MARIO
SCHENBERG: LEMBRANÇAS EM SUA HOMENAGEM *
José Leite Lopes
Encontrei Mario Schenberg
pela primeira vez no ano de 1937, por ocasião de um Congresso Sul-Americano de
Quimica que teve lugar no Rio de Janeiro e em São Paulo - em Julho daquêle ano.
Eu era, então estudante de Quimica Industrial na Escola de Engenharia de
Pernambuco e integrava uma delegação dessa Escola àquele Congresso. Tinha desde
algum tempo o maior interêsse em conhecer Schenberg, já que no Recife, sob a
influência de Luiz Freire e de Oswaldo Gonçalves de Lima, havia decidido seguir
a carreira de pesquisa na fisica. E Luiz Freire, homem de grande cultura
cientifica e filosófica, havia sido professor de Schenberg na Escola de
Engenharia de Pernambuco alguns anos antes. Em varias ocasiões, na Escola,
antes ou depois de suas atraentes aulas de Fisica, Luiz Freire discorria sõbre
varios temas da fisica moderna e sôbre honens de ciência; tinha a maior
admiração por Mario Schenberg e o apontava como um fisico de talento
extraordinario, que certamente teria uma brilhante carreira.
No Rio de Janeiro e, em
seguida em São Paulo, Schenberg me acolheu com simpatia e amisade. Em São
Paulo, levou-me ao Departamento de Fisica da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras da Universidade de São Paulo, que então ocupava um andar superior na
Escola Politecnica. Ali conheci entre outros Gleb Wataghin, Luigi Fantappié e
Marcello Damy de Sousa Santos. Damy, em seu laboratorio, contava particulas da
radiação cosmica, com seus contadores de Geiger-Muller.
Voltei ao Recife encantado e
decidido a me transferir para o Rio ou São Paulo o mais cedo possivel. Mantive
correspondência com Mario, que me estimulava a vir para o Sul. No ano seguinte,
Schenberg passou de navio pelo Recife, em viagem para a Europa, onde trabalhou
no Instituto de Fisica da Universidade de Roma, com Enrico Fermi e esteve em
varios laboratorios na Europa, com W. Pauli em Zurich, com A. Proca e De
Broglie em Paris.
Em 1939, ao concluido meu curso de Quiniica na Escola de
Engenharia de Pernambuco recebi uma bolsa de estudos, por proposta de Oswaldo
Gonçalves de Lima, das Industrias Carlos de Brito. Como Schenberg, depois da
Europa, iria para os Estados Unidos, onde trabalharia com George Gamow e S.
Chandraseknar - o trabalho de Gamow e Schenberg sôbre o papel dos neutrinos no
processo de perda de energia das estrêlas é de grande importância em
astrofisica - decidi ir, por sugestão de Luiz Freire, para a Faculdade Nacional
de Filosofia que acabava de ser criada na Universidade do Brasil, no Rio de
Janeiro. Nesta Faculdade decidi fazer o curso de Fisica. As cartas de
apresentação de Luiz Freire a seus amigos, entre os quais Alvaro Alberto e
Adalberto Menezes de Oliveira, professores na Escola Naval, contribuiriam a que
pudesse permanecer no Rio e concluir o meu curso. Menezes de Oliveira,
concluida a minha bolsa, indicou-me para professor de Física no Instituto
La-Fayette. Concluido o meu curso em 1942, aceitei convite de Carlos Chagas
para trabalhar no Instituto de Biofisica com bolsa de Guilherme Guinle ; como a
minha vocação era a Fisica Teorica, obtive, com a apoio de Chagas e de
Wataghin, uma bolsa para trabalhar no Instituto de Fisica da Universidade de
São Paulo, concedida pela Fundação Zerrener. É assim que passei o ano. de 1943
nesse Instituto, seguindo, entre outros, os cursos de Gleb Wataghin sobre
fisica atômica, de Mario Schenberg sobre mecânica classica e mecânica celeste.
Era a época, na Universidade de São Paulo, alem de Schenberg, Wataghin e Damy,
de Guiseppe Occhialini, Abrahao de Morais, Paulo de Taques Bittencourt, entre
outros, na fisica; de Omar Catunda e Candido Dias, na matematica; de André
Dreyfus, na biologia, de Paulo Duarte e Fernando de Azevedo nas ciencias
humanas. No Rio de Janeiro, Jaime Tiomno e Elisa Frota Pessoa haviam sido meus
colegas de Fisica na Faculdade. Eram meus companheiros, juntamente com Leopoldo
Nachbin, Mauricio e Marilia Matos Peixoto assim como o sociologo Alberto Guerreiro
Ramos. Em Sao Paulo, em 1943, foram meus colegas Cesar Lattes, além de Sonja
Ashauer e Walter Schutzer, dois queridos colegas prematuramente desaparecidos.
