sobre o nosso vestibular.
3. Avanços no processo de democratização. O processo foi iniciado pela atuação decidida dos docentes, dos estudantes e, num segundo momento, dos funcionários, e implementado paulatinamente, com destaque para a atuação de suas associações. Ele passou inicialmente pela participação conjunta de docentes e discentes em alguns cursos e departamentos e foi crescendo até a eleição do reitor em 1980. O grão-chanceler, D. Paulo Evaristo Arns, teve papel importante no processo ao solicitar da comunidade ampla consulta, objetivada em eleição. Na sequência, admitiu-se também eleições para chefes de departamentos, faculdades e sempre com a nomeação dos mais votados. Houve uma segunda eleição para reitor em 1984.
Uma comissão constituinte formada de representantes dos três segmentos elaborou um novo Estatuto que, entre outras coisas, procurou garantir esse mecanismo e inovar na representação e na participação nos Colegiados Superiores. Em fins de 1985, antecipando a normatização estatutária, iniciou-se uma experiência paritária (gestão de professores, alunos e funcionários) nesses colegiados. Ela era ousada e arriscada, tendo em vista o mérito da proposta em si, e falta de padrões análogos em outras instituições nacionais e as resistências de boa parte dos professores. Numa primeira avaliação, a experiência trouxe pontos positivos e interrogações que estão esperando um escrutínio rigoroso, feito com sabedoria.
A democratização interna manifestou-se também na luta corajosa contra o regime pós-68, ao não aceitar a aplicação de penalidades sobre os alunos, ao ceder seus espaços para reuniões de movimentos populares e liberais democratizadores, ao permitir a realização da Reunião Anual da SBPC (1979) e da UNE (1977). Essa posição libertadora, inerente à sua missão de autonomia e liberdade cultural e política, lhe valeu a oposição das autoridades governamentais e educacionais, com os efeitos conhecidos (invasão do campus, pressões políticas, incêndio de parte do TUCA).
4. O controle de recursos foi desenvolvido pela política de implementar orçamentos-programa para as unidades acadêmicas, cuja diretrizes econômico-financeiras são analisadas e elaboradas por um órgão colegiado constituído de membros dos três segmentos (Conselho de Administração e Finanças), que tem acesso a todas as informações necessárias.
5. Atividades que direcionam para a função pública. A PUC-SP forma normalmente professores que vão trabalhar na rede pública, e vem preparando mestres e doutores para o sistema público estatal de todo o país (universidades e institutos isolados federais, estaduais, e municipais). Alguns programas de pós-graduação, em determinados estados foram constituídos com professores formados em nossa Universidade, na totalidade ou em boa parte dos quadros constitutivos. Nessa perspectiva, tem havido também preparação de professores para o 1o e 2o. Graus, por meio de cursos de extensão, especialização e aperfeiçoamento. Diversos docentes, pesquisadores e técnicos participam diretamente da administração pública (governo e empresas) e prestam assessorias aos governos, principalmente a nível federal e estadual. Por meio do Escritório de Projetos e Convênios desenvolvemos vários projetos de prestação de serviços e Secretarias de Governo.
Dedicatória: TEIA PRESENTE!
Dedico este artigo a companheira Maria Tereza Sério- a Teia- estudante de Psicologia, em 1968, que militou comigo no movimento estudantil da PUCSP e na APML – Ação Popular Marxista Leninista. Depois de formadas, Teia veio dar aula no Curso de Psicologia e eu, em 1981, no Curso de Serviço Social da PUCSP. Como professoras atuamos no movimento de professores sob a direção da APROPUC. Teia em toda assembleia, em toda reunião, em toda luta estava na linha de frente e no último período, a partir de 2006, na luta contra a intervenção da FUNDASP, da precarização do ensino e do trabalho e das demissões em massa de professores(as) e funcionários(as) ocorridas na PUCSP na gestão da reitora Maura Veras.
Ativa, atuante, perspicaz, firme, coerente, inteligente, combativa e amiga, essa era a Teia. Três dias antes de adoecer tomamos um café e conversamos muito sobre a grave situação da PUCSP pela quebra da autonomia e democracia universitária e da importância de compor a chapa para a diretoria da APROPUC que estava se formando, para continuarmos com uma trincheira na luta de resistência, e ela topou. Dias depois, muito rapidamente Teia, acometida de uma grave doença, nos deixou em 08/05/2010.
Seu legado permanece entre os (as) lutadores(as) e nos dá força para continuar na luta de resistência em defesa da PUC autônoma e democrática que recentemente, em 2012, sofreu mais um golpe na soberania universitária pela nomeação para reitora, da última colocada no pleito eleitoral, a professora Dra. Anna Maria Marques Cintra por D. Odilo Pedro Scherer, Cardeal arcebispo de São Paulo.
Teia com certeza estaria conosco, mais uma vez na linha de frente, nessa luta, em defesa da autonomia e democracia universitária. Hoje a Sala de nº T41 do prédio sede da PUC Monte Alegre, onde durante anos Teia participou de reuniões do ciclo básico, a ela é dedicada.
TEIA PRESENTE SEMPRE!
(Des)comemoração
Este ano de 2014, de norte a sul do país, ocorreu, ocorre e continuará ocorrendo a “(Des)comemoração” dos 50 anos da instauração da ditadura cívico-militar que eclodiu em 31/03/1964 e se instalou em 01/04/1964. Livros, revistas, ensaios, conferências, palestras, mobilizações de rua, exposições, entrevistas, cinema, poesia, literatura, música, teatro, artes plásticas, atos, performances, obras artísticas, culturais e tantas outras formas de expressão trazem à tona os 21 anos de violência ocasionados por esse período de repressão com torturas, prisões, exílios, assassinatos de muitos(as) daqueles(as) que lutaram coletivamente pelo fim da ditadura e o renascer de uma nova sociabilidade igualitária e libertária.
O golpe cívico-militar em 1964 no Brasil, bem como os golpes militares ocorridos em outros países da América Latina nesse período, como no Chile, Uruguai, Argentina, Peru, Bolívia foram sustentados pelo imperialismo norte-americano que se utilizou de mecanismos de controle e de apoio aos militares bem como pela criação da Aliança para o Progresso com financiamento econômico para implementar programas de educação e cultura que visavam a dominação estadunidense no continente latino americano. O Programa de Assistência Militar- PAM foi o pilar de sustentação das forças armadas na Bolívia, República Dominicana, Equador, Honduras, Guatemala, Paraguai e na Nicarágua Somozista. A doutrina de segurança nacional implicou na interdependência e subordinação econômica, política e militar dos países latino-americanos aos Estados Unidos da América. A essa investida chamamos ideologia de dominação para manter a exploração de classe do capitalismo subordinado ao imperialismo.
A Revista PUCViva neste número é mais uma iniciativa para debater, esclarecer e repudiar essa violência que recaiu sobre nossas vidas cotidianas num verdadeiro Estado de exceção. O artigo que ora apresento se volta para o movimento estudantil universitário mais precisamente para o ano de 1968 em que a juventude demonstrou sua vitalidade na luta contra a ditadura, contra o imperialismo, contra o capitalismo na perspectiva de uma revolução proletária socialista.
Podemos afirmar que é a partir do Ato Institucional nº 5-AI-5 decretado em 13/12/1968 que se inicia o período dos anos de chumbo no país imposto pela ditadura cívico-militar. De 1964 a 1968, até o AI-5, presenciamos grandes mobilizações estudantis, greves operárias, ações no campo de resistência e erupção frente ao cerceamento imposto pela ditadura, bem como, manifestações artísticas, culturais, na música, no cinema e no teatro, com repressão e perseguições, mas sem dúvida, o período posterior instaurou o terror no país. Referenciarei-me ao ano de 1968 por ser emblemático na insurgência da juventude estudantil no país.
A luta do movimento estudantil, nesse período, se direcionou contra a Reforma do Ensino Superior MEC-USAID que foi um acordo firmado entre o Ministério da Educação e Cultura e o USAID – organismo norte-americano que estabelecia a base ideopolítica para o ensino superior no país, sob a orientação norte-americana, de sustentação do projeto hegemônico da dominação imperialista para a América Latina.
Em 28/03/1968 uma manifestação de estudantes, no Restaurante Calabouço no Rio de Janeiro, foi duramente reprimida pela polícia militar que assassinou Edson Luiz, um jovem estudante paraense de 17 anos. Outro estudante Benedito Frazão Dutra foi gravemente ferido, nesse ataque militar, falecendo alguns dias depois. A comoção e o repúdio a essa violência e para impedir que a polícia desaparecesse com o corpo de Edson Luiz, os estudantes carregaram-no até a assembleia legislativa do Rio de Janeiro e a seguir mais de 50.000 pessoas acompanharam o enterro no cemitério de São João Batista. “Mataram um estudante podia ser seu filho” era a frase que ecoava em uníssono. Essa violência desencadeou um processo de grandes mobilizações estudantis durante todo o primeiro semestre de1968. No dia 21/06 também no Rio de Janeiro uma grande mobilização estudantil foi mais uma vez violentamente reprimida, a conhecida “sexta-feira sangrenta” em que foram assassinados 28 jovens, além de muitos espancamentos e prisões. No dia 26/06 para fazer frente a essa repressão o governo teve que ceder e autorizar a manifestação organizada pelos estudantes, com apoio de artistas, intelectuais, trabalhadores, pais, padres e freiras progressistas na Marcha dos 100.000 na Guanabara que ganhou amplo apoio da população contra a ditadura militar e a repressão.
