O Simples Mário
José Luis Goldfarb
Durante cinco anos tive o privilégio de atuar como o editor de Mário
Schenberg, entre 1983 e 1988. Quatro livros publicados e autografados pelo
professor: Pensando a física Pensando a arte, Diálogos com Mário
Schenberg, e Mário Schenberg: entre-vistas. Mais do que todo este material
publicado, a vivência ao lado de um verdadeiro mestre muito me ensinou.
O professor era um profundo conhecedor das civilizações que
habitaram nosso planeta. Conhecimento científico, empírico,
místico, musical, matemático, político, artístico,
político. Todo o conhecimento humano... tudo interessava ao professor.
Mas o mago Schenberg nunca se trancou numa torre de marfim. Diariamente o
tranqilo sábio Zen - daqueles que normalmente habitam locais desérticos
e afastados - Mário Schenberg são "as ruas da cidade para
atuar e agitar os movimentos sociais entìo em ebulição.
Sempre disponível, ele partia para uma galeria de arte, uma bienal
de artes ou de livros, uma reunião política, um comício,
uma passeata. Num congresso internacional, num simpósio, fazendo conferências,
dando palestras, cursos, aulas, Mário Schenberg tinha o dom da palavra
falada. Encantava platéias expondo seus conhecimentos e reflexões
sempre originais. A criatividade presente em seus pensamentos impressionaram
grandes físicos de nosso século que o conheceram: Enrico Fermi,
Pauli, Juliot Curie, Gamow, Schandrasekar, Prigogine, Albert Einstein; seres
humanos que com suas inteligências moldaram a cultura de nosso século
propiciando as novas revoluções tecnológicas. Junto a
esses sábios da física do século XX, Mário Schenberg
auxiliou a desenhar nosso mapa científico do Universo.
O efeito Urca que explica o nascimento de estrelas supernovas, autoria de
Schenberg e Gamow, levou o nome carioca do grande cassino de entìo
ao ãmbito da cultura internacional. O mundo da ciência em nosso
século, um cenário no qual seus membros tornam-se cidadões
de todo o mundo intercambiado. E nosso físico e matemático Schenberg,
saindo da pequena Recife, tornou-se um desses cidadões do planeta,
esplendor da inteligência humana.
Durante décadas Schenberg militou no Partido Comunista Brasileiro.
Viajou " União Soviética". Durante a guerra fria manteve-se
aliado ao movimento comunista. Mas, pressentindo profundas mudan¡as,
o professor nos fala de um novo humanismo pós- guerra-fria. Nesse novo
cenário desaparecem os confrontos ideológicos da guerra-fria.
O novo quadro estendeu-se rapidamente pelo planeta a partir dos movimentos
pacifistas. Quando a possível eliminação completa da
vida no planeta tornou-se sensível, os povos come¡aram a reagir,
a agitar-se, e segundo o professor come¡amos a viver uma nova realidade.
Os modos de produ¡ìo capitalista e socialista misturam-se num
sistema cada vez mais integrado.
A ameaçaa da destruição fez ser superada a era da competição
entre as nações. Visitar a exposição O Mundo de
Mário Schenberg reviver as façanhas de um destemido brasileiro
que correu os quatro cantos do planeta. Um observador felino e prosador contagiante,
alguém que não cansava de nos provocar. Seu mundo: pura provocação
Divirtam-se.
José Luiz Goldfarb
P.S. Convidado por Aguilar a colaborar nesta exposição, tive
a honra de envolver-me na publicação de mais um livro em torno
a Mário Schenberg. Agradeço aos amigos da Casa das Rosas, este
imenso time que não polpou esfoços para tornar realidade objetiva
e virtual O Mundo de Mário Schenberg.
MARIO SCHENBERG: LEMBRANÇAS EM SUA HOMENAGEM *
José Leite
Lopes
Encontrei Mario Schenberg pela primeira vez no ano de 1937, por ocasião
de um Congresso Sul-Americano de Quimica que teve lugar no Rio de Janeiro
e em São Paulo - em Julho daquêle ano. Eu era, então estudante
de Quimica Industrial na Escola de Engenharia de Pernambuco e integrava uma
delegação dessa Escola àquele Congresso. Tinha desde
algum tempo o maior interêsse em conhecer Schenberg, já que no
Recife, sob a influência de Luiz Freire e de Oswaldo Gonçalves
de Lima, havia decidido seguir a carreira de pesquisa na fisica. E Luiz Freire,
homem de grande cultura cientifica e filosófica, havia sido professor
de Schenberg na Escola de Engenharia de Pernambuco alguns anos antes. Em varias
ocasiões, na Escola, antes ou depois de suas atraentes aulas de Fisica,
Luiz Freire discorria sõbre varios temas da fisica moderna e sôbre
honens de ciência; tinha a maior admiração por Mario Schenberg
e o apontava como um fisico de talento extraordinario, que certamente teria
uma brilhante carreira.