Nesse ano, iniciei-me na pesqtjisa. Uma tarde, Mario Schenberg me apresentou o
trabalho que P.A. M. Dirac publicara nos "Proceedings of the Royal
Society" de Londres em 1938, sôbre a teoria classica do elétron
puntiforme, sugerindo-me que o estudasse pois ali Dirac introduzia, pela
primeira vez, o campo avançado do elétron na definiçao do campo de radiaçao.
Como sempre, Dirac introduzia ai com audacia e intuição novas idéias; desta
vez, tratava-se de eliminar as divergências que ocorriam na teoria do elétron
de Lorentz. Desse estudo, resultou uma nota que Mario e eu publicanos dando uma
interpretaçao do postulado de Dirac; este trabalho serviu de base à elaboração
de uma teoria do elétron puntiforme, desenvolvida por Schenberg e a qual
contribuiram tambem Lattes, Schutzer e Tiomno.
Ao regressar de Princeton, onde em 1944 e 1945, trabalhei
com Josef M. Jauch e W. Pauli, assumi a catedra de Fisica Teorica na Faculdade
Nacional de Filosofia no Rio de Janeiro em 1946. Tive então a ocasiao de
retomar contato com Schenberg. Discutimos varios aspectos da teoria que êle
desenvolvia, sôbre as possibilidades de elininação das divergências na teoria
classica e na teoria quantica dos campos (vêr cartas anexas).
Quando visitava o
Departamento de Fisica da USP, era um prazer ir à casa de Mario, cheia de
livros e quadros de pintores brasileiros, varios dos quais ele lançara e
estimulava em suas carreiras.
Schenberg vinha
frequentemente ao Rio, convidado por mimi ou por Plinio Sussenkind Rocha, ou
por Guido Beck. No ano de 1949, Lattes juntamente comigo e com Elisa e Tiomno,
fundamos o Centro Brasileiro de Pesquisas Fisicas, graças à acolhida que nos
deram os irinaos Lins de Barros, Joao Alberto, Nelson e Henry British. Essa
iniciativa, a meu vêr, se impunha dadas as dificuldades para a pesquisa na
Universidade do Rio - a Universidade do Brasil - ponto de vista contrario era
mantido por Plinio que nao admitia que se fundasse um centro de pesquisas fora
da universidade.
Ao expor essas dificuldades a
Joao Alberto, politico de prestigio ligado ao movimento de 1930, quando Lattes
ainda estava em Berkeley, disse-me êle que o Brasil não podia deixar de
desenvolver pesquisas nucleares e que, entao se fundaria um instituto privado.
Ao Centro como à Universidade
vinha sempre Schenberg - e na Universidade trabalhavamos nós, os fundadores do
CBPF, pois acertadamente julgavamos que a pesquisa devia estar acompanhada do
ensino, da formação, de novos fisicos.
Epoca de grandes realizações
e de grandes dificuldades, de alegrias e tristezas, de vitorias, crises e
derrotas parciais. Mas foi uma época que valeu a pena viver, tempos que deram à
ciência brasileira o legado,entre outros dos trabalhos teoricos de Schenberg,
as conquistas experimentais de Marcello Damy de Sousa Santos, Paulus Aulus
Pompeia e Gleb Wataghin; no Brasil descobriram êles a componente dura da
radiação cosmica; época tambem dos trabalhos pioneiros de Bernhard Gross e
Costa Ribeiro na fisica do estado solido.
As contribuições de Mario
cobrem uma grande variedade de campos da fisica. Antes de Schwinger, discutiu a
função de Green de Klein-Gordon em trabalho publicado pela Union Matematica
Argentina. Publicou sobre radiaçao cosmica, teoria quantica dos campos,
mecânica estatistica, teoria do electron, astrofisica, teoria dos mésons (sua
extensao projetiva das interações mesônicas sugeria violação da paridade),
relatividade geral, reflexões sobre a geometria e a fisica. Trabalhos êsses
distribuidos nos Comptes Rendus de Paris, Physical Review, Nuovo Cimento,
Physica, da Hollanda, Academia Brasileira de Ciências e que merecem estudo demorado
de fisicos que se dediquem à historia e à filosofia da fisica.
Cometerei injustiças ao
deixar de citar realizações de outros fisicos. Mas nao importa. 0 que importa é
que estamos aqui e agora, os fisicos brasileiros, para render homenagem a um dos
seus mais brihantes mestrês, a Mario Schenberg, o fisico, o artista, o homem de
grande cultura e sabedoria, ao nosso querido colega e amigo.
S. Paulo, 22 de Dezembro de 1944
Caro Leite:
Wataghin mostrou-me sua carta
e fiquei muito interessado sobretudo pelo calculo com o recuo dos nucleons.