A Mobilização nas Universidades
O movimento estudantil se organizava em todo o país. As universidades públicas, em sua maioria, estavam sob o domínio de interventores da ditadura que reprimiam e expulsavam os estudantes que mais se destacavam na organização estudantil. Estávamos sob a imposição do Decreto Lei nº477 de 26/02/1969, também chamado de AI5 das universidades, que previa a punição de professores, alunos e funcionários de universidades considerados subversivos. Os professores atingidos eram demitidos e ficavam impossibilitados de trabalhar em qualquer outra instituição educacional do país por cinco anos, ao passo que os estudantes eram expulsos e eram proibidos de cursar qualquer universidade. De outro lado a Lei Suplicy de Lacerda de 1964 proibia a livre organização estudantil nos Centros Acadêmicos - CAs, impunham os Diretórios Acadêmicos que se destinavam a desenvolver ações recreativas, de integração estudantil, porém as ações políticas eram proibidas. Desde a base, nas salas de aula nos organizávamos de forma autônoma para fazer valer nossas reivindicações. Eram pauta comum do movimento estudantil desse período: a luta contra a Reforma MEC-USAID; a luta contra o Decreto Lei nº 477 e a Lei Suplicy de Lacerda, a luta pela autonomia do movimento estudantil em nossas organizações livres; a luta pelo ensino público, laico, gratuito, universal; a luta pela destinação da verba pública para o ensino público; a luta pela organização nos CAs-Centros Acadêmicos, nos DCEs- Diretórios Centrais de Estudantes, na UEE-União Estadual de Estudantes e na UNE-União Nacional de Estudantes, sendo que todos esses organismos de representação estudantil estavam na ilegalidade proibidos pela ditadura desde 1964.
Nos organizávamos para unificar nossas lutas específicas e mais gerais de combate a ditadura e de solidariedade ativa aos trabalhadores do campo e às lutas operárias na aliança estudantil-operária e camponesa, em uma perspectiva classista, revolucionária. As ações de rua eram ininterruptas nos grandes centros urbanos como Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Salvador, Brasília, Recife e Fortaleza em um processo de mobilizações sociais.
As teses para a universidade se traduziam em universidade crítica, universidade popular, universidade democrática e eram amplamente debatidas no interior do movimento estudantil e expressavam propostas engendradas a partir das organizações clandestinas de esquerda que, apesar de táticas e estratégias diferenciadas, mantinham a unidade política na ação. A vanguarda do movimento estudantil estava inserida nessas organizações que tinham como pressuposto a luta contra a ditadura, contra o capitalismo, contra o imperialismo norte-americano, mas se organizavam em direção à revolução social, proletária para a tomada do poder político pelo proletariado em aliança da classe trabalhadora na direção da transição socialista para a construção do projeto de emancipação humana. Ou seja, a luta pelo fim da exploração do homem pelo homem, do trabalho alienado, pelo fim da propriedade privada dos meios de produção, pelo fim das classes sociais, pela dissolução do Estado por uma sociedade de auto-organização dos indivíduos livremente associados. Atuávamos no movimento estudantil, como um movimento de massas e nos inseríamos nas organizações de esquerda em que nos formávamos politicamente no campo do marxismo na perspectiva da revolução social. Desde então sabíamos da necessidade da construção do partido do proletariado pelo protagonismo histórico de lutar por um programa de realizações democráticas e anti-imperialistas como parte da revolução social.
Particularmente, naquele período, militei na APML - Ação Popular Marxista Leninista, uma organização que nasce no interior da esquerda cristã, vinda das JAC/JEC/JIC/JOC/JUC respectivamente juventude agrária, estudantil, independente, operária e universitária católicas, vinculadas à Teologia da Libertação. A AP ao adotar o marxismo-leninismo rompe com o pensamento cristão e influenciada pela revolução chinesa torna-se, por um tempo, também maoísta. O presidente da UNE em 1968, Luiz Travassos e seu sucessor Jean Marc bem como o último presidente Honestino Guimarães, em 1973, ocasião em que a UNE foi totalmente desmantelada, eram da AP. Cabe relembrar que Honestino encontra-se desaparecido desde esse período. Outras tendências também se faziam presentes no movimento estudantil como a POLOP, política operária, de tendência trotskista; o PCB- Partido Comunista Brasileiro e a Ala Vermelha sua dissidente, entre outras. Nosso esquema de segurança para formação era bastante cauteloso, pois a cada momento podíamos “cair”. Tínhamos nomes diferentes no interior da organização e nos aglutinávamos em células e conhecíamos somente os militantes do GTR - Grupo de Trabalho Revolucionário Estudantil a que pertencíamos; nos reuníamos em casas que denominávamos “aparelho” e mantínhamos todo esse sistema de segurança para que não fossemos reprimidos.
O Movimento Estudantil no Curso de Serviço Social da PUCSP
Entrei em 1968 na Escola de Serviço Social agregada à PUCSP na Rua Sabará. Lá de imediato participei da diretoria do GESS-Grêmio da Escola de Serviço Social, com atuação no movimento estudantil, e no primeiro mês do curso me inseri na Ação Popular. Na escola de Serviço Social estudantes, professoras e funcionárias, no primeiro semestre de 1968, paramos o curso por três meses para discutir que universidade, que faculdade, que curso, que formação acadêmica queríamos. Aí debatíamos a democratização do ensino, a formação profissional voltada para a realidade do país, o compromisso com os setores explorados e oprimidos da sociedade, a realização de estágios na formação profissional em espaços sócio- ocupacionais críticos, a participação paritária nos órgão colegiados e nossa inserção no DCE livre da PUC para levar as lutas mais gerais dos estudantes da PUCSP. Também participávamos da ENESSO-Executiva Nacional de Estudantes em Serviço Social que era vinculada a UNE. Em julho de 1968 no Encontro Nacional da ENESSO, em Fortaleza, com a Tese Serviço Social e Realidade Brasileira, nós da PUCSP, assumimos a direção da entidade e estimulamos outros cursos de Serviço Social a se organizarem. Atuávamos nas lutas específicas de nossa formação profissional articuladas às lutas mais gerais do movimento estudantil vinculadas às lutas contra a ditadura e por um projeto emancipatório de sociedade, anticapitalista, anti-imperialista, socialista, incentivando nos cursos a livre organização estudantil. A nossa ação era voltada para um movimento de base, com representação de estudantes de cada turma junto ao CA, de deliberação de nossas pautas em assembleias regida pelo princípio da democracia e atuávamos com formação política.
No curso de Serviço Social da PUCSP havia mobilização e organização dos estudantes, e a direção do curso e o coletivo de professoras(es) era composto por setores progressistas, humanistas, democratas que se colocavam contra a ditadura; assim quando representantes da polícia se dirigiram ao curso para se informar dos nomes e paradeiros de estudantes que ingressaram na clandestinidade as professoras eram firmes e diziam em alto e bom tom: a escola é autônoma e não damos os nomes de nossas estudantes. Entre essas professoras posso citar Nadir Gouvea Kfouri, Marina Colombo de Bartolo e Suzana da Rocha Medeiros que ministravam na Escola de Serviço Social da PUCSP, a primeira escola do país na área, fundada em 1936, dez anos antes da Fundação da PUCSP. Em 1971 as professoras encaminharam a incorporação do Curso de Serviço Social à PUCSP, que até então era agregada, que passou a funcionar no Campus Monte Alegre. Nadir, Marina e Suzana foram respectivamente a primeira reitora eleita em uma universidade no país - a PUCSP; coordenadora do Centro de Ciências Humanas e diretora do Curso de Serviço Social e do Programa de Pós Graduação em Serviço Social na PUCSP, o primeiro curso da área no país. Na PUCSP a Biblioteca e a Comissão da Verdade trazem o nome de Nadir Gouvea Kfouri e a sala P 68 do Prédio sede da Monte Alegre homenageia Marina Colombo de Bartolo. Se nas universidades públicas os dirigentes, em sua maioria, eram porta vozes da ideologia de segurança nacional da ditadura militar e do imperialismo norte americano, na PUCSP contávamos com dirigentes, em muitos cursos, progressistas, alinhados com a Teologia da Libertação, que teve na América Latina uma expressão significativa na luta contra as ditaduras e opressões, pela consigna da ação preferencial pelos pobres, contra a desigualdade social. Por ocasião da prisão de 1.000 estudantes em Ibiúna no XXX Congresso da UNE foi a Madre Christina Dória do Sedes Sapientiae da PUCSP quem organizou os pais e familiares dos(as) estudantes para pressionar a quebra da incomunicabilidade a que estávamos submetidos(as) no presídio Tiradentes e posteriormente no Carandiru.
A Rua Maria Antônia - “O quadrilátero revolucionário”
A Escola de Serviço Social da PUCSP ficava na Rua Sabará, o Curso de Arquitetura da USP na Rua Maranhão, o Curso de Psicologia da PUCSP na Rua Caio Prado, os Cursos de Filosofia, Ciências Sociais e Letras da USP na Rua Maria Antônia, os Cursos de Ciências Exatas da PUCSP na Rua Marquês de Paranaguá e o Curso de Medicina da Santa Casa na Rua Viridiana. Havia um conjunto de cursos da USP, da PUCSP e da Santa Casa em um “quadrilátero revolucionário” e nos reuníamos para os enfrentamentos conjuntos na USP da Rua Maria Antônia, a nossa referência.
