Copérnico e a Tradição Aristotélica - Publicado no Jornal A Notícia, em 15/12/91
Marco Antonio Franciotti
A concepção de universo do astrônomo polonês Nicolau Copérnico é considerada um divisor de águas na história da ciência. Sua postulação do heliocentrismo, em contraposição à concepção geocêntrica da tradição aristotélica, engendrou os germes da revolução científica moderna. Há, contudo, vários estudiosos que têm procurado sustentar a idéia de que, embora Copérnico tenha rompido com a visão de mundo dominante da época, muitas de suas argumentações em defesa de suas teses acabam via de regra retomando princípios marcadamente aristotélicos. O filósofo da ciência Thomas Kuhn, por exemplo, assinala que é exatamente na ruptura que Copérnico mostra mais claramente sua dependência com relação à tradição. E o historiador da ciência Arthur Koestler, em sua magnífica obra "Os Sonâmbulos", afirma que Copérnico esforçou-se ao máximo para encaixar o movimento da Terra dentro de uma estrutura baseada na física aristotélica. Mas era como encaixar um dispositivo turbo-propulsor em uma velha diligência em ruínas. Copérnico teria sido, na verdade, o último dos aristotélicos entre os grandes homens da ciência.
Em vista disso, é importante retomar as concepções tanto de Copérnico quanto de Aristóteles, detectando os pontos de convergência e de divergência entre ambos a fim de avaliar até que ponto ocorre cm Copérnico uma ruptura com a ciência de seu tempo. Segundo o modelo aristotélico, o universo é composto de inúmeras esferas concêntricas, a menor delas sendo a Terra e a maior, a das estrelas fixas. Cada um dos planetas, o sol e a lua estão contidos numa esfera. A esfera da lua divide o universo em duas regiões completamente diferentes, povoadas de diferentes tipos de matéria e sujeitas a leis diferentes. A região terrestre ou mundo sublunar na qual vive o homem é imperfeita, sujeita a mudanças e variações. A região celeste ou mundo supralunar é eterna, imutável e perfeita. As esferas celestes movem-se natural e eternamente em círculos, ocupando sempre a mesma região do espaço.
Para entender melhor essa distinção, é preciso considerar a teoria aristotélica do movimento. Todo movimento simples é ou retilíneo (para longe do e em direção ao centro) ou circular (em torno do centro). No que diz respeito ao mundo sublunar, o conceito básico para se entender o movimento é o de lugar natural, que é aquele no qual naturalmente um .corpo está ou ao qual volta quando dele é afastado. O movimento que coloca esse corpo numa trajetória em direção ao seu lugar natural é chamado de movimento natural. O movimento produzido por um agente que retira um corpo de seu lugar natural é chamado de movimento violento. Assim, os quatro elementos que compõem o mundo sublunar movem-se de acordo com seu peso ou leveza sempre em linha reta, a água e a terra cm direção ao seu lugar natural que é o centro da Terra, c o fogo e o ar, em linha reta para longe do centro da Terra.
Aqui é preciso observar que a noção de lugar natural traduz uma concepção puramente estática de ordem cósmica. Se todas as coisas estivessem em ordem, elas restariam imóveis em seus respectivos lugares naturais. Ao mesmo tempo, pode-se dizer que todo movimento no mundo sublunar implica uma desordem cósmica, uma ruptura de equilíbrio, seja devido a uma causa externa que pôs em movimento um corpo qualquer (movimento violento), seja devido à necessidade desse corpo de retornar à ordem natural (movimento natural).
Assim, pode-se compreender também que os movimentos no mundo sublunar devem ser necessariamente passageiros. O movimento natural cessa naturalmente quando seu objetivo é alcançado, i.e., quando o corpo retorna ao seu lugar natural. Quanto ao movimento violento, admitir que ele possa se prolongar indefinidamente seria conceber um mundo completamente desorganizado, o que resultaria, como diz o historiador da ciência Alexandre Koyré, no abandono da própria idéia de Cosmos ou totalidade ordenada.
Por todas essas razões, Aristóteles advogara que a Terra jaz no centro do universo. Sem a admissão do geocentrismo, não se poderia explicar o movimento retilíneo dos quatro elementos para longe em direção ao lugar natural, que é o centro da Terra. Não se poderia sequer explicar o mero fenômeno da queda livre. Do mesmo modo, sem a Terra para agir como centro de rotação das esferas celestes, não seria possível conceber o movimento circular perfeito dos corpos do mundo supralunar.
Tais considerações permitem entender mais claramente a resistência de Aristóteles e de seus seguidores com relação ao movimento da Terra. Para um deles, o astrônomo Alexandrino Ptolomeu, a própria suposição do movimento diário da Terra romperia com a idéia de ordem cósmica. Esse movimento que percorreria o circuito total da Terra em 24 horas seria necessariamente muito impetuoso e de uma velocidade incomparável. Por exemplo, se a Terra se movesse, os corpos arremessados para o alto em linha reta não cairiam no mesmo lugar de onde iniciaram seu movimento.
