Em 01 de setembro de 1970, indicado por D. Aloísio Lorscheider, secretário geral e presidente da CNBB, D. Paulo assumiu o cargo de Cardeal Arcebispo de São Paulo, após a promoção de D. Agnelo Rossi a um alto cargo da cúria romana.
Naqueles anos de chumbo, D. Paulo fez diversas intervenções em favor dos presos políticos, entre eles religiosos, alguns participantes ativos e difusores da Teologia da Libertação, presos em suas ações evangélicas e acusados pelos militares de comunistas, e atuou significativamente na busca pelos desaparecidos políticos.
A ação de D. Paulo na defesa dos Direitos Humanos fortaleceu as posições dos setores progressistas da Igreja Católica no que tange à Teologia da Libertação, aprofundando o conflito entre Estado e Igreja. Com o aumento da ação de leigos e padres ligados à organização de trabalhadores da periferia das grandes cidades e do campo, a CNBB, já então hegemonizada por bispos progressistas, emitiu documentos em defesa dos direitos humanos e da democracia, e o papa Paulo VI respaldou os religiosos que foram perseguidos e encarcerados por lutarem por justiça social.
Entre muitos fatos relacionados à prisão de religiosos, nos quais D. Paulo teve atuação importante, destaca-se a prisão, em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, em outubro de 1969, da Madre Maurina Borges de Silveira, presa e torturada pela Operação Bandeirantes. O caso é ilustrativo para esclarecer a posição de D. Paulo nas prisões de religiosos. O governo acusara a Madre de abrigar militantes de organizações de esquerda no convento. Segundo audiência da Comissão da Verdade “Rubens Paiva” da Assembleia Legislativa de São Paulo (parte 1 e parte 2), neste caso o uso da tortura seguiu o roteiro das prisões feitas à época, atendendo mais à selvageria do torturador que à obtenção de informações, sendo Madre Maurina torturada na sua condição de gênero e de religiosa. Na ocasião D. Paulo, acusou o governo de torturá-la e privá-la, durante mais de um mês, do direito de comungar. Por ocasião do sequestro do cônsul japonês no Brasil, Madre Maurina fez parte da lista de cinco presos a serem trocados pela libertação do cônsul. Ao saber da inclusão do seu nome naquela lista, a Madre escreveu uma carta ao diretor do presídio onde estava detida colocando sua posição: não queria ser trocada pelo cônsul, pois preferia ficar no Brasil e provar sua inocência. D. Paulo, ao conhecer a posição da Madre e prevendo as consequências politicas de tal ato, dirigiu-se a Ribeirão Preto e aconselhou-a a aceitar sair do país; e isto foi feito.
Outro exemplo da atitude de D. Paulo na defesa dos direitos de religiosos e leigos envolvidos em “ações consideradas subversivas” com grande repercussão na época foi o caso da prisão e tortura ocorrida em São Paulo do padre Giulio Vicini e a assistente social Yara Spadini, hoje professora aposentada da PUC-SP. Em 4 de janeiro de 1971, após ser impedido de levar uma equipe médica de sua confiança para atender o padre Giulio Vicini e a assistente social Yara Spadini no DOPS, D. Paulo redigiu uma nota sobre a incidência de tortura contra ambos e a necessidade de investigação dessa denúncia pelas autoridades competentes. Determinou que a nota fosse afixada nas portas das igrejas paroquiais e nos lugares de oração aos domingos.
Valendo-se, neste período histórico, de sua posição de Arcebispo de São Paulo, adentrou as prisões, coletou informações junto aos presos políticos e seus familiares e encontrou meios de divulgação das torturas e das precárias condições carcerárias dos presos, além de todas as atrocidades que vinham sendo cometidas. Igualmente, participou de inúmeros encontros com os mais altos representantes do governo militar e civil, incluindo o presidente Médici e seu chefe do Serviço Nacional de Informação – SNI, Golbery do Couto e Silva, sem que tivesse qualquer atitude de concessão capaz de por em dúvida sua posição politica em defesa dos Direitos Humanos e de não conciliação com as arbitrariedades da ditadura.
A partir de meados da década de 1970, as grandes manifestações públicas de resistência à ditadura em São Paulo, contaram com apoio e participação efetiva de D. Paulo. Entre elas, a missa celebrada na Catedral da Sé em homenagem ao estudante da Universidade de São Paulo, Alexandre Vannucchi Leme, a homenagem ao jornalista Vladimir Herzog e ainda o velório do operário Manuel Fiel Filho, morto pela repressão política em um piquete de greve.
