O homem rude vê as formas
geométricas, mas não as entende; o inculto entende-as, mas não as admira; o
artista, enfim, enxerga a perfeição das figuras, compreende o Belo e admira
a Ordem e a Harmonia! Deus é o grande geômetra. Geometrizou a Terra e o
Céu”.Platão
A natureza não se domina,
senão obedecendo-lhe.Francis Bacon
Acima de tudo, devemos
duvidar de tudo.René Descartes
Só conhecemos a priori das
coisas o que nós mesmos colocamos nelas. Emannuel Kant
Os gregos,
aproximadamente no séc. VI a.C., foram um divisor de águas entre o
pensamento místico e o surgimento da filosofia e da ciência. Os povos
antigos, babilônios, assírios, indianos, chineses e persas, eram místicos e
tentavam explicar os fenômenos da natureza, cada qual a sua maneira, por
meio
das divindades. Os primeiros filósofos, se opondo a esses conceitos, eram
ditos naturalistas, e tentavam explicar os fenômenos físicos pela
própria natureza e ao longo da história esses mitos passaram o ocupar uma
posição na tradição cultural de cada povo. Inicialmente os filósofos eram
chamados de physiólogos, estudiosos da natureza (physis).
As cidades-estados que se
formaram na Grécia, em substituição a uma monarquia, composta por uma classe
sacerdotal dominante e uma estrutura agrária, criou o ambiente propício para
essas mudanças. Diversos povos, diversas culturas e línguas, o comércio
portuário, a descentralização do poder fez surgir os filósofos que hoje
denominamos de pré-socráticos, entre eles Tales, originário de Mileto,
considerado por Aristóteles o fundador do pensamento científico-filosófico.
Esses filósofos tentavam
explicar que um fenômeno natural era causal, ou seja, um fenômeno era a
causa de outro anterior a ele (causa → efeito), o que lhe conferia um
caráter regressivo ao infinito. A maneira encontrada para se evitar essa
regressão foi determinar um ponto de partida (arqué – elemento primordial),
uma causa inicial. Ao longo do tempo esse elemento foi se alterando: água
(Tales), ar (Anaxímenes e Anaximandro), fogo(Heráclito) e o átomo
(Demócrito). Posteriormente Empédocles cria a doutrina dos quatro elementos
(terra, água, ar e fogo), amplamente difundida na alquimia e na química.
A noção do arqué, um
elemento natural presente em todo o universo como sendo o ponto de partida,
confere ao universo uma característica hierárquica, a partir do elemento
primordial, que por meio de eventos causais se organiza. A maneira
argumentativa criada pelos filósofos para explicar esses eventos
denominou-se de logos (discurso), que se opunha ao mythos (narrativa
poética). O termo logos originou posteriormente o termo “lógica”.
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Tales (c.649? a.C. –
c.547 a.C.) criou em Mileto uma nova corrente que pregava o discurso crítico
sobre os fenômenos da natureza, abandonando o dogmatismo, e valorizando o
debate e a possibilidade de reformulação das idéias a partir de novos
entendimentos, e estendeu essa prática também à geometria.
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Tales |
Pitágoras (580 a.C. – c. 497
a.C.), originário de Samus, fundou a conhecida escola pitagórica em
Crotona (atual Itália), e teve um papel fundamental no
desenvolvimento do raciocínio lógico, apresentando uma visão mais
abstrata em relação ao naturalismo. Para ele o número era o elemento
primordial. A matemática, pela abstração, cria os elementos
“perfeitos”, como representantes dos elementos da natureza, sempre
imperfeitos. Dessa forma “a matemática proporciona conhecimentos
superiores aos obtidos pela observação e experimentação”. (CABRERA,
1949, p.23, tradução nossa do original em espanhol). Pela razão é
possível explicar e relacionar os elementos sensíveis, ou seja,
a matemática possibilita organizar o caos. |
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Pitágoras |
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Platão (428 a.C.
– 347 a.C.), discípulo de Sócrates, considerava a geometria uma
criação divina, chegando a defini-la como sendo “o conhecimento do
que existe sempre” (PLATÃO, 2006, p.224), o que reflete o caráter
imutável dado aos conceitos geométricos. Para os platonistas os
objetos matemáticos existem por si, são conhecimentos a priori,
independentes dos sentidos, uma vez que não encontramos pontos ou
triângulos na natureza. |
Platão |
Aristóteles (384 a.C –
322 a.C.), discípulo de Platão, propõe uma nova concepção, que valoriza os
sentidos, para o processo do conhecimento. Segundo ele o conhecimento se dá
de forma linear e em estágios: sensação→ memória → experiência → arte
(técnica) →teoria/ciência. Propõe o sistema aristotélico do conhecimento,
segundo o qual o saber pode ser prático (ética, política), produtivo
(estética, arte) ou teórico. Esse último se subdivide em física (mundo
natural), matemática (quantidade, número) e filosofia primeira (teologia).
Nesse contexto a lógica tem um caráter instrumental, não sendo considerada
como uma área de conhecimento. Suas obras Primeiros Analíticos, Segundos
Analíticos e o tratado dos Trópicos são dedicadas à teoria do silogismo
dedutivo.