No Rio de Janeiro e, em seguida em São Paulo, Schenberg me acolheu
com simpatia e amisade. Em São Paulo, levou-me ao Departamento de Fisica
da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São
Paulo, que então ocupava um andar superior na Escola Politecnica. Ali
conheci entre outros Gleb Wataghin, Luigi Fantappié e Marcello Damy
de Sousa Santos. Damy, em seu laboratorio, contava particulas da radiação
cosmica, com seus contadores de Geiger-Muller.
Voltei ao Recife encantado e decidido a me transferir para o Rio ou São
Paulo o mais cedo possivel. Mantive correspondência com Mario, que me
estimulava a vir para o Sul. No ano seguinte, Schenberg passou de navio pelo
Recife, em viagem para a Europa, onde trabalhou no Instituto de Fisica da
Universidade de Roma, com Enrico Fermi e esteve em varios laboratorios na
Europa, com W. Pauli em Zurich, com A. Proca e De Broglie em Paris.
Em 1939, ao concluido meu curso de Quiniica na Escola de Engenharia de Pernambuco
recebi uma bolsa de estudos, por proposta de Oswaldo Gonçalves de Lima,
das Industrias Carlos de Brito. Como Schenberg, depois da Europa, iria para
os Estados Unidos, onde trabalharia com George Gamow e S. Chandraseknar -
o trabalho de Gamow e Schenberg sôbre o papel dos neutrinos no processo
de perda de energia das estrêlas é de grande importância
em astrofisica - decidi ir, por sugestão de Luiz Freire, para a Faculdade
Nacional de Filosofia que acabava de ser criada na Universidade do Brasil,
no Rio de Janeiro. Nesta Faculdade decidi fazer o curso de Fisica. As cartas
de apresentação de Luiz Freire a seus amigos, entre os quais
Alvaro Alberto e Adalberto Menezes de Oliveira, professores na Escola Naval,
contribuiriam a que pudesse permanecer no Rio e concluir o meu curso. Menezes
de Oliveira, concluida a minha bolsa, indicou-me para professor de Física
no Instituto La-Fayette. Concluido o meu curso em 1942, aceitei convite de
Carlos Chagas para trabalhar no Instituto de Biofisica com bolsa de Guilherme
Guinle ; como a minha vocação era a Fisica Teorica, obtive,
com a apoio de Chagas e de Wataghin, uma bolsa para trabalhar no Instituto
de Fisica da Universidade de São Paulo, concedida pela Fundação
Zerrener. É assim que passei o ano. de 1943 nesse Instituto, seguindo,
entre outros, os cursos de Gleb Wataghin sobre fisica atômica, de Mario
Schenberg sobre mecânica classica e mecânica celeste. Era a época,
na Universidade de São Paulo, alem de Schenberg, Wataghin e Damy, de
Guiseppe Occhialini, Abrahao de Morais, Paulo de Taques Bittencourt, entre
outros, na fisica; de Omar Catunda e Candido Dias, na matematica; de André
Dreyfus, na biologia, de Paulo Duarte e Fernando de Azevedo nas ciencias humanas.
No Rio de Janeiro, Jaime Tiomno e Elisa Frota Pessoa haviam sido meus colegas
de Fisica na Faculdade. Eram meus companheiros, juntamente com Leopoldo Nachbin,
Mauricio e Marilia Matos Peixoto assim como o sociologo Alberto Guerreiro
Ramos. Em Sao Paulo, em 1943, foram meus colegas Cesar Lattes, além
de Sonja Ashauer e Walter Schutzer, dois queridos colegas prematuramente desaparecidos.
Nesse ano, iniciei-me na pesqtjisa. Uma tarde, Mario Schenberg me apresentou
o trabalho que P.A. M. Dirac publicara nos "Proceedings of the Royal
Society" de Londres em 1938, sôbre a teoria classica do elétron
puntiforme, sugerindo-me que o estudasse pois ali Dirac introduzia, pela primeira
vez, o campo avançado do elétron na definiçao do campo
de radiaçao. Como sempre, Dirac introduzia ai com audacia e intuição
novas idéias; desta vez, tratava-se de eliminar as divergências
que ocorriam na teoria do elétron de Lorentz. Desse estudo, resultou
uma nota que Mario e eu publicanos dando uma interpretaçao do postulado
de Dirac; este trabalho serviu de base à elaboração de
uma teoria do elétron puntiforme, desenvolvida por Schenberg e a qual
contribuiram tambem Lattes, Schutzer e Tiomno.