Em 02/10/68 fazíamos pedágio na Maria Antônia para arrecadar fundos para o XXX Congresso da UNE, que se realizaria no mesmo mês, quando alguns estudantes do Mackenzie na mesma rua, atiraram ovos em cima dos(as) estudantes da USP. Iniciou-se o confronto que ficou conhecido como a “Batalha da Maria Antônia”. Os estudantes que iniciaram o confronto eram do CCC - Comando de Caça aos Comunistas, da FAC - Frente Anticomunista e do MAC - Movimento Anticomunista. O confronto se ampliou com a presença de estudantes que se aglomeravam e ocorreu entre 3.000 estudantes do Mackenzie contra 2.500 da USP. As principais lideranças de esquerda naquele dia foram Luiz Travassos, presidente da UNE e José Dirceu, presidente da UEE. A batalha de dois dias contabilizou dezenas de feridos e culminou com o assassinato do estudante secundarista José Carlos Guimarães com um tiro de fuzil. Desse episódio também fizemos uma grande passeata em São Paulo e mais uma vez em uníssono ecoavam as vozes “mataram um estudante, podia ser seu filho”.
O CCC era formado por um pequeno grupo de estudantes do Mackenzie, mas que conseguiu de forma violenta realizar a provocação que culminou com o assassinato de Guimarães. Nesse período também ocupamos a Faculdade da USP na Maria Antônia contra a reforma universitária tecnocrática que estava sendo implantada nos moldes do acordo MEC-USAID. Rapidamente, após esses fatos, a Faculdade foi transferida para o campus USP Butantã onde as faculdades e cursos ficavam distantes uns dos outros para dificultar a livre organização, mas assim mesmo os estudantes se mobilizaram e muitas ações foram travadas nesse período, entre elas a luta pela ampliação de vagas para os cursos, a ocupação do CRUSP-Centro Residencial Universitário da USP que reivindicava a ampliação de moradias estudantis e a luta pelo “bandejão” de qualidade no restaurante universitário.
O Movimento Estudantil na PUCSP -- Campus Monte Alegre
Em 1967, na PUCSP, ocorreu uma luta para a entrada dos alunos(as) excedentes do vestibular, em um acampamento na Rua Monte Alegre que durou mais de um mês e obtivemos vitória parcial com uma ampliação significativa do número de vagas. Em 1968 nos reuníamos no campus Monte Alegre, os(as) estudantes de vários cursos da PUCSP, desse e de outros campus, para debater e unificar a luta estudantil que naquele ano se voltava contra a Reforma Universitária a ser implantada na PUCSP que seguia, como em todas as universidades, o Acordo MEC-USAID, o que nos levou a ação direta de ocupação da reitoria, no prédio velho/sede para barrar essa reforma. Organizávamo-nos no DCE livre para encaminharmos as lutas específicas dos cursos e as lutas mais gerais dos(as) estudantes da PUCSP, articuladas às lutas da UEE e da UNE. Eram pontos de pauta na PUCSP: formação profissional de qualidade voltada à realidade brasileira; redução do preço das mensalidades; acesso e permanência a todos os(as) estudantes, ampliação do número de bolsas integrais para acesso e permanência dos(as) estudantes, restaurante universitário com preços acessíveis, moradia estudantil, democratização da universidade com participação paritária de estudantes, professores(as) e funcionários(as) nos órgãos colegiados, luta pelo ensino público, laico, gratuito e universal em todos os níveis do sistema educacional, incentivo à organização estudantil em todos os cursos, por meio do Centros Acadêmicos, pela participação no DCE livre da PUC, na UEE e UNE, como instâncias autônomas de organização e representação estudantil.
A convicção política e ideológica tomava conta de nossos corações e mentes aos dezenove anos de idade. Para irmos às passeatas, aos comícios relâmpagos, aos atos públicos , às pichações, às barricadas, nos reuníamos e saíamos às ruas de forma organizada, com panfletos, faixas, bolinhas de gude para jogar nos pés dos cavalos das tropas policiais, bem como lencinhos com éter para nos proteger das bombas de gás lacrimogêneo e as de efeito moral nas passeatas e outras mobilizações de rua. Fazíamos manifestações no centro da cidade e em bairros com aglomerações populares como em Pinheiros, no Largo da Batata, e em Santo Amaro em que juntamente com operários(as) e outros(as) trabalhadores lutávamos contra o arrocho salarial e com solicitação às pessoas para que aderissem à luta: “você aí parado também é explorado”, “abaixo a repressão mais arroz e mais feijão”, “vai acabar, vai acabar, a ditadura militar...”.
A solidariedade às Greves Operárias de Contagem e de Osasco
Em 16 de abril de 1968 se desencadeia a greve de Contagem em Minas Gerais que significou uma referência para as lutas travadas a partir daí no país. Os estudantes de Minas participaram em solidariedade ativa às greves operárias de Contagem que se dirigiram contra o arrocho salarial e por melhores condições de trabalho. A origem das mobilizações em Minas se deu na fábrica Belgo-Mineira onde os operários reivindicavam 25% de aumento salarial contra a proposta do patronato de 10%. A greve se espalhou e em poucos dias 20.000 operários cruzaram os braços. A repressão foi violenta e os trabalhadores retornaram ao trabalho e tiveram que aceitar os 10% de reposição das perdas salariais. Houve uma derrota econômica fruto da repressão que os fez recuar, mas do ponto de vista da ação política essa greve foi referência para os demais trabalhadores do país.
A segunda greve operária do período foi a greve dos metalúrgicos de Osasco, à época o maior centro industrial do país, e que tinha a direção de dois grupos políticos, respectivamente, a FNT - Frente Nacional do Trabalho influenciada pela Teologia da Libertação da Igreja Católica e o Grupo de Esquerda - GE cujas principais lideranças estavam vinculadas à VPR - Vanguarda Popular Revolucionária. A linha política da FNT estava ancorada no sindicalismo de base, de lutas, a partir da organização do “chão de fábrica”, com um direcionamento mais voltado para a luta sindical e o GE desenvolvia uma ação política mais ofensiva pelo fim da ditadura militar. Porém, os dois agrupamentos lutavam contra o sindicalismo corporativista vindo do Estado Novo, dos anos 30, da ditadura de Vargas que se constituía por ser um sindicalismo atrelado ao Estado originário da Carta Del Lavoro, do fascismo na Itália de Mussolini. Essa estrutura sindical criada por Vargas estava consubstanciada na CLT-Consolidação das Leis do Trabalho e as duas agrupações lutavam por liberdade e autonomia sindical, pelo direito irrestrito de greve, pela livre organização de todos os trabalhadores (os trabalhadores m serviço público eram proibidos de formar sindicatos, até a Constituição de 1988); pela organização de base nas fábricas, pela auto-sustentação financeira; pela solidariedade classista internacionalista, por um sindicalismo de base, democrático, de massas, autônomo e independente do Estado, dos partidos e do patronato.
A FNT e o GE se contrapunham “aos pelegos” que compunham as direções sindicais impostas pela ditadura militar com base na estrutura sindical vigente e eram porta-voz das classes dominantes, no seio do movimento operário, porta-voz da ideologia da segurança nacional, de preservação da ditadura militar. Tão logo a greve de Osasco eclodiu foi brutalmente cerceada pelo patronato e grande parte da liderança reprimida. As lições das greves do ponto de vista político foram centrais para o processo de politização da classe operária em relação a luta por um sindicalismo livre e na luta contra a ditadura. Para os estudantes viver essa experiência de solidariedade ativa reafirmou nossa convicção política, ideológica e organizativa do ponto de vista classista e revolucionário.
O Movimento Estudantil no 1º de Maio de 1968
Os operários de Osasco e do MOSMSP- Movimento de oposição sindical metalúrgica de São Paulo ocuparam a Praça da Sé no 1º de maio a ser realizado pelos operários “pelegos” e pela oficialidade da ditadura militar sob a organização e direção do Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco. Importante lembrar que o esses sindicato teve como uma de suas lideranças o operário José Ibraim- que assumira a presidência da entidade em 1967, com 17 anos, preso posteriormente e um dos 15 militantes trocados pela soltura do embaixador americano sequestrado em 1969.
Essa “tomada da praça” ocorreu, tendo por referência a greve de Contagem, pela direção combativa do sindicato dos metalúrgicos de Osasco e pelos operários que se organizavam no MOSMSP-Movimento de Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo que se contrapunham aos “pelegos” que dirigiam o maior sindicato metalúrgico da América Latina- O Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. O MOSMSP era constituído por militantes da esquerda católica e da esquerda revolucionária marxista, leninista e trotskista que teve um papel dirigente durante toda a ditadura militar e fundamental por ocasião das grandes greves operárias, a partir de 1978, em uma direção classista, socialista na fundação da CUT - Central Única dos Trabalhadores, em 1981 e em sua consolidação. Uma CUT que nos anos 80 cumpriu um papel de centralização e unificação das lutas da classe de forma autônoma e independente, muito diferente do giro hegemônico socialdemocrata, dos anos 90, e governista e estadista a partir de 2002 com o governo Lula.
No 1º de maio da oficialidade da ditadura e dos “pelegos”, durante a fala do governador biônico Abreu Sodré, que foi apedrejado, houve um tumulto e repressão, mas que não conseguiu conter a passeata que se dirigiu para a Praça da República com mais de 1.500 operários e por volta de 1.000 estudantes. Pela primeira vez, um operário-estudante, José Campos (Zequinha) Barreto, falou em Praça Pública sobre a necessidade do povo se armar para tomar o poder.
