TEORIA DO CONHECIMENTO
Demócrito procedeu como Leucipo ao fazer uma avaliação puramente
mecânica da sensação, e é provável que ele seja o autor da doutrina
minuciosa dos átomos com respeito a este assunto. Uma vez que a alma se
compõe de átomos como qualquer outra coisa, a sensação deve consistir
no impacto dos átomos externos sobre os átomos da alma, e os órgãos dos
sentidos devem ser simplesmente ''passagens" (póroi = poros) através
das quais estes átomos se introduzem. Disto decorre que os objetos da
visão não são estritamente as coisas que nós mesmos presumimos ver, mas
as "imagens" (deíkela, eídola) que os corpos estão constantemente
emitindo. A imagem na pupila do olho era considerada como a coisa
essencial em visão. Não é, porém, uma semelhança exata do corpo do qual
provém, pois está sujeita às distorções causadas pela interferência do
ar. Este é o motivo por que vemos as coisas a distância de um modo
embaraçado e indistinto, e por que, se a distância for grande, não
podemos vê-las de modo algum. Se não houvesse ar, mas somente o vazio,
entre nós e os objetos da visão, isto não seria assim; "poderíamos ver
uma formiga rastejando no firmamento". As diferenças de cor devem-se à
lisura ou aspereza das imagens ao tato. A audição explica-se de uma
maneira similar. O som é uma torrente de átomos que jorram do corpo
sonante e produzem movimento no ar entre ele [corpo] e o ouvido.
Chegou, portanto, ao ouvido junto com aquelas porções do ar que se Ihe
assemelham. As diferenças de paladar são devidas às diferenças nas
figuras (eide, skhémata) dos átomos que entram em contato com os órgãos
desse sentido; e o olfato explica-se semelhantemente, embora não com os
mesmos detalhes. De modo idêntico, o tato, considerado como o sentido
pelo qual sentimos o calor e o frio, o molhado e o seco e outros que
tais, é afetado de acordo com a forma e o tamanho dos átomos chocando
nele.
Aristóteles afirma que Demócrito reduziu todos os sentidos ao tato, e é
realmente verdade se entendermos por tato o sentido que percebe
qualidades, tais como forma, tamanho e peso. Este, todavia, deve ser
cautelosamente distinguido do sentido próprio do tato, que acima foi
descrito. Para compreender esta questão, temos que considerar a
doutrina do conhecimento "legítimo" e "ilegítimo".
É aqui que Demócrito entra nitidamente em conflito com Protágoras, que
asseverou serem todas as sensações igualmente verdadeiras para o objeto
sensível. Demócrito, pelo contrário, considera falsas todas as
sensações dos sentidos próprios, posto que elas não têm uma
contrapartida real fora do objeto sensível. Nisto, naturalmente, está
em conformidade com a tradição eleática onde repousa a teoria atômica.
Parmênides afirmara claramente que o paladar, as cores, o som e outros
semelhantes eram apenas "nomes" (onómata), e é bastante idêntico a
Leucipo que disse algo de parecido, apesar de não haver razão de se
acreditar que ele tenha elaborado uma teoria sobre o assunto. Seguindo
o exemplo de Protágoras, Demócrito foi obrigado a ser explícito com
referência à questão. Sua doutrina, felizmente, foi-nos preservada
através de suas próprias palavras. "Por convenção (nómo)": disse ele
(fragmento 125), "há o doce; por convenção há o amargo; por convenção
há o quente e por convenção há o frio; por convenção há a cor." Porém,
na realidade, há os átomos e o vazio. Deveras, as nossas sensações não
representam nada de externo, apesar de serem causadas por algo fora de
nós, cuja verdadeira natureza não pode ser apreendida pelos sentidos
próprios. Esta é a razão por que a mesma coisa às vezes dá a sensação
de doce e às vezes de amargo. "Pelos sentidos", afirmou Demócrito
(fragmento 9), "nós na verdade não conhecemos nada de certo, mas
somente alguma coisa que muda de acordo com a disposição do corpo e das
coisas que nele penetram ou Ihe opõem resistência." Não podemos
conhecer a realidade deste modo, pois "a verdade jaz num abismo"
(fragmento 117). Vê-se que esta doutrina tem muito em comum com a
distinção moderna entre as qualidades primárias e secundárias da
matéria.
Demócrito, pois, rejeita a sensação como fonte de conhecimento,
exatamente como fizeram os pitagóricos e Sócrates; contudo, como eles,
ressalva a possibilidade de ciência, afirmando que existe uma outra
fonte de conhecimento que não a dos sentidos próprios. "Há", diz ele
(fragmento 11), "duas formas de conhecimento (gnóme): o legítimo
(gnesíe) e o ilegítimo (skotíe). Ao ilegítimo pertencem todos estes: a
visão, a audição, o olfato, o paladar e o tato. O legítimo, porém, está
separado daquele." Esta é a resposta de Demócrito a Protágoras. Ele diz
que o mel, por exemplo, é tanto amargo quanto doce, doce para mim e
amargo para você. Na realidade, é "não mais tal do que tal" (oudèn
mãllon toion è toion). Sexto Empírico e Plutarco afirmaram claramente
que Demócrito agiu contra Protágoras, e o fato, por conseguinte, está
fora da discussão.
Ao mesmo tempo, não se pode ignorar que Demócrito dera uma explicação
puramente mecânica deste conhecimento legítimo, como o fizera do
ilegítimo. Defendeu, com efeito, que os átomos fora de nós poderiam
afetar diretamente os átomos da nossa alma sem a intervenção dos órgãos
dos sentidos. Os átomos da alma não se restringem a algumas partes
específicas do corpo, mas nele penetram em qualquer direção, e não há
nada que os impeça de ter contato imediato com os átomos externos,
chegando assim a conhecê-los como realmente são. O "conhecimento
legítimo" é, afinal de contas, da mesma natureza do "ilegítimo", e
Demócrito recusou-se, como Sócrates, a fazer uma separação absoluta
entre os sentidos e o conhecimento. "Pobre Mente", imagina ele os
sentidos dizerem (fragmento 125); "é por causa de nós que conseguiste
as provas com as quais atiras contra nós. Teu tiro é uma capitulação."
O conhecimento "legítimo" não é, apesar de tudo, pensamento, mas uma
espécie de sentido interno, e seus objetos são como os "sensíveis
comuns" de Aristóteles.
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