Outro momento importante foi o da morte e velório do operário Santo Dias da Silva, membro da Pastoral Operária de São Paulo e da oposição sindical. Santos Dias foi morto pela Polícia Militar quando comandava um piquete de greve, no dia 30 de outubro de 1979. Houve grande mobilização dos trabalhadores para protestar contra o assassinato de Santo Dias; seu corpo foi retido pela polícia. Foi só a partir da interferência de D. Paulo, de sindicalistas e parlamentares, que se conseguiu a liberação. Santos Dias foi velado na Igreja da Consolação por milhares de pessoas e, no dia seguinte, houve uma grande marcha até a Catedral da Sé para a cerimônia de corpo presente.
Ressalte-se ainda que D. Paulo, na Arquidiocese de São Paulo, acolheu e deu suporte a inúmeras ações de resistência empreendidas por diversos grupos compostos por militantes católicos e leigos e também por militantes dos movimentos ecumênicos. Sob o guarda-chuva da Arquidiocese de São Paulo foram desenvolvidas importantes ações como a dos Familiares de Mortos e Desaparecidos. Uma de suas ações mais importantes, só possível de ser realizada pela sua condição de Arcebispo e Cardeal, foi sua atuação junto ao Conselho Mundial de Igrejas que resultou na unificação de uma ação conjunta da Igreja Católica com as Igrejas Metodista, Presbiteriana e outras não católicas.
Com o avanço de sua luta política, D. Paulo incentivou a criação de uma rede de resistência e crítica à ditadura, em defesa dos direitos humanos, formada pelo jornal O São Paulo, a Comissão de Justiça e Paz, a equipe Clamor, culminando com a formação do grupo que desenvolveu o mais consistente documento anti-ditadura produzido até hoje no Brasil, resultando no livro e arquivo digital intitulado Brasil Nunca Mais.
Sob a liderança de D. Paulo, O São Paulo, jornal da Cúria que existia, na época, há mais de 30 anos, desempenhou papel importante na divulgação de denúncias de torturas e violências perpetradas pela ditadura e de violações de direitos humanos a diferentes setores da sociedade como presos políticos, movimentos operário e de trabalhadores rurais, comunidades indígenas, entre outros. E por essa razão sofreu censura prévia das mais severas. Apesar de ser um jornal da Cúria destinado, como afirmava o próprio D. Paulo, “à formação e informação dos agentes pastorais”, distribuído exclusivamente nas paroquias e igrejas, o governo militar o mantinha sob estreita vigilância e vetava muitas de suas noticias e artigos. No livro de Ricardo Carvalho (2014, p. 141) é transcrita parte da entrevista dada por D. Paulo ao jornal Estado de São Paulo (de 29/06/1976) sobre a censura ao jornal O São Paulo:
Em dez anos como bispo nunca fui advertido pelo Papa. É por isso que eu não compreendo por que é que o jornal que eu dirijo, O São Paulo, destinado fundamentalmente aos meus agentes pastorais com o objetivo de orienta-los, tem de ser submetido à censura prévia, para vir um leigo e dizer ao arcebispo como ele deve falar aos seus amigos. Ainda assim nós vivemos a esperança.
A Comissão Brasileira de Justiça e Paz nasceu, no Brasil, como uma extensão da Comissão criada em Roma, após o Concílio Vaticano II, com representantes de todos os continentes, e na mesma mensagem em que criava o “Conselho dos Leigos”. Como função da Comissão Justiça e Paz - CJP foi estabelecido “o estudo dos grandes problemas da justiça social, com vistas ao desenvolvimento das nações jovens e especialmente quanto à fome e à paz no mundo”; temas retomados pelo Papa, dois meses depois, em março de 1967, na encíclica Populorum Progressio.
Pouco depois, em 1972, por iniciativa de D. Paulo foi criada, nessa mesma perspectiva, uma Comissão Regional em São Paulo com o objetivo de proteger perseguidos políticos, familiares de desaparecidos políticos, e a constituição da Rede Nacional de Advogados da CJP. No decorrer daqueles anos, principalmente a partir de 1975, a CJP atuou de forma decisiva na defesa e proteção de presos políticos e também de refugiados políticos e ditaduras instaladas em outros países do Cone Sul como Chile e Argentina. Também desenvolveu outras ações como a promoção de seminários, estudos e análises sobre a questão dos direitos humanos no Brasil e sobre a situação de violência e pobreza vivida pelo povo, como foi o caso da promoção do estudo São Paulo: crescimento e pobreza, publicado em 1976.