O Movimento Estudantil e as Manifestações Culturais
O ano de 1968 e os anos que o antecederam, desde os anos 60 e entrando já na ditadura, foram anos de muita atividade cultural de contestação em que o movimento estudantil acompanhou e esteve presente. O ativismo cultural herdado do Centro Popular de Cultura da UNE - CPC, desde 1960, duramente perseguido, mas que se manteve atuante na contestação cultural e artística. Desse período, a primeira expressão foi o Show “Opinião” em 1964 de Augusto Boal, no Rio de Janeiro e depois em São Paulo, no Teatro de Arena, claramente em oposição à ditadura militar. Podemos citar nessa efervescência as peças de teatro Morte e Vida Severina, com texto de João Cabral de Mello Netto e música de Chico Buarque de Holanda, encenada no TUCA em 1967; Arena conta Tiradentes; Arena conta Zumbi; Liberdade Liberdade; Feira Paulista de Opinião; O Rei da Vela; Gracias Señor; Se correr o Bicho pega se ficar o Bicho come; Cemitério de Automóveis; Roda Viva, sendo essa última peça, de Chico Buarque, que sofreu agressões e atentados por parte do CCC que invadiram o teatro. Imediatamente os(as) estudantes lá estávamos, em frente ao Teatro Ruth Escobar em São Paulo na luta pela liberdade de expressão e manifestação e em solidariedade aos atores e ao diretor da peça Zé Celso Martinez Correa.
Os festivais de música popular brasileira-MPB- lotavam o teatro Paramount na Av. Brigadeiro Luiz Antônio com músicas de protesto e de chamamento à luta social ovacionadas pelos presentes, sendo que os(as) estudantes participavam em número significativo. O cinema novo que já despontara na década anterior se ampliava, a continuidade do método de alfabetização de adultos de Paulo Freire com as “palavras-chaves” de politização faziam parte de nossa atividade, e nosso hino nas passeatas “Prá não dizer que não falei de flores” de Geraldo Vandré nos animava para a ação coletiva. Um ano de grandes mobilizações estudantis e operárias e de efervescência cultural, sem dúvida, esse período firmou nossa consciência revolucionária.
A Prisão dos(as) Estudantes no XXX Congresso da UNE-Ibiúna
A UNE "somos nós nossa força e nossa voz" era a palavra de ordem por nós entoada. A UNE posta na clandestinidade, desde 1964, era nossa organização nacional estudantil autônoma e independente do governo. Radicalmente oposta à UNE dos anos 90, que abdica de sua política de lutas imediatas e históricas, subordina-se à negociação na institucionalidade no governo neoliberal de FHC, de desastre para o país, e a partir do governo Lula, em 2002 se torna estadista, governista e perde seu caráter de entidade livre, autônoma e de lutas; trata-se da "UNE burocrática das carteirinhas".
Chegamos à noite para o XXX Congresso da UNE, em 1968, que ocorreria em um sítio próximo à cidade de Ibiúna. Após várias horas de maratona, várias escalas, paradas, olhos vendados, pontos desmarcados, chegamos exaustos(as) ao sítio. Tomamos um "sopão" para poder dormir encolhidos(as) naquele frio danado. No dia seguinte após a "filona do café", mal inicia-se a mesa de abertura fomos surpreendidos(as) pela repressão. Nós mulheres, ao passarmos por vistoria, éramos chamadas de "putas" e “vadias” pelos "gorilas" por termos pílulas anticoncepcionais conosco. Lutávamos contra a ditadura, contra o imperialismo, contra o capitalismo, pelo socialismo, pelo direito à sexualidade, pela legalização do aborto, decisão sobre nossos corpos, pela livre orientação sexual, o que já compunha as lutas feministas socialistas. Lutas lá em 1968 e da maior atualidade cá em 2014.
Fomos para Ibiúna como se fôssemos para a revolução. Um montão de erros: primeiro a posição que venceu (ser em Ibiúna). A AP defendia ser na USP com sustentação de massa. Perdemos, fomos para Ibiúna após vários pontos e consignas. Há muito tempo sabemos que o nosso esquema de segurança era frágil, mas à época nem duvidávamos: japonas, bonés, bolsas tiracolos, ponchos, tênis gastos, uma revista na mão, óculos escuros, calças jeans desbotadas. De longe se reconhecia um (a) militante estudantil de esquerda que sonhava e exercitava a luta pelo socialismo e os nossos "pontos" não eram nada seguros. De fato não tínhamos ideia da força da ditadura, de seu poder, embora lutássemos contra ela. Os camburões ficavam a 14 km do sítio em que estávamos. Em filas, rapazes de um lado, garotas de outro escoltadas pelos policiais fomos andando e assobiando "caminhando e cantando e seguindo a canção", música emblemática para nós da esquerda. Hino em nossas passeatas seguido do corre-corre da polícia, dos cavalos, das bombas de efeito moral, do gás lacrimogêneo que usados lá na ditadura também o são na democracia burguesa contra os operários, sem terra, sem-teto, estudantes, população de rua, mulheres, negros, pobres, lutadores, quilombolas, populações originárias, comunidades indígenas, contra tod@s @s movimentos sociais de luta, de autonomia e independência de classe que sofrem contra a exploração e a opressão. Diariamente os movimentos sociais tem sido reprimidos pela ação violenta da polícia que persegue e mata a população pobre, jovem , negra, trabalhadora na violência do Estado que cada vez mais criminaliza os movimentos sociais, em um verdadeiro estado de exceção, o que nos leva a lutar no plano mais imediato pela desmilitarização da polícia.
As jornadas de junho de 2013 pela redução de tarifas, impulsionadas pelo Movimento Passe Livre, e posteriormente com outras reivindicações por saúde, educação, moradia aglutinando até um milhão de manifestantes no Rio de Janeiro, 500.000 em São Paulo e com milhares de pessoas em amplas mobilizações de norte a sul do país, em grandes, médios e até em pequenos centros urbanos, tem sido reprimidas pela polícia militar com anuência do estado opressor e de dominação; bem como tem sido reprimidas as manifestações referentes aos absurdos gastos com a Copa de 2014, acrescida da chamada lei da copa que mais uma vez criminaliza as manifestações. Quando presos(as) em 1968, fomos todos(as) para o Presídio Tiradentes. Cerca de quarenta jovens mulheres em cada cela, no total de quatro celas femininas, pois éramos em torno de 150 garotas e 850 rapazes. O frio era intenso, dormíamos em "valete" para nos aquecer e nos sentirmos mais próximas umas das outras: a luta era uma só! O banheiro também era um só, ali mesmo, banho gelado! Estávamos incomunicáveis e não sabíamos nada de que se passava lá fora. Os carcereiros nos traziam comida fria em lata de cera. Era ruim... À noite ouvíamos berros que depois soubemos que era para criar um clima de terror (as torturas não se deram naquele momento, afinal eram mais de mil estudantes). As grandes chaves tilintavam entre as grades pelas mãos dos carcereiros. Tudo isso, porém não nos afastava da confiança e justeza de nossa luta.
Depois do AI 5 de 13/12/68, o terror se intensifica, ali era apenas ocomeço. Somente pudemos sair para tomar sol no pátio com as presas comuns quando fomos transferidas para o Carandiru, as estudantes de São Paulo. Os(as) estudantes de outros estados foram enviados(as) para as prisões de seus estados. O dia em que levaram um a um(a) de nós para o Departamento Estadual de Ordem Política e Social-DEOPS foi um dia de terror. Ficamos cada um(a) de nós sozinhos(as) em uma pequena sala, horas a fio, durante toda uma noite, aguardando para o depoimento. Ouvíamos berros e ficávamos apavoradas(os) envoltas(os) em nossos 19 anos. Vez por outra, na madrugada, um policial dizia para cada um(a) de nós: Está ouvindo os berros? Se amanhã não falar tudo em depoimento será a sua vez de berrar. Sabíamos que falaríamos a mesma coisa: éramos estudantes eleitos pelos estudantes para participar de um congresso que lutava pelos nossos direitos. Tínhamos que resistir e não abrir nada sobre nossas organizações políticas; estávamos na ditadura.
A organização estudantil para o XXX Congresso da UNE ocorreu em um amplo processo de debate e discussão em cada sala de aula, em cada curso, em cada faculdade, em cada grêmio estudantil, em cada assembleia que elegeu seus delegados . Uma organização massiva para um congresso clandestino. Eis aí uma contradição que não poderia ser diferente. Muitos estudantes que defendiam que o congresso fosse em Ibiúna declararam posteriormente de que se o mesmo fosse realizado na USP, a repressão seria a mesma.
A todo momento, colocávamos a consigna: Abaixo a ditadura! A grande maioria de nós presa em Ibiúna foi solta e enquadrada na Lei de Segurança Nacional que durante anos nos colocou em cerceamentos até o fim da ditadura resultado das grandes lutas e mobilizações sociais pela democratização do país. Ficaram presos os nossos representantes de direções nacionais, Luiz Travassos, Vladimir Palmeira e José Dirceu, que só sairiam da prisão e do país juntamente com mais 12 presos políticos em troca da soltura do embaixador americano Charles Burke Elbrick sequestrado em 1969. Na PUCSP lutávamos contra a reforma universitária e pela autonomia e democracia universitária como lutamos em 2006 contra o redesenho institucional e a intervenção da Fundação São Paulo, consagrada no novo estatuto em 2008, e contra a quebra da autonomia e democracia universitária ocasião em que o Cardeal D. Odilo Scherer, arcebispo da cúria metropolitana de São Paulo, indicou a terceira e última colocada no pleito para reitor(a) em 2012 e passou por cima da soberania das urnas. Pela primeira vez, desde 1980, o cardeal não referenda nas eleições o reitor(a) mais votado(a).