Copérnico procurou combater essa argumentação aristotélica com todas as armas de que dispunha na época. O problema, porém, é exatamente esse: suas armas eram tão somente as noções aristotélicas: suas argumentações limitaram-se a suavizar a incompatibilidade da hipótese do heliocentrismo com a astronomia prevalecente na época, ou ainda, a preservar surpreendentemente vários princípios da tradição. Como diz Kuhn, o movimento do sol foi simplesmente transferido para a Terra. O sol não é ainda uma estrela mas o único corpo central em torno do qual o universo é construído: ele herda as antigas funções da Terra e mais algumas novas funções.
Tal qual o universo aristotélico, o universo de Copérnico é composto de esferas e, o que é igualmente significativo, finito. Para além da esfera das estrelas fixas nada existe. O universo está restrito ao interior dela. Copérnico, porém, deu um passo fundamental ao deter o movimento da esfera das estrelas fixas e ao ampliar consideravelmente o raio da esfera do universo em comparação com a concepção medieval. Mas restava dar um passo maior, indo de um universo muito grande para o universo infinito. Tal passo ele jamais ousou dar. Como diz Koyré, Copérnico parecia entender que a bolha do universo tinha de inchar antes de estourar. Esse passo em direção à infinitude do universo só seria dado mais tarde, em grande parte devido ao heliocentrismo, pelo astrônomo e matemático Giordano Bruno (1548-1600).
Copérnico conserva a distinção entre movimento natural e violento e admite que o movimento circular é natural. Do mesmo modo, ele recorre à idéia aristotélica de que a natureza é organizada e que tal ordem é interrompida temporariamente apenas quando ocorre um movimento violento. Em outras palavras, Copérnico se esforça em ajustar a hipótese da mobilidade da Terra, com algumas teses centrais da física de Aristóteles. Mas ele não chega a mostrar que o seu heliocentrismo é superior ao geocentrismo de Ptolomeu e seus seguidores; ele mostra apenas que o heliocentrismo não é tão incongruente com a tradição como afirmavam os defensores do geocentrismo.
A Terra (imperfeita) deve possuir movimento, na medida em que a mobilidade é sinal de imperfeição, cabendo aos corpos celestes (perfeitos) a imobilidade. Além disso, é o sol, em virtude de sua suprema perfeição e importância como fonte de luz e da vida, que tem de desempenhar no universo o papel antes atribuído à Terra. "Quem", afirma Copérnico, "nesse esplêndido templo colocaria a luz em lugar diferente ou melhor do que aquele de onde ele pudesse iluminar ao mesmo tempo todo e templo'' Portanto, não é impropriamente que certas pessoas chamam-no de lâmpada do universo, outros de sua mente, outros de seu governante".
É interessante como Copérnico tenta atacar Aristóteles adotando premissas aristotélicas. Melhor dizendo, ele concorda com a tradição ao assumir a imperfeição da terra e a perfeição do mundo supralunar mas o faz com o objetivo de combater as conclusões astronômicas tradicionalmente aceitas. Essa visão aristotélica da perfeição da esfera celeste também está por trás de sua argumentação sobre a esfericidade do universo, acompanhada da antiga idéia grega de que a esfera é a figura geométrica mais perfeita, pois é a mais adequada àquilo que contém e preserva todas as coisas.
Não apenas o universo é esférico, mas também a Terra – e todos os outros planetas – exibe o formato de uma esfera. "A Terra tem o formato de um globo, uma vez que todos os seus lados repousam sobre o seu centro. Pois quando as pessoas viajam para o norte, o vértice norte do eixo da revolução diária se move gradualmente para cima e muitas estrelas situadas ao norte cessam de se pôr, enquanto certas estrelas no sul não nascem. Assim, a Itália não vê Canopus (uma das estrelas da constelação Carina, a cem anos-luz da Terra), que é visível no Egito. Além disso, (...) os habitantes do leste não percebem os eclipses noturnos do sol e da lua. E quando a Terra não é visível do convés de um navio, ela pode ser vista do topo do mastro".
Não há praticamente nenhuma modificação substancial das razões apontadas por Aristóteles; há somente uma complementação dos argumentos observacionais. Copérnico mantém a tese aristotélica sobre a eqüidistância do centro da Terra de todos os corpos em sua superfície, formando uma esfera, e alguns dados observacionais são simplesmente recolocados com outros exemplos.
Um pequeno distanciamento e um subseqüente regresso aos pontos centrais do sistema aristotélico: tal é o movimento pendular da argumentação de Copérnico, pelo menos no livro I das "Revoluções", onde ele apresenta suas concepções físicas e astronômicas. Tais similitudes com o pensamento aristotélico, entretanto, não tornam Copérnico um pensador de duvidosa importância para a ciência. Há que se entender que Copérnico foi o primeiro grande astrônomo da Renascença a se pronunciar contra o geocentrismo e que se dedicou com empenho à construção de uma astronomia heliocêntrica. Como salienta Kuhn, Copérnico não era nem um antigo nem um moderno, mas um astrônomo da Renascença em cujo trabalho emaranharam-se as duas tradições. Sua obra configurou-se como um ponto de partida para os cientistas posteriores, que já não tinham mais nas mãos os problemas que o ocuparam, mas sim os problemas da nova astronomia heliocêntrica.