O corpus aristotelicum, isto é, as obras
de Aristóteles e de sua escola que chagaram até nós através da edição de Andrônico de Rodes, teve uma importância fundamental na Antiguidade para o
desenvolvimento e a difusão não só da filosofia de Aristóteles, mas de sua
ciência, e mesmo de toda uma concepção teórica e metodológica do saber
científico, com a valorização da ciência empírica, da ética, da política e
da estética. [Na difusão da cultura grega] a obra aristotélica foi de
importância capital, pois foi em grande parte através dela, mais até do que
da de Platão, que o saber científico se difundiu. (MARCONDES 2005, p.74). |
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Aristóteles |
Os Elementos é a
caracterização desse pensar filosófico-científico grego, que terminou por
influenciar o pensamento matemático até os nossos dias. “A geometria de
Euclides é um expoente acabado do “milagre” do pensamento grego, cujo fruto
é nossa cultura ocidental”. (CABRERA, 1949, p.73, tradução nossa do original
em espanhol).
Desde então o conceito de
conhecimento e ainda o método para alcançá-lo se alterou ao longo da
história, refletindo os movimentos filosóficos de cada tempo. “O empirismo e
o racionalismo foram movimentos filosóficos de oposição às idéias que
vigoraram durante o Feudalismo [escolástica, de inspiração aristotélica]. O
conhecimento, na Europa, durante a Idade Média, era entendido como o caminho
de reconciliação do homem com o mundo; na Idade Moderna, o conhecimento é
visto como um meio de dominar a natureza, extraindo dela a riqueza
material”. (BRITO, 1995, p.73)
Essas duas correntes
divergentes desenvolvidas no séc. XVI, o empirismo e o racionalismo,
resultaram por segregar a física e a matemática. Essa última se afastou por
completo do empirismo, que teve como representante o filósofo inglês Francis
Bacon (1561-1626). O racionalismo foi concebido pelo filósofo francês René
Descartes (1596-1650).
Segundo o empirismo,
nosso conhecimento é erigido por meio de um grande número de experiências
sensíveis e da indução. Já para o racionalismo, o conhecimento é conseguido
exclusivamente por via racional e dedutiva. O método dedutivo da matemática
e a própria matemática, tornam-se, então, os baluartes do racionalismo e os
pontos de convergência das críticas empiristas BRITO (1995, p.74).
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O filósofo
Immanuel Kant (1724-1804), que viveu no auge dessas discussões
filosóficas, herdando a filosofia de Platão, concluiu que a verdade
não é absoluta, mas está intimamente ligada com a nossa percepção
dela. “Para Kant, os postulados e os teoremas de Euclides, relativos
a pontos, linhas e figuras, admitem um tipo de universalidade – e
com ela um tipo de necessidade – que não está presente em nenhuma
generalização empírica”. (BARKER, 1969, p.42).
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Kant |
Seu trabalho,
intitulado criticismo, muito influenciou o pensamento da época, que
continuava acreditando ser a geometria única e verdadeira. “O criticismo
outorga tanta importância à razão como à experiência no processo de
aquisição de conhecimento”. (BRITO, 1996, p.78).
Ele concebeu a idéia de
um conhecimento absoluto desvinculado da experiência, dito conhecimento (ou
juízo) a priori, em oposição ao conhecimento (ou juízo) empírico, que é
aquele que se justifica pela experiência[1]
extralingüística. “[...] Se um juízo é pensado com rigorosa universalidade,
ou seja, de tal modo que, nenhuma exceção seja admitida, não é derivado da
experiência, mas é totalmente válido a priori. [...]Em querendo um exemplo,
podemos extrair das ciências, bastando volver os olhos para todos os juízos
da matemática”. (KANT, 2005, p.46). Ele ainda dividiu o conhecimento a
priori em sintético (não-trivial), que se justificam por uma explicação
anterior por meio de uma análise lógica, e analítico (trivial), no qual a
simples compreensão de seu conteúdo é suficiente para confirmar o nosso
juízo.
“Em todas as ciências
teóricas da razão encontram-se, como princípios, juízos sintéticos a
priori”. (ibiden, p.52). Para ele os postulados e os teoremas euclidianos
são sintéticos a priori e as noções comuns não o são.
[...] nenhum princípio de
geometria pura é analítico. Que a linha reta seja a mais curta distância
entre dois pontos é uma proposição sintética porque o meu conceito de reta
não contém nada de quantitativo, mas, sim, uma qualidade. O conceito de
“mais curta” tem de ser totalmente acrescentado e não pode ser extraído de
nenhuma análise do conceito de linha reta. Há de recorrer-se à intuição,
perante a qual apenas a síntese é possível (ibiden, 53).
Segundo
ele “o espaço é uma representação a priori necessária, que fundamenta todas
as intuições externas” (ibiden, p.68). Ele precede a concepção de um objeto
geométrico, e conseqüentemente, o conhecimento geométrico só existe a partir
da percepção a priori do espaço dada pelo indivíduo, ou seja, “só existe
espaço se existir o sujeito, já que o espaço é uma forma de percepção a
priori do sujeito, uma intuição inerente à mente humana que permite perceber
tudo o que nos é externo” (BONETE, 2000, p.116).
O criticismo fez com que a concepção da
geometria fosse revista, acrescentando-lhe a dependência da percepção
humana.
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