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Perfil de Poty Poran Turiba Carlos

Uma aula de cultura guarani

Por Thiago Pacheco
(*Texto publicado no Jornal da PUC, na 2ª quinzena de setembro de 2004)

“O que você pode fazer é colocar um parêntese, não sei onde, dizendo que a letra y não tem som de i, tem som de uh... Um u meio i”, explica a guarani Poty Poran Turiba Carlos, aluna do terceiro ano de Pedagogia, ao soletrar seu nome. Todo o cuidado é pouco. Ela conta que, em guarani, um erro na pronúncia de uma letra pode dar outro significado à palavra. Como as pessoas não costumam acertar o som de Poty, prefere ser chamada de Poran.
Poty Poran quer dizer “flor bonita”. O significado de um erro sonoro em Poty, ela acha melhor não falar. “Lá na aldeia Cachoeira, onde moro, o pessoal brinca muito se chega alguém e me chama e Poti”, diz, rindo. O riso, aliás, é companheiro de Poran. Quase todas as suas histórias são acompanhadas de uma risada contagiante.
O cuidado com os termos em guarani também faz parte de Poran, assim como o tom professoral. Ambos são naturais, uma vez que a estudante dá aulas na escola de sua aldeia, situada na base do pico do Jaraguá (zona Norte). Já lecionava antes mesmo de começar a graduação, em 2002. No início, dava aulas de idioma e cultura guarani para crianças e adolescentes indígenas; agora, todas as manhãs, ensina também matemática, português, história e geografia.
Ela afirma ainda que não se sente muito segura. Mas que tem um pouco mais de “chão” do que no dia da primeira aula, em 2001. Dia terrível aquele, lembra. “O pessoal fez uma cerimônia, entregou a chave da escola na minha mão, ‘você é a professora, se vira’. Bom, abri a escola no horário, as crianças entraram e aí começou a bagunça. Elas gritavam, jogavam papel... Eu não sabia controlar, não sabia se eu gritava, se chorava, se saía correndo”. Para piorar a situação e deixá-la ainda mais nervosa, a escola é aberta aos pais, na hora da aula. Segundo a futura pedagoga, eles entram na classe ou olham pela janela e chegam até a participar do ensino.
Não é uma situação muito confortável para ela, considera. Até porque ser professora não foi uma decisão pessoal, mas dos próprios companheiros da aldeia. Tudo por causa de uma característica anunciada por ela (“eu sou muito faladeira. Minha primeira palestra sobre cultura indígena foi com nove anos, para umas 500 pessoas”, conta). “Fui numa reunião sobre educação com o governo estadual, acompanhando a cacique dona Jandira, mina avó. Eles diziam que nossa aldeia era modelo, porque as pessoas tinham estudado até o ensino médio. Só que elas não dominavam o guarani! Eu falei, e briguei para ter uma escola diferenciada de uma não-indígena. Depois a cacique disse: ‘Já que você gosta de falar muito e gostou de brigar, vai em todas as reuniões de educação’. Na hora de escolher o professor, fui indicada pela aldeia.”

TRADIÇÃO – O curioso é que Poran percorreu, segundo ela própria, um caminho ao encontro de sua cultura. Ela nasceu em São Paulo, mas já ouviu várias vezes as pessoas perguntarem se ela vem do Amazonas. “Não conseguem imaginar que haja índios aqui, onde nós sempre estivemos”, declara. Morou até os nove anos fora da aldeia, em bairros da periferia, quando seu avô, na época cacique da aldeia Cachoeira (uma das três guaranis da capital paulista) estava “velhinho” e chamou os filhos para voltar a morar com ele. Foi aí que começou a ter mais contato com a cultura indígena. Primeiro, por meio da religião: ela conta que participa das festas e rituais da aldeia, que chegam a durar dois dias. A alimentação já não é mais a original, inclui também coisa do juruá – o não indígena – como carne de boi (antes, a carne era de caça), macarrão, arroz, pizza... Mas muita comida típica se mantém, como um tipo de pão frito e achatado e uma paçoca de banana verde cozida com carne. Os guaranis guardam algumas superstições também: não comem carne crua, as mulheres não consomem comidas doces nem cítricas durante o ciclo menstrual...
Pelo menos uma tradição, no entanto, Poran não conseguiu: o casamento jovem. Em suas aulas, por exemplo, há casais de meninas com 12 anos e rapazes de 14, “eu fiquei pra titia”, brinca ela, que nasceu em 1977. Quando fala sério, a história faz com que recorde uma coisa que a irrita: pesquisadores acham que são donos da verdade. “Muitos se esquecem que uma cultura é feita de pessoas vivas, seres humanos que evoluem, e por isso mudam. Alguns acham que o que eles escreveram é lei em se no futuro acontecer diferente, dizem que não pode porque os indígenas antigamente não faziam assim”, reclama.

PROJETO PINDORAMA – Ela também não gosta de preconceito. Por isso não queria estudar na PUC-SP, tinha medo de sofrer ao entrar na Universidade. “Além de ser cara, é tida como a melhor entre as particulares. Eu ficava imaginando como ia me sentir dentro de uma instituição  que tinha a maioria das pessoas de classe média alta, que não fazem parte do meu mundo, de classe social baixa”. O medo, por fim, mostrou-se infundado já no vestibular. Ela fez a prova numa sala só com indígenas, muitos dos quais conhecia de outras datas. “Foi muito descontraído, tudo parente, me senti muito bem. Na prova da USP não, entrei na sala com medo e saí quase chorando. Não conhecia ninguém, e se você sorrisse para alguém ela fechava a cara, porque sou concorrente”, relembra, rindo novamente.
Após o vestibular, entrou na PUC-SP e no Projeto Pindorama – parceria entre a Universidade, a SOS Comunidade Pankararu, o cursinho pré-vestibular da Poli e a Cúria Metropolitana, que teve início em 2002. Por meio dele, conseguiu uma bolsa de estudos e, se necessário, um acompanhamento psicológico – mas tem que participar das reuniões do programa com outros colegas índios, “tirar boas notas” e ter freqüência nas aulas. Poran elogia a iniciativa: “A intenção não é só me dar uma formação e o diploma. O que estudo aqui deve voltar em forma de benefício à minha comunidade. Não queria entrar na PUC-SP, mas no fim acabou sendo o melhor coisa que aconteceu”.

A estudante ressalta, porém, sua identidade indígena, em contraponto com o universo puquiano. “Não é o meu mundo, ao mesmo tempo em que é. Eu me sinto bem aqui, onde passei por mudanças e cresci. Por outro lado, poderia viver se não entrasse na PUC-SP, mas não poderia viver, ser eu mesma, se não fosse indígena”, explica. Depois de formada, pretende continuar o trabalho de educação de seus “parentes”, se não em sua aldeia, em outra. Poran diz que tem vontade de mudar de endereço. “estou há muito tempo na Cachoeira, talvez eu me mude de lá. Antigamente, a gente ficava em média cinco anos em um lugar e depois ia para outro. Nós, os guaranis, somos um povo nômade”, ensina a professora.

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