Poderia mandar-me uma copia do seu trabalho? Você já deve ter recebido a carta
com a copia da nossa nota. Os resultados estão todos corretos mas verifique
duas cousas em que talves tenha errado ao passar da notação vetorial para a
tensorial:
1) A energia
de aceleração ou melhor o respectivo quadrivetor é (...)
2) A
quadri-fôrça oriunda do campo de radiação é (...)
Ocorreram-me duvidas sobre um
denominador c3 na energia de aceleração e sobre o sinal que dei ao Frad
na nossa nota, vê-se logo qual é o sinal certo comparando com o campo de
radiação de Dirac que é o dobro do nosso. Não posso tirar a duvida porque estou
sem copia do trabalho.
Já consegui construir um
formalismo hamiltoniano para a equação de Dirac sem processo e
achei uma interpretação dos fotons negativos como contribuição do campo
avançado. Estou procurando obter equações quanticas que incluam o efeito do
"damping". Infelizmente não temos os trabalhos de Heitlerd, Hamilton
e Peng que seriam de valôr heurístico. Ser-lhe ia possivel obter para mim
fotocópias?
De resto nada de novo. Um
abraço do sempre seu
Caro Leite:
Estou muito interessado em
conhecer melhor os seus calculos sobre a self-energy. Desde setembro venho
estudando eletrodinamica quantica e obtive alguns resultados interessantes.
Concordo com o que você diz
sobre a não eliminação da sel-energia transversal pela simples introdução de
ondas retardadas e avançadas, com a quantização simetrica e independente dos
dois campos. Mas na minha nota da Physical Review os dois campos não foram
tratados simetricamente, está dito explicitamente que, nos elementos de matriz
da interação avançada, as frequencias são tornadas negativas. Aliás isto é
equivalente ao metodo de Dirac, sob a forma de Pauli.
Ha uma incoerencia na minha
nota da Physical Review: a energia do campo de radiação torna-se positiva
quando tomamos operadores anti-hermitianos para (...), de modo que não ha
realmente fotons negativos, se bem que a self-energia desapareça (a transversal).
Para eliminar a self-energia (...) e sua associada dinamica é preciso, antes da
quantização, eliminar as ondas longitudinais (metodo de Fermi) e trabalhar
sempre no sistema de repouso do corpusculo. Senão pode-se utilizar o -
process. E no conjunto a cousa é pouco satisfatória. É porem curioso que se
possa evitar a introdução de fotons negativos, mas não a de probabilidades
negativas ligadas aos operadores anti-hermitianos.
Não ha dificuldade em
introduzir o campo de Wentzel por meio de um formalismo hamiltoniano. Basta
introduzir separadamente um tempo do campo, como no trabalho original de Dirac,
Forch e Podalsky. Aliás eu consegui compreender claramente as bases fisicas
deste metodo, considerando a diferença entre ações à distancia e ações atravez
dos campos.
Um dos resultados mais
interessantes que encontrei foi a possibilidade de eliminar as divergencias sem
introduzir operadores anti-hermitianos. Pode-se quantizar o campo de modo tal
que os operadores de emissão e absorção não comutem, utilizando os dois campos
que introduzi. A parte da hamiltoniana do campo correspondente à cada grau de
liberdade é um operador analogo à uma componente de momento angular. Ha
possibilidades inteiramente novas que ainda não explorei bem. Creio que se pode
obter uma teoria satisfatoria do "damping"e justificar o metodo de
Heitler e Peng.
Não vale a pena alongar mais
a carta porque logo poderemos conversar.
Recomendações a sua senhora e
aos amigos.
Um abraço do Mario
Caro Leite:
Aproveito para lhe desejar
felicidades no ano de 1947.
Conclui finalmente a
quantização do campo de radiação. Acho que o problema está definitivamente
resolvido. Não é necessario introduzir operadores anti-hermitianos. Pode-se
"congelar" os graos de liberdade do campo que não devem intervir numa
determinada transição radioativa, de modo a obter uma equação de Schrõdinger
reduzida, semelhente à de um sistema com um numero finito de graos de
liberdades cada processo particular se obtem essa equação de Schrõdinger
reduzido diferente. A teoria conduz a resultados equivalentes aos de Heitler e
Peng; pelo menos em alguns casos, mas afasta-se mais das idéias correntes.
Seria bom se você pudesse vir
logo, porque estou muito cansado e sem disposição para trabalhar. Você poderia
estudar a generalização para o campo mésonico que, provavelmente, não
apresentará difficuldades especiais.
Queria lhe pedir um favôr.
Vêr o que ha com o meu trabalho sobre o formalismo hamiltoniano que deveria têr
saido em setembro, na (...) Physical.
Um abraço do Mario.