São conhecidas as atitudes corajosas da Comissão Justiça e Paz de São Paulo, na luta contra a tortura e os assassinatos de presos políticos. Um exemplo deve ser lembrado. Em 1978, durante a Semana de Direitos Humanos promovida pela Arquidiocese, foi feita uma denúncia sobre um lavrador que se encontrava preso em um manicômio e, mediante uma intervenção realizada por D. Paulo junto à Comissão Justiça e Paz, Aparecido Galdino acabou posto em liberdade após nove anos de reclusão forçada. O caso de Aparecido Galdino levou familiares de desaparecidos políticos a acreditarem que pudesse haver outros presos políticos dados como “desaparecidos” ali internados. D. Paulo organizou uma busca no Manicômio, mas nenhum outro preso ali foi localizado.
Naqueles anos, a ação da Comissão Justiça e Paz foi acompanhada de perto pela comunidade puquiana e muitas das semanas, encontros e outras atividades organizadas por ela aconteceram nos espaços da universidade, principalmente no Tuquinha.
O CLAMOR
Outro grupo importante apoiado por D. Paulo naquele período foi o Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os países do Cone Sul – CLAMOR.
Este Comitê atuou com sede na Arquidiocese de São Paulo entre os anos de 1978 e 1991. É reconhecido como uma das mais importantes entidades de solidariedade a refugiados, presos e perseguidos políticos das ditaduras do Cone Sul, e de informação e denúncia sobre os crimes contra os direitos humanos cometidos por essas ditaduras. Atuando na contramão da conhecida Operação CONDOR, no Brasil e na América Latina prestou efetiva assistência a refugiados oriundos da Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai.
O CLAMOR foi criado por iniciativa de um grupo de leigos cristãos preocupados em proporcionar proteção e assistência aos refugiados políticos dos países do Cone Sul não reconhecidos pelo Alto Comissariado das Nações Unidas - ACNUR, vítimas de violações dos direitos humanos e vivendo no exílio em consequência das arbitrariedades do autoritarismo vigente nesses países.
Como protagonistas iniciais da criação do Comitê, destacam-se as presenças do advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, da jornalista inglesa Jan Rocha e do Reverendo Presbiteriano Jaime Wright. Naquele momento, com o apoio de D. Paulo Evaristo Arns e da recém-formada Coordenadoria Ecumênica de Serviços - CESE, o CLAMOR foi criado e vinculado à Comissão Arquidiocesana de Direitos Humanos e Marginalizados de São Paulo, estabelecendo-se, como dito anteriormente, em uma sala localizada no prédio da Cúria Metropolitana
Articulando-se à ação de algumas outras instituições congêneres na América Latina, a importância do CLAMOR, na época, pode ser medida pelo fato de que foi a primeira organização a denunciar a existência de campos de detenção clandestinos na Argentina; foi uma das primeiras a alertar para a cooperação entre forças de segurança dos países da região no sequestro, na tortura e no desaparecimento de pessoas, mais tarde conhecida como Operação Condor e foi a primeira a descobrir o paradeiro de algumas das crianças sequestradas e desaparecidas na Argentina. O Comitê preparou o que foi, na época, a maior lista de desaparecidos forçados na Argentina, com mais de 7.000 nomes. Depois da volta do governo civil na Argentina, em 1983, essa lista se tornou uma das principais fontes de informação para os trabalhos da Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas - CONADEP. O CLAMOR também organizou o primeiro Encontro de Sobreviventes de um campo clandestino de detenção, acontecido em São Paulo, em 1985.
Toda a documentação resultante das ações do CLAMOR – denominada pela UNESCO como Memória do Mundo – encontra-se sob a guarda do CEDIC - Centro de Documentação da PUC-SP e disponível para consulta pública no seu site www.pucsp.br/cedic
O projeto Brasil Nunca Mais – BNM foi uma das mais significativas iniciativas, realizada pelas Igrejas Cristãs, de denúncia dos crimes da ditadura. O projeto foi desenvolvido pelo Conselho Mundial de Igrejas e pela Arquidiocese de São Paulo na primeira metade dos anos 1980, sob a coordenação do Rev. Jaime Wright e de D. Paulo Evaristo Arns. A iniciativa teve três principais objetivos: evitar que os processos judiciais por crimes políticos fossem destruídos com o fim da ditadura militar, tal como ocorreu ao final do Estado Novo; obter informações sobre torturas praticadas pela repressão política e fazer com que sua divulgação cumprisse um papel educativo junto à sociedade brasileira.