Em 1977 a PUCSP abrigou a SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – que havia sido proibida de ser realizada na Universidade Estadual do Ceará – assim como abrigou o III Encontro Nacional da UNE que havia sido reprimido e não conseguiu se realizar na USP no campus Butantã, e sequer na Faculdade de Medicina, e teve como um único ponto de pauta a reconstrução da UNE. Mediante esses fatos houve a Invasão na PUCSP comandada pelo coronel Erasmo Dias e sua tropa de choques que feriu muitos estudantes, três jovens tiveram queimaduras graves e em torno de 1.000 pessoas foram presas. A reitora D. Nadir Kfouri disse ao coronel quando tentou lhe cumprimentar: “não dou as mãos a assassinos”. Logo após o decreto nº 477 em 1969, inúmeros professores de universidades públicas foram aposentados compulsoriamente pelo governo civil-militar vigente. A PUC-SP, em 1979, abrigou vários acadêmicos perseguidos pela ditadura: Florestan Fernandes, Octavio Ianni, Maurício Tragtenberg, Paulo Freire, José Arthur Gianotti, Bento Prado Júnior e Paul Singer com liberdade total para que eles dessem suas aulas, sem censuras como o regime previa.
Lutamos em 2007, no Estado democrático de direito, contra a invasão da Tropa de Choque com a autorização da reitora Maura Veras assim como lutamos em 2012 contra a nomeação da terceira colocada no pleito a reitora nomeada Anna Maria Marques Cintra que publicamente em um debate assinou um termo de que não assumiria caso não fosse a mais votada e assumiu.
Lutávamos e lutamos contra o imperialismo e o capitalismo lá na ditadura e hoje na democracia burguesa contra a exploração e opressão social de classe, gênero, raça/etnia.
O legado de 1968 e a continuidade na luta pela democratização do país têm em 1977 a retomada dos movimentos sociais, do movimento sindical classista com as grandes greves operárias, a Fundação da CUT autônoma e independente em 83. É um período de grandes mobilizações e organizações sindicais, de organização dos movimentos populares, da reorganização do movimento estudantil, da ampla mobilização pela liberdade de expressão, manifestação e organização, contra a lei de segurança nacional e pela anistia ampla geral e irrestrita, momento que se caracteriza pela crise da autocracia burguesa no país.
A APROPUC que foi fundada há 38 anos em 25/09/76 é parte dessa trajetória de lutas, assim como O ANDES (Sindicato Nacional) antiga ANDES - Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior. Na PUCSP tivemos a conquista do contrato de carreira composto pelo ensino, pela pesquisa e pela extensão que se encontra ameaçado, com tabelas diferenciadas para o mesmo trabalho de professores, com maximização do trabalho, demissões permanentes de funcionários(as), fechamento de turmas, com redução de contratos de professoras em uma concepção de ensino e de universidade cada vez mais elitista e mercantil, e continuamos na luta...
O Fio Vermelho nos Move
1968 nos traz lições com nossos erros, mas também a convicção teórica, política e ideológica de um FIO VERMELHO que nos moveu e nos move na luta pela igualdade e liberdade: pelo fim da sociedade de classes, pelo fim da exploração do trabalho humano, do trabalho alienado, da opressão de qualquer ordem, da propriedade privada dos meios de produção, pela auto organização dos indivíduos sociais livres, a luta pelo socialismo a que Marx denominou comunismo, na possibilidade histórica de luta contra a barbárie na direção da emancipação humana.
Lá e cá O Fio Vermelho nos Move.
Ana Mercês Bahia Bock
Ingressei no curso de Psicologia em 1970 e fiquei até 1975, pois naquela época o curso era de 6 anos. Tornei-me professora em 1976 (agosto). Participei ativamente do TUPUC, do CUCA, da criação do Centro Acadêmico da Psicologia, do Grupo Proposta e da APROPUC.
Ingressei na PUCSP, no curso de Psicologia, em 1970. A PUC era um espaço morto. Não havia ninguém nos Diretórios Acadêmicos nem para fazer nossa carteirinha de estudante, que possibilitava meio ingresso nos cinemas e passe de ônibus. Quando perguntávamos pelas pessoas, ouvíamos: não tem aparecido; está presa. Presa? O que significava aquilo? Não se falava nada mais. Todos tinham medo. O AI -5 de 1968 e o Decreto 477 de 1969 eram responsáveis pelo esvaziamento da PUCSP. Mas não se falava sobre isto.
Suportar 1970 não foi fácil para mim. Não entendia nada do que estava se passando e ninguém se dispunha a explicar. Se não me engano, foi o Diretório Acadêmico de Economia que fez nossas tão desejadas carteirinhas de estudante. O da Filosofia São Bento permanecia fechado.
Interessante registrar que sabíamos, naquela época, que só poderiam existir Diretórios Acadêmicos, pois Centros Acadêmicos eram livres e não podiam existir. Havia Diretórios e Atlética. Parte de nossas mensalidades era encaminhada, pela Reitoria, aos Diretórios.
Não fazíamos nada que se poderia chamar hoje de movimento estudantil. No meu curso havia um CEPSI – Centro de Estudos de Psicologia. Ali faziam-se apostilas que eram vendidas aos alunos. Talvez cursos, grupos de estudo também acontecessem.
Mas em 1972 começaríamos a ver mudanças neste cenário.
Em 1971, os alunos que ingressaram na PUCSP já “pegaram” o Ciclo Básico. A mudança vinha do governo federal, Decreto-Lei 464/69, portanto relacionada às políticas MEC-USAID nas Universidades, mas, pela avaliação de muitos colegas, professores e alunos, uma das melhores coisas que a PUCSP fez. Soube tomar a imposição dada pela reforma universitária da ditadura e construir uma excelente experiência de integração e debate crítico. O Ciclo Básico, além de pedagogicamente adequado, oferecia ainda a possibilidade de integração entre alunos de vários cursos. Talvez fosse isto que estava faltando para dar a vida política à PUCSP, mesmo considerando suas intenções econômicas e políticas advindas da ditadura, em seus acordos MEC-USAID.
Em 1972, como estratégia para reativar os Diretórios Acadêmicos, foram criados dois grupos: o coral – CUCA e um grupo de teatro – TUPUC. Cabe aqui uma informação. O TUCA – Teatro da Universidade Católica era um grupo que havia nos antecedido na segunda metade dos anos 60 com muito sucesso em sua empreitada – ganhou prêmio em Nice com Morte e Vida Severina – e, com certeza, “infiltrado” de grupos políticos de esquerda que lutavam contra a ditadura. Nosso grupo, anos depois, tentou utilizar a denominação Teatro da Universidade Católica, mas, o então reitor Geraldo Ataliba não autorizou. Ele nos dizia que não poderia se responsabilizar como Universidade pelas iniciativas de grupo de universitários e então fomos batizados como Teatro dos Universitários da PUCSP - TUPUC. Não recebíamos qualquer ajuda da Reitoria e não tínhamos nem mesmo espaço para fazer nossos ensaios. Quem nos acolheu, tanto ao grupo de Teatro quanto ao Coral, foi a Casa Paroquial. Ali, Padre Gilson e Padre Mauro organizaram um espaço no andar debaixo para que pudéssemos fazer ensaios e reuniões.
Isto, reuniões. Além dos ensaios, eram realizadas reuniões políticas estudantis. Começava ali, naquele espaço, uma articulação política entre vários grupos de estudantes de vários cursos universitários de São Paulo: UFSCar, USP, FVG e PUCSP.
O coral não atraiu, talvez pela sua natureza, um grupo interessado na organização política dos estudantes; mas o TUPUC sim. Dali saímos para criar os tão desejados e livres Centros Acadêmicos; dali saiu uma articulação de estudantes de todos os cursos da PUCSP, inclusive a oposição ao D.A. do Direito, dominado por um grupo conservador de direita.
Lembro que para colocarmos cartazes nas paredes da PUC tínhamos que chegar ao Vice-Reitor ou a um dos funcionários da reitoria. Sem a assinatura do senhor Penteado, nossos cartazes não poderiam permanecer nas paredes.
Em 1973 ou 1974 já tínhamos representantes discentes no CONSUN. Fizemos movimentos contra aumento de mensalidades, pelo uso do espaço; e conseguimos o salão Beta, hoje TUCArena, para fazer “sambão”, recolhendo dinheiro para nossas atividades. Rodávamos panfletos em mimeógrafo Offset, divulgando notícias sobre a luta contra a ditadura e o movimento estudantil. O TUPUC continuava sua carreira teatral, sendo veículo importante desta luta.
Padre Gilson e Padre Mauro, sempre atentos a nossas atividades, cuidavam de todos. Visitavam o DOPS, toda semana, para saber onde estavam os estudantes presos; a PUCSP não entregava listas de alunos que dirigiam os Diretórios Acadêmicos; não os fechava. Trazia para os cursos professores que eram afastados, “por subversão”, da USP. Dom Paulo estava também sempre presente, cuidando da PUCSP e resistindo à ditadura.
A PUCSP ia se tornando, aos poucos, um espaço para respirar quando a ditadura nos sufocava: reuniões frequentes de grupos estudantis; membros dos diretórios que ingressavam em grupos ou partidos políticos “clandestinos”.
Em 1975, depois de intensa movimentação e trabalho, criamos o primeiro Centro Acadêmico livre, no curso de Psicologia. A escolha pela Psicologia se deu exclusivamente pelo fato de que, este curso havia sido transferido para a Rubem Berta – onde hoje é o DERDIC – e acreditávamos estar mais longe dos olhos repressivos da reitoria.
Outros Centros Acadêmicos pipocaram em seguida. Criamos o grupo Proposta que articulava os CA’s e a oposição do Direito para atuação conjunta na PUCSP.
O TUPUC existiu até 1977. O Coral existe até hoje. Foram importantes ferramentas ou “disfarces” para a luta estudantil que acontecia “no subterrâneo” da Casa Paroquial.
Em 1976 foi criada a APROPUC – Associação dos Professores da PUCSP.
Em 1976 foi indicada como reitora a profa. Nadir Kfouri, que seria eleita, na primeira eleição direta para reitor em uma Universidade, em 1980.
