Freud : Conflito & cultura
Jorge Zahar Editor – Rio de Janeiro – 2000.
       por Oscar Cesarotto

O que é bom para os Estados Unidos, em todos os casos seria bom para o Brasil? Em se tratando de psicanálise, vale a pena uma certa prudência. Na iminente chegada a São Paulo da exposição Sigmund Freud: Conflito e cultura, organizada pela Biblioteca do Congresso americano, junto com ela também receberemos os ecos das querelas que provocou lá, por obra e graça. E, com o mesmo nome, o livro a ser comentado, cujas páginas acompanham e ilustram as diversas seções do evento.

Então, cem anos depois do gesto inaugural freudiano, que marcou o século XX de maneira indelével, quando parecia que a presença reconhecida do inconsciente teria mudado a civilização para sempre, eis que uma resistência pós-moderna anti-Freud pretendeu gorar a efeméride. Não por acaso, o título Conflito e cultura tentou contemporizar os argumentos encontrados, numa verdadeira formação de compromisso. Porém, à cultura, que poderia ser definida como o estilo do recalque de cada época histórica, o conflito lhe é consubstancial. Pois, na alta modernidade, a América do Norte é assolada por uma onda de reacionarismo e fundamentalismo que não esconde sua antipatia pela libido. Por extensão, no predomínio do capitalismo avançado, interesses econômicos e políticos espalham-se pelo mundo afora, junto com sua ideologia, sua vitrine de crenças e, principalmente, suas concepções científicas são exportadas e impingidas pelo imperialismo tonitruante.

Isto posto, vamos ao que interessa, o teor dos artigos que compõem o presente volume. Em primeiro lugar, um par deles trata sobre a capacidade de trabalho de Freud, realmente espantosa, considerando que ele "labutava", ou seja, precisava ganhar seu sustento passando longas horas por dia atendendo pacientes. Não só: também seu investimento intelectual, diário, constante e ininterrupto por décadas e décadas, sem presa e sem pausa, escrevendo sua teoria, além de uma frondosa correspondência. Em tom de admiração, Patrick Mahoney infere que, para tanta produção, estimulantes externos nunca foram alheios; primeiro a cocaína, mais tarde e para sempre, os eternos charutos.

John Forrester, por sua vez, revisita o momento princeps da interpretação dos sonhos à luz da auto-análise, e especula sobre quem teria desempenhado a função de alteridade para tornar tal empreitada possível. Na esteira de Octave Mannoni, endossa a hipótese da análise original, considerando a Wilhelm Fliess como o suporte transferencial propiciador da abertura do inconsciente freudiano. (Para complementar esta perspectiva, aqui poderia ser acrescentada uma idéia extemporânea: seria conjecturável que, anos mais tarde, Freud teve outro "analista", nada menos que o Moisés de Michelangelo. Com efeito, numa temporada de férias em Roma, todas as tardes, no mesmo horário, comparecia na igreja onde a estátua se encontrava, e ali permanecia sentado por uma hora, ensimesmado. Se o silêncio analítico é a condição para desfraldar o discurso do paciente, haveria algo melhor que a mudez de uma figura de pedra, semblante perfeito para causar o desejo?)

Na segunda parte do livro, as questões ficam por conta do complexo de Édipo. Para John Toews, o valor da referência freudiana seria eminentemente moral, na conquista da autonomia subjetiva e da identidade sexuada. O autor leva o mito ao pé da letra, destacando a versão masculina, sem dar o devido peso à função que a castração impõe para os dois sexos. Talvez nunca tenha lido um dos textos menos conhecidos –mas não por isso menos importantes- de Freud, O Presidente Thomas Woodrow Wilson, onde o Édipo, para além da anedota, é elevado à categoria de estrutura.

O escrito seguinte discute o paradigma freudiano das relações sociais, isto é, o papel do ideal do eu na constituição e coesão da massa. Em suas próprias palavras, José Brunner é ambivalente para com Freud, a quem considera, ao mesmo tempo, reducionista, falocêntrico e autoritário, embora ache a sua contribuição inestimável para definir o problema da "hostilidade mútua primária entre os seres humanos"... Ainda bem que Harold Blum é um pouco mais sensato na sua avaliação do poder da hipnose, reconhecendo o corte epistemológico entre tal prática e a psicanálise, e entendendo melhor que o articulista anterior as diferenças entre a sugestão e a transferência. Continuando por este viés, o trabalho de Hannah Decker sobre o caso Dora é bom, apesar de um tanto ingênuo: o historial é relatado corretamente, mas sem prestar nenhuma atenção as reviravoltas dialéticas entre a o analista e a paciente, e suas conseqüentes retificações subjetivas.