A proposta inicial do projeto surge em 1979 e foi idealizada por um grupo de religiosos e advogados visando obter junto ao Superior Tribunal Militar - STM, em Brasília, informações e evidências de violações aos direitos humanos, praticadas por agentes do aparato repressivo do Estado durante a ditadura, a fim de compilar essa documentação em um livro-denúncia. Os advogados, a partir da consulta aos processos que envolviam a defesa de presos políticos, constataram o valor histórico e jurídico dos documentos existentes no Tribunal e, principalmente, dos depoimentos prestados no âmbito dos tribunais militares, pois uma parte dos presos políticos denunciou e detalhou as práticas de violência física e moral que sofreu ou presenciou. Os mentores do projeto – em especial a advogada Eny Raimundo Moreira – perceberam que os processos relacionados a presos políticos poderiam ser reproduzidos, aproveitando-se do prazo de 24 horas facultado pelo Tribunal para a custódia provisória de autos.
A ideia foi levada ao Reverendo da Igreja Presbiteriana Jaime Wright e, em seguida, ao Cardeal da Igreja Católica, D. Paulo Evaristo Arns, que a acolheram e resolveram comandar as atividades a partir de São Paulo. Os recursos financeiros necessários foram solicitados e obtidos com o secretário-geral do Conselho Mundial de Igrejas - CMI, Philip Potter, com o auxílio de Charles Roy Harper Jr., pastor e membro daquela entidade.
Sob sigilo, o projeto foi desenvolvido por um grupo de especialistas com uma metodologia diferente das até então utilizadas em resgate da memória histórica, pois em lugar de se ouvir os depoimentos e testemunhos das vítimas, o projeto Brasil Nunca Mais se apoiou nos relatos contidos nos inquéritos retirados das auditorias militares. Desta forma, a pesquisa Brasil Nunca Mais-BNM constrói a memória da repressão a partir de documentos produzidos pelas próprias autoridades encarregadas dos interrogatórios e autores dos desrespeitos aos Direitos Humanos.
Reunindo cópias da quase totalidade dos processos políticos que transitaram pela Justiça Militar brasileira, entre abril de 1964 e março de 1979, especialmente aqueles que chegaram à esfera do Superior Tribunal Militar – STM foram compilados 707 processos completos e dezenas de outros incompletos, num total que ultrapassou um milhão de páginas. Tais páginas foram microfilmadas em duas vias, para que uma pudesse ser guardada, sem riscos, fora do país e, outra permanecer no país para subsidiar novas pesquisas. Sobre o conjunto de microfilmes, uma equipe se debruçou durante cinco anos, produzindo um relatório chamado Projeto Brasil Nunca Mais, de aproximadamente cinco mil páginas, contendo informações impressionantes.
Nessa etapa do Projeto foi possível identificar, dentre outros dados, quantos presos passaram pelos tribunais militares, quantos foram formalmente acusados, quantos foram presos, quantas pessoas declararam ter sido torturadas, quantas desapareceram, quais as modalidades de tortura eram as mais praticadas e quais eram os centros de detenção. Ademais, foi possível listar os nomes dos médicos que davam plantão junto com os interrogadores e os funcionários identificados pelos presos políticos.
Considerando a dificuldade de leitura e até de manuseio de todos os documentos deste trabalho, foi idealizado por D. Paulo um livro que resumisse um panorama do projeto. Este livro foi lançado em 15 de julho de 1975, editado pela editora Vozes, com prefácio de D. Paulo, com grande repercussão, tanto nacional quanto internacional. Para operacionalizar a tarefa foram escolhidos os jornalistas Ricardo Kotscho, Carlos Alberto Libânio Christo (Frei Beto) e Luiz Eduardo Greenhalgh, coordenados por Paulo de Tarso Vannuchi.
Mais recentemente, num projeto que contou com a participação da PUC-SP e mais outras treze entidades sob a liderança do Ministério Público Federal, todo o material do BNM foi digitalizado – resultando mais de 900 mil páginas - e se encontra disponibilizado no site BNMdigital.
Naqueles anos de chumbo, o apoio decisivo de D. Paulo também esteve presente no trabalho de elaboração e divulgação de dossiês com a lista de desaparecidos durante a ditatura. Desde 1979, familiares de mortos e desaparecidos políticos organizaram informações relatando denúncias sobre assassinatos e desaparecimentos decorrentes da perseguição política durante a ditadura brasileira (1964-1985), para ser apresentado no II Congresso pela Anistia, realizado em Salvador - BA. Este dossiê foi posteriormente ampliado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos do Comitê Brasileiro pela Anistia - CBA/RS e editado pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, em 1984.