De 1980 a 1982 aconteceu uma Comissão para reforma do Estatuto da PUCSP, procurando garantir-lhe seu espírito democrático.
Em 1977, a PUC acolheu a SBPC, em julho, proibida de acontecer em universidades públicas, e a reunião geral dos estudantes para reconstrução da UNE, em setembro. Isto lhe custou uma invasão da polícia, comandada pelo Coronel Erasmo Dias. Mas a PUCSP já havia crescido e estava completamente preparada para estes enfrentamentos. A invasão não abalou a PUCSP, apenas reforçou sua disposição democrática.
Importante lembrarmos que, a partir de 1968, o Brasil vivia em plena ditadura civil militar orquestrada como ação política do governo dos EUA, através da chamada Operação Condor, que promovia golpes de estados, derrubando governos eleitos democraticamente em vários países latino-americanos.
Os órgãos de repressão cumpriam seus objetivos de prender e torturar aqueles que lutavam contra a ditadura até conseguir respostas satisfatórias. Eram submetidos: homens, mulheres, brancos, negros, religiosos, civis ou militares. Tudo patrocinado por grupos empresariais brasileiros e estrangeiros sob a direção do oficialato das nossas Forças Armadas. As manifestações contra a censura às artes em geral, as denúncias feitas pela imprensa alternativa, Anistia Internacional, entre outras entidades, não impediam as violações sistemáticas dos direitos humanos. Hoje, vivemos em uma democracia e temos acesso aos documentos que narram as atrocidades cometidas neste período. Basta consultá-los!
Alguma reflexão sobre a composição da massa universitária
No campus Monte Alegre, à tarde, funcionavam algumas faculdades como Pedagogia, História, Geografia, Serviço Social e Ciências Sociais. No intervalo das aulas, ao entrar no restaurante da PUC, sempre me chamava atenção a quantidade de mulheres brancas. Os universitários que estudavam à tarde eram mais ou menos 95%, de brancos; o restante se distribuía entre homens e mulheres negras, não ultrapassando mais de vinte afro-brasileiros. A sensação era estranha num período com centenas de universitários!
As minorias eram bancários(as), filhos de pequenos comerciantes. O restante era formado por muitas normalistas e as filhas da burguesia industrial, financeira e latifundiária. Na parte da manhã, a composição afro-brasileira era mais diversificada, não mudando muito o perfil social. A grande diferença se dava no período noturno com mais de mil alunos. A maioria era formada de trabalhadores do comércio e indústria, além de profissionais liberais. A presença afro era maior que a dos dois períodos juntos.
Mesmo diante de toda essa desigualdade social e racial a convivência e integração universitária foram possíveis, justamente pelo Ciclo Básico, produto da Reforma Universitária imposta pelo Acordo MEC-USAID, aprovado e legitimado pela ditadura a que os brasileiros eram submetidos.
O acolhimento e a luta por liberdades democráticas
A recepção aos calouros, em 1972, possibilitou a retomada de contatos em todos os campi da universidade católica. As atividades dos Centros Acadêmicos que funcionavam, estavam restritas às vendas de carteirinha de estudantes, apostilas, bolsas de pano e bijuterias. O CA de Filosofia e Ciências Sociais, além de atender a demanda comum a todos, conseguia algumas bolsas de estudo, parcial, em acordo com a reitoria, aos alunos que não podiam continuar pagando as mensalidades.
Começamos a inventar “Cais”, como diz a letra da música de Milton Nascimento. A atividade cultural chamada “Sambão” tinha a participação de componentes de Escola de Samba Camisa Verde e Branca e era promovida pelo Diretório Acadêmico da faculdade de Economia. Começou tímida, realizada uma vez por mês aos sábados, no salão embaixo do Teatro da PUC. O “Sambão” além da diversão ajudou na aproximação com estudantes de vários lugares, a construção de uma pequena gráfica para a produção de apostilas que eram utilizadas nos cursos.
As instalações da universidade eram controladas pela administração. O Tuca era reservado para shows e apresentação de peças teatrais. Estudantes não tinham permissão para uso. Fomos se soltando, começamos a fazer reuniões no salão da paróquia da PUC, com o apoio de dois padres solidários, e assim criamos o TUPUC – Teatro dos Universitários da PUC, em seguida o CUCA – Coral dos Universitários Católicos. A vida acadêmica começava na segunda e só terminava no sábado à noite. Assim se formou um grupo universitário que tinha interlocução com a reitoria, a maioria dos professores do Ciclo Básico e em 1973, conseguimos acesso às instalações e a reabertura dos CAs. Esses dois grupos agregavam mais de uma centena de universitários que estudavam e se apresentavam em outros campi e algumas cidades do interior paulista.
A crise financeira da PUC e a reorganização do Movimento Estudantil
A cobrança de uma sobretaxa pela PUC para a rematrícula dos alunos foi o rastilho de pólvora para a retomada do Movimento Estudantil na Universidade Católica. Os universitários que podiam pagar se sensibilizavam com os argumentos dos que não podiam e teriam que abandonar ou trancar a matrícula. Panfletos eram distribuídos nas salas de aula com a visita da Comissão de alunos, que explicava as razões do boicote à Sobretaxa. Cada faculdade tinha grupos de alunos organizados trabalhando contra a cobrança. A reitoria não esperava tal reação e abriu negociações com uma comissão de alunos para colocar seus argumentos.
A representação estudantil no Conselho Universitário
As atividades realizadas pela representação estudantil foram importantes para consolidar a Reforma Universitária, principalmente a implantação e consolidação do Ciclo Básico. A defesa e a divulgação dos atos do Conselho junto à comunidade visavam dar transparência ao processo em andamento na Universidade.
A luta pela manutenção dos preços das mensalidades compatíveis com a permanência na Universidade dos estudantes mais carentes culminou com o enfrentamento da política de sobretaxas - ou a tentativa da direção da Universidade de implantar esta política. A representação estudantil travou, na plenária do Conselho e fora dele, um grande movimento para preservar as condições dos valores cobrados pela Universidade.
A representação estudantil acompanhou e fiscalizou a construção do Prédio Novo. Estas ações e outras eram divulgadas em reuniões e assembleias estudantis, o que permitiu formar uma grande consciência da situação vivida pela Universidade e os seus diferentes cursos.
O Conselho Universitário por proposta da representação estudantil constituiu um Grupo de Trabalho para tratar da criação e transformação dos Diretórios em Centros Acadêmicos estudantis, sem a interferência do Decreto 477.
Apoio às manifestações culturais na PUCSP, tais como formação de grupos teatrais, corais e shows, defesa do Ensino público e gratuito, bem como a melhoria de sua qualidade, visando o fortalecimento do Movimento Estudantil na PUCSP e em outras Universidades.
A realização de reuniões e Assembleias para combater a ditadura militar e a conquista das liberdades democráticas. Neste sentido, a representação estudantil no Conselho Universitário da PUCSP foi de grande valia para os resultados alcançados no período.
A PUC vivia um dos períodos mais fecundos de liberdade de expressão e em defesa de presos políticos. E pagou um preço amargo anos depois com a invasão do campus pelas tropas da PM, liderada pelo secretário de segurança da ditadura, usando bombas causando queimaduras irreversíveis em dezenas de estudantes.
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Astrogildo Bernardino Esteves Filho - No fim de 1970, prestei vestibulares para Comunicação da USP, e fui reprovado, e Ciências Sociais da PUCSP. Entrei para a Faculdade de Ciências Sociais e Serviço Social da PUC, em 1971, me classificando para o período da tarde. No primeiro dia de aula, fui recebido pela Comissão de Calouros com atividades culturais, no lugar do trote tradicional. Surpresa agradável e muito convidativa. Minhas experiências do período colegial, convivência em Grêmio Estudantil, de teatro amador e de cineclubismo foi um grande combustível para tocar a jornada por liberdades democráticas. Conclui a faculdade em 1976, mas a PUC exigiu que eu refizesse, novamente, os créditos do Ciclo Básico, pois houve a reforma da reforma. Recorri ao Conselho Universitário exigindo direitos adquiridos. Ganhei o recurso, mas só fui diplomado em 1980. Fui trabalhar na chamada Imprensa Alternativa, revista VERSUS, e abracei o jornalismo para viver.
Ivan Fernandes Neves - Fui aprovado no vestibular de Ciências Contábeis da Faculdade Coração de Jesus, faculdade vinculada à PUCSP, em 1972. Cursei o 1º ano no curso básico da Faculdade de Ciências Contábeis. Apesar do esforço, não consegui me adaptar à concepção do curso. Mudei para Ciências Econômicas na mesma faculdade, porém não percebi nenhuma diferença significativa. Assim, decidi mudar para Ciências Sociais da Faculdade de Ciência Sociais e Serviço Social, escola esta que já fazia parte da Reforma Universitária da PUCSP; nela cursei o Ciclo Básico. Neste período eu já era membro do Centro Acadêmico e fui eleito representante dos estudantes no Conselho Universitário e durante quatro anos vivi grandes experiências.
1966-68
Em 1966, fui aprovado na Economia da PUC-SP e, em 1967, na História da USP. Porém, minha atividade militante foi essencialmente desempenhada na PUC. Na época, a direita controlava o Centro Acadêmico da Economia. Já como calouro, eu me aproximei de um grupo de colegas que fazia oposição à diretoria do Centro Acadêmico Leão XIII. Era um núcleo de simpatizantes da Ação Popular (AP) do qual faziam parte, entre outros, Carlos Eduardo Lobo (irmão de Elsa Lobo) e Rodolfo Dias Barzaghi, posteriormente membro do Grupo Tortura Nunca Mais.