Ao regressar de Princeton, onde em 1944 e 1945, trabalhei com Josef M. Jauch
e W. Pauli, assumi a catedra de Fisica Teorica na Faculdade Nacional de Filosofia
no Rio de Janeiro em 1946. Tive então a ocasiao de retomar contato
com Schenberg. Discutimos varios aspectos da teoria que êle desenvolvia,
sôbre as possibilidades de elininação das divergências
na teoria classica e na teoria quantica dos campos (vêr cartas anexas).
Quando visitava o Departamento de Fisica da USP, era um prazer ir à
casa de Mario, cheia de livros e quadros de pintores brasileiros, varios dos
quais ele lançara e estimulava em suas carreiras.
Schenberg vinha frequentemente ao Rio, convidado por mimi ou por Plinio Sussenkind
Rocha, ou por Guido Beck. No ano de 1949, Lattes juntamente comigo e com Elisa
e Tiomno, fundamos o Centro Brasileiro de Pesquisas Fisicas, graças
à acolhida que nos deram os irinaos Lins de Barros, Joao Alberto, Nelson
e Henry British. Essa iniciativa, a meu vêr, se impunha dadas as dificuldades
para a pesquisa na Universidade do Rio - a Universidade do Brasil - ponto
de vista contrario era mantido por Plinio que nao admitia que se fundasse
um centro de pesquisas fora da universidade.
Ao expor essas dificuldades a Joao Alberto, politico de prestigio ligado ao
movimento de 1930, quando Lattes ainda estava em Berkeley, disse-me êle
que o Brasil não podia deixar de desenvolver pesquisas nucleares e
que, entao se fundaria um instituto privado.
Ao Centro como à Universidade vinha sempre Schenberg - e na Universidade
trabalhavamos nós, os fundadores do CBPF, pois acertadamente julgavamos
que a pesquisa devia estar acompanhada do ensino, da formação,
de novos fisicos.
Epoca de grandes realizações e de grandes dificuldades, de alegrias
e tristezas, de vitorias, crises e derrotas parciais. Mas foi uma época
que valeu a pena viver, tempos que deram à ciência brasileira
o legado,entre outros dos trabalhos teoricos de Schenberg, as conquistas experimentais
de Marcello Damy de Sousa Santos, Paulus Aulus Pompeia e Gleb Wataghin; no
Brasil descobriram êles a componente dura da radiação
cosmica; época tambem dos trabalhos pioneiros de Bernhard Gross e Costa
Ribeiro na fisica do estado solido.
As contribuições de Mario cobrem uma grande variedade de campos
da fisica. Antes de Schwinger, discutiu a função de Green de
Klein-Gordon em trabalho publicado pela Union Matematica Argentina. Publicou
sobre radiaçao cosmica, teoria quantica dos campos, mecânica
estatistica, teoria do electron, astrofisica, teoria dos mésons (sua
extensao projetiva das interações mesônicas sugeria violação
da paridade), relatividade geral, reflexões sobre a geometria e a fisica.
Trabalhos êsses distribuidos nos Comptes Rendus de Paris, Physical Review,
Nuovo Cimento, Physica, da Hollanda, Academia Brasileira de Ciências
e que merecem estudo demorado de fisicos que se dediquem à historia
e à filosofia da fisica.
Cometerei injustiças ao deixar de citar realizações de
outros fisicos. Mas nao importa. 0 que importa é que estamos aqui e
agora, os fisicos brasileiros, para render homenagem a um dos seus mais brihantes
mestrês, a Mario Schenberg, o fisico, o artista, o homem de grande cultura
e sabedoria, ao nosso querido colega e amigo.
S. Paulo, 22 de Dezembro de 1944
Caro Leite:
Wataghin mostrou-me sua carta e fiquei muito interessado sobretudo pelo calculo
com o recuo dos nucleons. Poderia mandar-me uma copia do seu trabalho? Você
já deve ter recebido a carta com a copia da nossa nota. Os resultados
estão todos corretos mas verifique duas cousas em que talves tenha
errado ao passar da notação vetorial para a tensorial:
1) A energia de aceleração ou melhor o respectivo quadrivetor
é (...)