Em 1995, o livro foi revisado, ampliado e publicado com o título Dossiê dos Mortos e Desaparecido Políticos a partir de 1964, em Recife e, em 1996, em São Paulo. Esta edição se originou da sistematização das pesquisas nos arquivos dos IMLs de São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco; nos arquivos do DEOPS de Pernambuco, Paraná, Paraíba, São Paulo e Rio de Janeiro; nos arquivos do Instituto de Criminalística Carlos Éboli; nos documentos do Projeto Brasil Nunca Mais - BNM e na imprensa. Esta versão relacionou 358 vítimas do período ditatorial, sendo que 138 são desaparecidos políticos no país. O prefácio de D. Paulo ao Dossiê indica a firmeza de suas posições naquela conjuntura.
Tocar nos corpos para machucá-los e matar. Tal foi a infeliz, pecaminosa e brutal função de funcionários do Estado em nossa pátria brasileira após o golpe militar de 1964. Tocar nos corpos para destruí-los psicologicamente e humanamente. Tal foi a tarefa ignominiosa de alguns profissionais da Medicina e de grupos militares e paramilitares durante 16 anos em nosso país. Tarefa que acabamos exportando ao Chile, Uruguai e Argentina. Ensinamos outros a destruir e a matar. Lentamente e sem piedade. Sem ética nem humanismo. Macular pessoas e identidades. Perseguir líderes políticos e estudantis. Homens e mulheres, em sua maioria jovens. É destas dores que trata este livro. É desta triste história que nos falam estas páginas marcadas de sangue e dor.
No ano de 2009, foi publicada a última versão do dossiê, agora um documento mais longo, agregando às pesquisas anteriores um trabalho de ampla pesquisa dos próprios familiares dos militantes mortos e desaparecidos.
Um texto que trate do papel da Igreja na ditadura e da PUC-SP enquanto um espaço de resistência aos anos de chumbo, não poderia se encerrar sem tratar do importante papel que também tiveram as madres Agostinianas.
O Instituto Sedes Sapientiae - SEDES é uma instituição que tem mais de 30 anos de existência. Foi criado, oficialmente, em 1977 quando a Faculdade São Bento e a Faculdade Sedes Sapientiae, ambas da PUC-SP, fundiram-se.
A iniciativa de sua criação partiu da educadora e doutora em Psicologia pela PUC-SP, Madre Cristina Sodré Dória, (1916-1997), religiosa da Congregação das Cônegas de Sto. Agostinho. A intenção era criar um espaço de atuação e trabalho junto à sociedade, não só no campo da ciência, mas também comprometido com a defesa dos direitos humanos e da liberdade de expressão
Desde o período da ditadura militar Madre Cristina teve uma atuação destacada na defesa dos movimentos sociais e da garantia dos direitos humanos.
Na década de 60, quando o SEDES se localizava na Rua Caio Prado, era conhecido como um espaço que, sob o amparo de Madre Cristina, se organizavam encontros e reuniões de opositores ao sistema; em que eram acolhidos, e escondidos, perseguidos pela ditadura que, muitas vezes, significou a preservação da vida destes militantes; local em que informações eram deixadas e repassadas a militantes clandestinos, e quando presos, Madre Cristina prestava assistência levando comida até as prisões.
Na década de 70, já localizado no bairro das Perdizes, foi nas salas do SEDES que familiares de presos políticos e desaparecidos puderam se reunir, se conhecerem, socializarem suas informações e tomarem consciência de que a sua situação particular era, na realidade, a regra nas prisões e métodos da ditadura. Foi em suas instalações, novamente sob o amparo de Madre Cristina, que é constituído o Comitê Brasileiro da Anistia – CBA/SP.
Igualmente, foi a Madre Cristina quem ampara em suas instalações os jornalistas que elaboraram a pesquisa conhecida como Brasil Nunca Mais, que além de registrar esse período histórico, resultou em um significativo documento de denuncia da ditadura. Ainda na década de 70, é a Madre Cristina quem recebe exilados da ditadura militar argentina que, incorporados ao corpo docente do Instituto, contribuem significativamente para o avanço da psicanálise no país.
E, em meados da década de 80, quando a sua saúde já estava bastante debilitada, ainda assim amparou nas instalações do SEDES atividades que garantiam o funcionamento do Movimento dos Trabalhadores sem Terra – MST.
Em outubro de 2010 a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, coordenada por seu presidente Paulo Abrão, fez uma “Sessão de Memória” em homenagem a Madre Cristina, a D. Paulo e ao Pe. Comblin. (video).
E como bem observa Maria Auxiliadora Arantes, uma das depoentes desta Sessão, estes “gestos de cidadania, libertários, de Madre Cristina fizeram a diferença na luta de resistência à ditadura e pela Anistia”.