Iniciei minha participação na AP na condição de simpatizante com leitura e discussão do texto fundador intitulado “Documento de Base”. A primeira atividade da qual participei, tanto como oposição ao Centro Acadêmico de direita, como simpatizante da AP, foi a edição de um boletim intitulado Esquema Novo, publicação que perdurou de 1966 a 1968. O boletim publicava artigos econômicos como a crise do padrão ouro, o papel do FMI, a degradação dos termos de troca, o capital estrangeiro, o arrocho salarial, bem como sobre a qualidade do ensino e as anuidades. Além de manter um painel com artigos diversos sobre questões políticas e econômicas e especificas à PUC e à Faculdade de Economia. O impacto da publicação e do painel foi surpreendentemente positivo: permitiu aglutinar um número importante de estudantes em torno de nossas propostas.
Já não mais como simpatizante da AP, mas como militante, participei da organização do Congresso da UNE em Valinhos, que elegeu Luís Travassos. Em 1968, participei como delegado do 30° Congresso da UNE realizado em Ibiúna, evento clandestino que foi invadido pelas tropas PM/SP. Foram presos aproximadamente mil estudantes originários de todos os quadrantes do Brasil. Praticamente todas as faculdades e universidades de todos os Estados da União estavam representadas no Congresso. Em março de 1969, participei do congresso clandestino que elegeu Jean Marc von der Weid presidente da UNE, também militante de AP, quem iniciou a pesada tarefa de reorganização da entidade.
1968 na PUC-SP
Em 1968, um número significativo de estudantes da PUC/SP participou das grandes manifestações contra o regime militar e sua política educacional. A luta dos chamados “excedentes”, estudantes que se qualificaram com boas notas nos exames de vestibular, mas que não podiam se matricular por falta de vagas na PUC/SP, era o prenúncio dos eventos que marcaram o ano de 1968. Esta luta foi vitoriosa. Também foi intensa a participação de alunos da PUC/SP na grande manifestação diante do Teatro Municipal de protesto contra a repressão que causou a morte do estudante Edson Luís, assassinado pela polícia durante a invasão do restaurante do Calabouço, no Rio de Janeiro, em março de 1968. O mesmo se pode dizer das inúmeras manifestações no centro da cidade contra a ditadura, a guerra do Vietnã, o imperialismo americano, os acordos MEC-USAID, contra a cátedra vitalícia, as anuidades elevadas, manifestações, muitas das quais terminavam em confronto violento, com gás lacrimogêneo, cassetetes, feridos e prisões. O enfrentamento culminou com a morte do estudante José Carlos Guimarães durante o conflito entre a esquerda da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, na rua Maria Antônia e a direita da Universidade Mackenzie.
A ocupação do campus da PUC em meados de 1968 foi motivada pelo aumento de mensalidades e contou com a participação dos alunos do Direito, Economia e Filosofia. Ela foi decidida em assembleia realizada TUCA que aprovou a proposta de ocupação por mim defendida no plenário. A ocupação durou três meses e foi encerrada com acordo negociado na casa do reitor Bandeira de Melo, que suspendeu o aumento de mensalidade. Além disso, o reitor ofereceu 1/3 da representação no conselho universitário para os estudantes, proposta recusada pelos representantes dos estudantes das diversas faculdades.
Aplicação do Decreto 477 na PUC/SP
O diretor da Faculdade de Economia da PUC/SP, Vespasiano Consiglio, personagem ligado ao governo Sodré e um dos diretores do Banespa, constituiu uma comissão de quatro professores para a aplicação do decreto 477 na Economia. Com isso, o diretor retaliava a publicação de uma avaliação dos professores da Economia realizada pelo nosso grupo de oposição. Por meio da aplicação de um questionário aos estudantes, avaliamos a percepção que tinham da qualidade de ensino ministrada por cada um dos professores. Ora, a qualidade de ensino foi considerada sofrível, particularmente a desse diretor. Por esta razão, nós fomos chamados a prestar depoimento junto à comissão. Em meu depoimento, acusei os professores membros de agir, conscientemente ou não, como prepostos da ditadura e que ao invés de se preocuparem com a qualidade do ensino que eles mesmo ministravam, preferiram se curvar a um decreto autoritário, por medo ou concordância ideológica. Nunca soube qual foi o resultado da comissão, pois tive que deixar de frequentar a Universidade e passar a viver na clandestinidade.
Ao chegar a São Paulo para fazer curso superior, eu não era novato em política. Havia participado do movimento secundarista em Poços de Caldas, cidade onde nasci. Fui presidente do Grêmio Afonso Celso do Colégio Marista e um dos fundadores da União Municipal de Estudantes da cidade, entidade da qual fui Secretario. Em 1964, participei como delegado do Congresso da UCMG (União Colegial de Minas Gerais) em Governador Valadares. Eu era o que se chamava de “área próxima” da corrente progressista católica existente na cidade, sem ser, porém membro da Juventude Estudantil Católica (JEC). Mas tinha conhecimento da ruptura ocorrida no movimento político católico com o surgimento da AP - corrente de esquerda cristã que se liberou da tutela das cúrias. A aproximação da AP em São Paulo foi como um prolongamento da atividade militante que exercia no sul de Minas.
Além do mais, eu tinha resistências a me aproximar do PCB. Não que fosse anticomunista, mas sim, não comunista alinhado a Moscou. Em parte, a atitude de distância foi decorrente da leitura da “Vida de um Revolucionário – Memórias”, livro de Agildo Gama Barata Ribeiro, no qual o ex-dirigente e ex-membro do Comitê Central do PCB relata as razões de sua ruptura com o “Partidão”. Tenentista de destaque durante a revolução de 1930, bem como um dos principais artífices da malograda tentativa de revolução de 1935 promovida pelo PCB sob instigação do Comintern, Agildo, pai de talentoso artista cômico brasileiro, denuncia com veemência a prática do centralismo democrático, autoritarismo de matiz leninista e a invasão da Hungria pelas tropas soviéticas, em 1956. Além destes aspectos que me atraíam, dois anos apos o golpe de 1964, a AP ainda continuava bem implantada no Movimento Estudantil, assim como na PUC/SP.
A presença da AP no ME brasileiro era predominante. Em 1966, vários centros acadêmicos, bem como o DCE Livre da PUC/SP já existiam de maneira orgânica e clandestina graças à AP. A UEE/SP e a UNE estavam alinhadas com o programa da AP. Neste quesito, o exemplo de São Paulo era eloquente. Apos o Golpe de 64, Luís Travassos foi eleito presidente do DCE/PUC/SP, Antonio Funari preside da UEE/SP e Xavier da UNE - todos militantes de Ação Popular. Em seguida, Dárcio Paupério Sério foi eleito presidente do DCE/PUC/SP, Luís Travassos preside a UEE/SP e Luís Carlos Guedes, de Minas Gerais, preside da UNE - igualmente militantes da AP. Em 1968, eu fui eleito presidente do DCE/PUC/SP, enquanto Catarina Meloni presidia a UEE/SP e Luís Travassos presidia a UNE. Todas as faculdades da PUC/SP tinham diretórios acadêmicos eleitos pelo voto direto e eram ilegais. O movimento estudantil da PUC-SP era na sua maior parte dirigido pela AP e sua influência era marcante no Sedes Sapienciae, no campus de Perdizes na rua Monte Alegre, na FEI em São Bernardo do Campo, na medicina de Sorocaba, na Administração da Rua São Joaquim e nos dois cursos de Serviço Social.
A partir de 1966, a AP conheceu uma evolução em direção ao marxismo. O documento que exprime esta mudança, intitulado “Debate Teórico-ideológico”, de inspiração althusseriana, conduz a varias defecções na organização em todo o país, particularmente de militantes de formação cristã. A PUC/SP não ficou imune a esta depuração. Em 1968, outra divisão contribui novamente para nova sangria de militantes da AP em todo pais e na PUC em particular. Trata-se de luta interna entre a linha foquista, próxima das teses cubanas, que criam um efêmero grupúsculo denominado PRT, e a linha pró chinesa, maoísta que, vencedora, conquistou a direção da organização.
A AP maoista passou a defender a guerra prolongada, o cerco das cidades pelo campo, a integração na produção, tanto no campo quanto na fábrica, o caráter feudal e semifeudal da sociedade brasileira, a Revolução Cultural. Novamente, a AP voltou a perder um número significativo membros. Neste processo autofágico, os militantes da AP da PUC/SP foram alijados da direção municipal e estadual da organização no movimento estudantil. As decisões políticas da AP, no âmbito do movimento estudantil de São Paulo, assim como o contato com as instâncias superiores da organização ficaram sob responsabilidade do núcleo da AP da USP. Este grupo não tardou a mergulhar em um maoísmo desabrido e irresponsável, particularmente em 1969. Como anjos caídos, os militantes da PUC foram rebaixados à condição de simpatizantes ou “área próxima” da AP.