2) A quadri-fôrça oriunda do campo de radiação
é (...)
Ocorreram-me duvidas sobre um denominador c3 na energia de aceleração
e sobre o sinal que dei ao F rad na nossa nota, vê-se logo qual é
o sinal certo comparando com o campo de radiação de Dirac que
é o dobro do nosso. Não posso tirar a duvida porque estou sem
copia do trabalho.
Já consegui construir um formalismo hamiltoniano para a equação
de Dirac sem processo e achei uma interpretação dos fotons negativos
como contribuição do campo avançado. Estou procurando
obter equações quanticas que incluam o efeito do "damping".
Infelizmente não temos os trabalhos de Heitlerd, Hamilton e Peng que
seriam de valôr heurístico. Ser-lhe ia possivel obter para mim
fotocópias?
De resto nada de novo. Um abraço do sempre seu
Caro Leite:
Estou muito interessado em conhecer melhor os seus calculos sobre a self-energy.
Desde setembro venho estudando eletrodinamica quantica e obtive alguns resultados
interessantes.
Concordo com o que você diz sobre a não eliminação
da sel-energia transversal pela simples introdução de ondas
retardadas e avançadas, com a quantização simetrica e
independente dos dois campos. Mas na minha nota da Physical Review os dois
campos não foram tratados simetricamente, está dito explicitamente
que, nos elementos de matriz da interação avançada, as
frequencias são tornadas negativas. Aliás isto é equivalente
ao metodo de Dirac, sob a forma de Pauli.
Ha uma incoerencia na minha nota da Physical Review: a energia do campo de
radiação torna-se positiva quando tomamos operadores anti-hermitianos
para (...), de modo que não ha realmente fotons negativos, se bem que
a self-energia desapareça (a transversal). Para eliminar a self-energia
(...) e sua associada dinamica é preciso, antes da quantização,
eliminar as ondas longitudinais (metodo de Fermi) e trabalhar sempre no sistema
de repouso do corpusculo. Senão pode-se utilizar o - process. E no
conjunto a cousa é pouco satisfatória. É porem curioso
que se possa evitar a introdução de fotons negativos, mas não
a de probabilidades negativas ligadas aos operadores anti-hermitianos.
Não ha dificuldade em introduzir o campo de Wentzel por meio de um
formalismo hamiltoniano. Basta introduzir separadamente um tempo do campo,
como no trabalho original de Dirac, Forch e Podalsky. Aliás eu consegui
compreender claramente as bases fisicas deste metodo, considerando a diferença
entre ações à distancia e ações atravez
dos campos.
Um dos resultados mais interessantes que encontrei foi a possibilidade de
eliminar as divergencias sem introduzir operadores anti-hermitianos. Pode-se
quantizar o campo de modo tal que os operadores de emissão e absorção
não comutem, utilizando os dois campos que introduzi. A parte da hamiltoniana
do campo correspondente à cada grau de liberdade é um operador
analogo à uma componente de momento angular. Ha possibilidades inteiramente
novas que ainda não explorei bem. Creio que se pode obter uma teoria
satisfatoria do "damping"e justificar o metodo de Heitler e Peng.
Não vale a pena alongar mais a carta porque logo poderemos conversar.
Recomendações a sua senhora e aos amigos.
Um abraço do Mario
Caro Leite:
Aproveito para lhe desejar felicidades no ano de 1947.
Conclui finalmente a quantização do campo de radiação.
Acho que o problema está definitivamente resolvido. Não é
necessario introduzir operadores anti-hermitianos. Pode-se "congelar"
os graos de liberdade do campo que não devem intervir numa determinada
transição radioativa, de modo a obter uma equação
de Schrõdinger reduzida, semelhente à de um sistema com um numero
finito de graos de liberdades cada processo particular se obtem essa equação
de Schrõdinger reduzido diferente. A teoria conduz a resultados equivalentes
aos de Heitler e Peng; pelo menos em alguns casos, mas afasta-se mais das
idéias correntes.
Seria bom se você pudesse vir logo, porque estou muito cansado e sem
disposição para trabalhar. Você poderia estudar a generalização
para o campo mésonico que, provavelmente, não apresentará
difficuldades especiais.
Queria lhe pedir um favôr. Vêr o que ha com o meu trabalho sobre
o formalismo hamiltoniano que deveria têr saido em setembro, na (...)
Physical.
Um abraço do Mario.