.: A Gnosiologia |
Como já em Sócrates, assim em Platão a filosofia tem um fim prático,
moral; é a grande ciência que resolve o problema da vida. Este fim
prático realiza-se, no entanto, intelectualmente, através da
especulação, do conhecimento da ciência. Mas - diversamente de Sócrates,
que limitava a pesquisa filosófica, conceptual, ao campo antropológico e
moral - Platão estende tal indagação ao campo metafísico e cosmológico,
isto é, a toda a realidade.
Este caráter íntimo, humano, religioso da filosofia, em Platão é tornado
especialmente vivo, angustioso, pela viva sensibilidade do filósofo em
face do universal vir-a-ser, nascer e perecer de todas as coisas; em
face do mal, da desordem que se manifesta em especial no homem, onde o
corpo é inimigo do espírito, o sentido se opõe ao intelecto, a paixão
contrasta com a razão. Assim, considera Platão o espírito humano
peregrino neste mundo e prisioneiro na caverna do corpo. Deve, pois,
transpor este mundo e libertar-se do corpo para realizar o seu fim, isto
é, chegar à contemplação do inteligível, para o qual é atraído por um
amor nostálgico, pelo eros platônico.
Platão como Sócrates, parte do conhecimento empírico, sensível, da
opinião do vulgo e dos sofistas, para chegar ao conhecimento
intelectual, conceptual, universal e imutável. A
gnosiologia platônica, porém, tem o caráter científico,
filosófico, que falta a gnosiologia socrática, ainda que as conclusões
sejam, mais ou menos, idênticas. O conhecimento sensível deve ser
superado por um outro conhecimento, o conhecimento conceptual, porquanto
no conhecimento humano, como efetivamente, apresentam-se elementos que
não se podem explicar mediante a sensação. O conhecimento sensível,
particular, mutável e relativo, não pode explicar o conhecimento
intelectual, que tem por sua característica a universalidade, a
imutabilidade, o absoluto (do conceito); e ainda menos pode o
conhecimento sensível explicar o dever ser, os valores de beleza,
verdade e bondade, que estão efetivamente presentes no espírito humano,
e se distinguem diametralmente de seus opostos, fealdade, erro e
mal-posição e distinção que o sentido não pode operar por si mesmo.
Segundo Platão, o conhecimento humano integral fica nitidamente dividido
em dois graus: o conhecimento sensível, particular, mutável e relativo,
e o conhecimento intelectual, universal, imutável, absoluto, que ilumina
o primeiro conhecimento, mas que dele não se pode derivar. A diferença
essencial entre o conhecimento sensível, a opinião verdadeira e o
conhecimento intelectual, racional em geral, está nisto: o conhecimento
sensível, embora verdadeiro, não sabe que o é, donde pode passar
indiferentemente o conhecimento diverso, cair no erro sem o saber; ao
passo que o segundo, além de ser um conhecimento verdadeiro, sabe que o
é, não podendo de modo algum ser substituído por um conhecimento
diverso, errôneo. Poder-se-ia também dizer que o primeiro sabe que as
coisas estão assim, sem saber porque o estão, ao passo que o segundo
sabe que as coisas devem estar necessariamente assim como estão,
precisamente porque é ciência, isto é, conhecimento das coisas pelas
causas.
Sócrates estava convencido, como também Platão, de que o saber
intelectual transcende, no seu valor, o saber sensível, mas julgava,
todavia, poder construir indutivamente o conceito da sensação, da
opinião; Platão, ao contrário, não admite que da sensação - particular,
mutável, relativa - se possa de algum modo tirar o conceito universal,
imutável, absoluto. E, desenvolvendo, exagerando, exasperando a doutrina
da maiêutica socrática, diz que os conceitos são
a priori, inatos no espírito humano, donde têm de ser
oportunamente tirados, e sustenta que as sensações correspondentes aos
conceitos não lhes constituem a origem, e sim a ocasião para fazê-los
reviver, relembrar conforme a lei da associação.
Aqui devemos lembrar que Platão, diversamente de Sócrates, dá ao
conhecimento racional, conceptual, científico, uma base real, um objeto
próprio: as idéias eternas e universais, que são os conceitos, ou alguns
conceitos da mente, personalizados. Do mesmo modo, dá ao conhecimento
empírico, sensível, à opinião verdadeira, uma base e um fundamento
reais, um objeto próprio: as coisas particulares e mutáveis, como as
concebiam Heráclito e os sofistas . Deste mundo
material e contigente, portanto, não há ciência, devido à sua natureza
inferior, mas apenas é possível, no máximo, um conhecimento sensível
verdadeiro - opinião verdadeira - que é precisamente o conhecimento
adequado à sua natureza inferior. Pode haver conhecimento apenas do
mundo imaterial e racional das idéias pela sua natureza superior. Este
mundo ideal, racional - no dizer de Platão - transcende inteiramente o
mundo empírico, material, em que vivemos.
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