Clandestinidade e saída do Brasil
Durante a greve de Osasco, em 1968, fui instado pela organização a mobilizar estudantes e militantes da PUC/SP a prestar solidariedade aos grevistas de Osasco. Sem conhecimento e levantamento prévio da cidade, fomos distribuir panfletos nos bairros populares. Sem me dar conta, caminhei em direção a uma avenida movimentada onde fui preso por agentes do DOPS. Fui acusado de incitar os operários à greve e de promover atos subversivos. Após o Ato Institucional Nº5, a Justiça Militar decretou minha prisão preventiva em maio de 1969. Desde então, entrei na clandestinidade. Passei a frequentar esporadicamente a sede do DCE situado no campus de Perdizes. Em outubro de 1969, a Justiça Militar me condenou a 18 meses de prisão. Ora, para enfrentar a clandestinidade, é preciso mudar de identidade, graças a documentos falsos. Solicitei aos dirigentes da AP que me providenciassem documentos, mas sem sucesso. A AP estava muito aquém de suas ambições revolucionárias e revelou-se incapaz de assegurar mínimas condições de existência a seus quadros. Um colega da economia militante da ALN, Carlos Lichenstein, a quem contei a dificuldade pela qual passava, se comprometeu a me fornecer uma carteira de identidade e um título de eleitor falsos. Para tal, lhe entreguei suas fotos. Infelizmente, a polícia descobriu o local onde a ALN falsificava documentos, inclusive os meus. A partir deste episódio, passei a ser procurado juntamente com outros militantes da ALN. Até então, apesar de ter prisão preventiva decretada, a repressão pouco se interessara por minha pessoa. Mas, após este indício de proximidade com a ALN, a repressão passou a me procurar em vários lugares onde havia morado em São Paulo, inclusive na casa de minha família no interior de Minas. Certo dia, no campus de Perdizes, cruzei com o Reitor Bandeira de Melo. Ele mandou me chamar e me informou que a polícia política havia estado no campus por duas vezes à minha procura e à procura do Gabriel e de um terceiro estudante que, se a memória não me falha, era o Vannuchi, ambos da ALN e do Direito. Saliento que esta tendência foquista estava bem implantada no Direito da PUC, sendo José Dirceu o principal representante desta corrente. A partir de então, preveni os responsáveis da AP que não poderia mais assegurar minha militância no DCE, pois estava muito exposto. Mas fui instado a “continuar na luta, pois tinha responsabilidades como dirigente de massas e não poderia abandonar meus compromissos”. Descontente com minha recusa, a AP, por meio de um panfleto assinado por toda diretoria do DCE, me atacava “por ter abandonado a luta”. Um “desbundado”, em suma, como se dizia na época.
A partir de 1969, o apoio que colegas da PUC/SP ou simpatizantes da AP me davam, diminuía a olhos vistos. A solidariedade passou a ser inversamente proporcional à intensidade com a qual a Repressão se abatia sobre as organizações revolucionárias. E não poderia ser diferente.
Mas a direção da AP, seja ao nível nacional, estadual ou local, nunca compreendeu que o clandestino político nunca pode estar só. A sua sobrevivência depende de um Partido, ou de organização, rede ou grupo. A clandestinidade é uma das formas de ação política que prospera na ausência de liberdades. Ela se estende por um terreno amplo e diz respeito a todo tipo de ação ilegal, mas que não necessariamente é ilegítima. Mas nem toda forma de resistência à opressão chega a organizar-se como tal.
O clandestino faz parte de um coletivo que depende tanto do suporte interno de militantes organizados, quanto uma rede externa de simpatizantes legais com afinidades com a “causa” defendida. Graças a essa identificação política, os circuitos de apoio externo ousam abrigar os proscritos por dias, semanas, até meses, além de alimentá-los e vesti-los, se necessário, entre outros misteres.
Uma organização política como era a AP e outras semelhantes à época é conduzida por grupo dirigente oculto e centralizado que define a linha política geral e as ações que militantes e simpatizantes levam a termo para alcançar os objetivos táticos e estratégicos. Subordinados ao comando dirigente, os militantes são responsáveis pela criação e a manutenção de células da organização e do círculo de simpatizantes. Trata-se de uma complexa estrutura piramidal que pode ser organizada em instâncias nacional, regional e municipal, ou ainda por bairros e setores de atividade econômica e social. E necessário ampliar seu raio de ação continuamente, recrutar pessoas confiáveis e garantir a logística indispensável ao cumprimento de seus propósitos.
Mas, há um problema! A ordem clandestina é insaciável consumidora de recursos materiais e humanos. Exige uma coordenação abstrusa e regras e disciplina estritas, pois opera em situação adversa. O dinheiro, por exemplo, nunca é suficiente, seja para preparar ações elaboradas ou para o custeio do quotidiano. Manter casas e apartamentos como moradia ou refúgio, os “aparelhos” no jargão da época, além do alto custo econômico, implica em firmar contratos de aluguel com nome, endereço e renda de locatários e fiadores, reais ou falsos. Dispor de locais para reuniões e congressos clandestinos é mais um aspecto das dificuldades da ilegalidade. Como a repressão está diariamente ao encalço dos militantes, os aparelhos podem ser rapidamente abandonados por razões de segurança ou então “estourados” pela polícia. Se a alta rotatividade de aparelhos é um problema grave com a intensificação da Repressão, não é difícil de imaginar a enorme quantidade de recursos que são necessários para manter gráficas, produzir documentos falsos, dispor de veículos, armas, munições, explosivos, roupas, disfarces e em distintos lugares.
A circulação de informações tanto interna quanto externa é o calcanhar de Aquiles da organização clandestina. Para alcançar os objetivos propostos pela organização, é necessário divulgar a orientação política, promover ações de agitação e propaganda armadas ou não. Por essa razão, as regras de segurança devem ser respeitadas por ocasião de deslocamentos e encontros. Forjar outra identidade graças a documentos falsos e nomes de guerra é também um imperativo de sobrevivência. Quanto menos um militante souber da vida pregressa de outro, mais seguro o grupo político se sente. Desconhecer o nome, o estado civil, a profissão, a residência, o local de trabalho, as afinidades culturais, os hábitos dos companheiros deve ser a regra. Confundir-se no meio da massa anônima, construir uma aparência anódina e transformar-se em uma pessoa qualquer é condição indispensável à sobrevivência individual e a do grupo. Ao passar por aquilo que não é, o clandestino encarna um personagem tal como um ator no tablado, sem a vantagem do reconhecimento da plateia.
Mas nada disto era discutido ou mesmo formulado pela direção da AP. Quando coloquei a um dirigente local as dificuldades que tinha para encontrar um lugar onde morar, notadamente em consequência da falta de dinheiro - não podia trabalhar - a resposta que recebi foi delirante: a origem de classe, pequeno burguesa, me impedia de apoiar-me nas massas, condição indispensável para superar dificuldades, conforme os ensinamentos de Mao Tsé Tung.
As organizações clandestinas evoluem com o sentimento de viverem sitiadas pelos inimigos e isso não sem razão. A AP não fugiu a esta regra. Como subproduto de uma situação desconfortável, a unanimidade deve prevalecer entre todos os membros. Não há lugar para divergência; a coesão é percebida como um fator capital à sobrevivência do grupo. Os “desviantes”, contestadores ou discordantes são imediatamente identificados como suspeitos que comprometem a harmonia do grupo. A exclusão, a cisão, o fracionamento são consequências dessa exigência.
Mas foi graças às quantias modestas que a família me enviava por vias tortuosas que pude me hospedar em quartos de aluguel. Eram locais destinados a trabalhadores que vinham tentar a sorte na cidade grande: garis, balconistas, garçons, ajudantes, faxineiros... No máximo três camas e um guarda-roupa comum mobiliavam o quarto, sem espaço para privacidade, nem conversas. Dormiam e levantavam cedo e reclamavam do barulho. Tampouco suportavam que a luz ficasse acesa após o recolhimento e me faziam compreender que não havia lugar para leitura. Era assim obrigado a levantar-me bem cedo, simular todos os dias a partida ao trabalho e não voltar tarde.
Era no convívio com colegas da PUC onde me sentia à vontade, sem necessidade de inventar uma máscara. A solidariedade se manifestou através de ajuda em dinheiro, de refeições e até mesmo da doação de roupas que me davam uma aparência apropriada. Nesses tempos de chumbo, ser solidário significava correr um enorme risco. Numerosos brasileiros dos quatro quadrantes pagaram um alto preço por abrigar uma pessoa perseguida pela súcia fardada ou não.
Como já assinalei, a AP não tinha esquema para me esconder em São Paulo ou alhures. Passei por inúmeros refúgios, inclusive em Jundiaí. Finalmente, a direção da AP me propôs de ir para o Nordeste “abrir trabalho na pequena-burguesia”, mas na qualidade de simpatizante e sem maiores precisões. Decidi sair do Brasil. José Carlos Mata Machado, militante da AP e mais tarde assassinado pela Ditadura, organizou o esquema de saída do país. Ele me entregou negativos de fotos do jornal clandestino da AP, o Libertação, que entreguei ao núcleo da AP no Uruguai. Em Porto Alegre, os responsáveis da AP que tinham a incumbência de me fazer atravessar a fronteira não cobriram o ponto. Acabei passando a fronteira do Chuí sozinho, de ônibus, utilizando uma carteira de identidade que eu mesmo falsifiquei, trocando a fotografia (processo complicado, pois nem todas tentativas de abertura do documento no vapor d’água tinham sucesso). Após inúmeras tentativas consegui falsificar um documento com características próximas às minhas (idade, nome compatível, não podia ser nome japonês, por exemplo). Minha fonte de documentos eram as guaritas situadas no final das linhas de ônibus. Nestes locais havia sempre uma caixa onde ficavam guardados os documentos perdidos na linha de ônibus. Eu os surrupiava desde que houvesse um momento de desatenção, mas na esmagadora maioria das vezes eram incompatíveis. Mais tarde, fiquei sabendo que a direção da AP no Rio Grande do Sul decidiu não cobrir o ponto alegando que eu passara a ter uma relação de hostilidade com a entidade. Do Uruguai parti para o Chile, onde pedi asilo. Após o golpe do Chile contra o governo de Salvador Allende, fui preso no Estádio Nacional durante três meses. Graças a intervenção do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados e Apátridas, eu recebi asilo político na França, onde terminei meus estudos e trabalhei e vivi por mais de 30 anos.