Chega-se assim à terceira parte, Assimilação e disseminação. O ensaio de Peter Gay é competente, destacando a contribuição da compreensão psicanalítica na sua especialidade, a História. Caberia aqui acrescentar um parâmetro de convergência entre a tarefa do historiador e a do analista. Como já apontara Carlo Guinsburg, ambos –como também o detetive tipo Sherlock Holmes- seriam usuários de um mesmo método científico, na interpretação de rastos, restos e sinais, denominado de paradigma indiciário ou semiótico, surgido por volta do final do século XlX, amplamente operante de fato, e quase nunca teorizado de maneira explícita.

A seguir, um conjunto de quatro artigos situa a incidência do freudismo nos Estados Unidos. O primeiro conta a visita do mestre vienense em 1909, os altos e baixos de sua popularidade nas terras do Tio Sam, as peculiaridades da formação dos profissionais ianques, o problema da análise leiga, e a chegada dos analistas europeus depois da Segunda Guerra. O segundo rende uma merecida homenagem a Erik Erikson, um exemplar desta espécie, que acabou se tornando um dos autores culturalistas de maior proeminência. O último da série comenta os vínculos entre o inconsciente e o cinema. De início, a recepção que Hollywood ofereceu às idéias psicanalíticas não foi muito calorosa. Nos anos em que a censura do código Hayes controlava inquisitorialmente as mensagens e as imagens, a outra cena não tinha muita chance de ser apresentada como tal.

Foi nos chamados "filmes B", aqueles de baixo orçamento e produção desleixada, que as alusões a Freud e sua teoria fizeram sua entrada na tela grande. Mais tarde, os analistas seriam personagens freqüentes em muitas fitas, dramáticas ou cômicas.

Acrescentemos agora um breve comentário sobre a contribuição do cartunista Art Spiegelman, o genial criador de Maus. Como sempre, seus desenhos são muito bons, sua inteligência é brilhante e mordaz, mas seu cartoon comprova que, na medida em que traduz e entende o witz como joke, pisa na bola, pois nada entende do riscado.

Para finalizar, o grupo de trabalhos intitulado Heranças contestadas fecha o livro na alçada da polêmica e do confronto. Freud e sua obra são colocados contra a parede, indiciados e praticamente condenados. Frank Cioffi escreve sobre as controvérsias que a prática freudiana desperta atualmente, no que diz respeito à possibilidade de verificação da sua eficácia, com argumentos consistentes que deveriam ser levados em consideração. Todavia, para Peter Kramer, tanto a teoria quanto seu mentor padecem de erros que talvez desqualifiquem seu prestígio, colocado agora sob caução. Há, ainda, um paper sobre as relações paradoxais –de fascínio, mas também de contestação-, entre o feminismo e a psicanálise.

Oliver Sachs, depois, reporta-se às origens de Freud como neurologista para apontar qual teria sido a base de um pensamento que, segundo ele, nunca ficaria por completo isento de uma interligação de dependência entre o modelo funcional do cérebro e o psiquismo, iniciada no Projeto de 1895.

Concluindo esta resenha, o texto de Adolf Grünbaum pode ser considerado o ponto alto das diatribes à epísteme freudiana. Este autor não hesita em afirmar que Freud teria falhado nas suas fundamentações, além de não comprovar a veracidade operacional do seu método terapêutico. Sua crítica atinge também Jacques Lacan, desconsiderado impiedosamente. No entanto, e não obstante sua animosidade, é interessante ver como, ainda hoje, após mais de cem anos de clínica, a questão do recalque continua sendo a pedra no sapato da ideologia reacionária. Pedra angular da teoria, na realidade trata-se de um rochedo, aquele mesmo, que não tem remédio nem nunca terá. Qual seria a razão do recalque? O que teria de intrinsecamente conflitante a sexualidade humana que a torna alvo fácil e inevitável do recalque?

Porque, para Freud, o recalque originário –mesmo sendo um fenômeno não observável- nada teria de metafísico? Muito pelo contrário, como pedra de toque conceitual, permite edificar um sistema de pensamento –a metapsicologia- que exige um status científico singular, impossível de ser validado pela metodologia bitolada do positivismo laboratorial.

Por estes e outros motivos, celebremos o conflito, desejemos longa vida para nossos antagonistas, e lembremos que, mesmo mortos, Freud –e também Darwin- continuam gozando de boa saúde, intranquilizando as respeitáveis consciências da era Clinton.

 

Oscar Cesarotto – Psicanalista. Professor de Semiótica Psicanalítica no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP.


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