Então, cem
anos depois do gesto inaugural freudiano, que marcou o século XX de maneira indelével,
quando parecia que a presença reconhecida do inconsciente teria mudado a civilização
para sempre, eis que uma resistência pós-moderna anti-Freud pretendeu gorar a
efeméride. Não por acaso, o título Conflito e cultura tentou contemporizar os
argumentos encontrados, numa verdadeira formação de compromisso. Porém, à cultura, que
poderia ser definida como o estilo do recalque de cada época histórica, o conflito lhe
é consubstancial. Pois, na alta modernidade, a América do Norte é assolada por uma onda
de reacionarismo e fundamentalismo que não esconde sua antipatia pela libido. Por
extensão, no predomínio do capitalismo avançado, interesses econômicos e políticos
espalham-se pelo mundo afora, junto com sua ideologia, sua vitrine de crenças e,
principalmente, suas concepções científicas são exportadas e impingidas pelo
imperialismo tonitruante.
Isto posto, vamos ao que interessa, o teor dos
artigos que compõem o presente volume. Em primeiro lugar, um par deles trata sobre a
capacidade de trabalho de Freud, realmente espantosa, considerando que ele
"labutava", ou seja, precisava ganhar seu sustento passando longas horas por dia
atendendo pacientes. Não só: também seu investimento intelectual, diário, constante e
ininterrupto por décadas e décadas, sem presa e sem pausa, escrevendo sua teoria, além
de uma frondosa correspondência. Em tom de admiração, Patrick Mahoney infere que, para
tanta produção, estimulantes externos nunca foram alheios; primeiro a cocaína, mais
tarde e para sempre, os eternos charutos.
John Forrester, por sua vez, revisita o momento princeps
da interpretação dos sonhos à luz da auto-análise, e especula sobre quem teria
desempenhado a função de alteridade para tornar tal empreitada possível. Na esteira de
Octave Mannoni, endossa a hipótese da análise original, considerando a Wilhelm
Fliess como o suporte transferencial propiciador da abertura do inconsciente freudiano.
(Para complementar esta perspectiva, aqui poderia ser acrescentada uma idéia
extemporânea: seria conjecturável que, anos mais tarde, Freud teve outro
"analista", nada menos que o Moisés de Michelangelo. Com efeito, numa temporada
de férias em Roma, todas as tardes, no mesmo horário, comparecia na igreja onde a
estátua se encontrava, e ali permanecia sentado por uma hora, ensimesmado. Se o silêncio
analítico é a condição para desfraldar o discurso do paciente, haveria algo melhor que
a mudez de uma figura de pedra, semblante perfeito para causar o desejo?)
Na segunda parte do livro, as questões ficam por
conta do complexo de Édipo. Para John Toews, o valor da referência freudiana seria
eminentemente moral, na conquista da autonomia subjetiva e da identidade sexuada. O autor
leva o mito ao pé da letra, destacando a versão masculina, sem dar o devido peso à
função que a castração impõe para os dois sexos. Talvez nunca tenha lido um dos
textos menos conhecidos mas não por isso menos importantes- de Freud, O
Presidente Thomas Woodrow Wilson, onde o Édipo, para além da anedota, é elevado à
categoria de estrutura.
O escrito seguinte discute o paradigma freudiano
das relações sociais, isto é, o papel do ideal do eu na constituição e coesão da
massa. Em suas próprias palavras, José Brunner é ambivalente para com Freud, a quem
considera, ao mesmo tempo, reducionista, falocêntrico e autoritário, embora ache a sua
contribuição inestimável para definir o problema da "hostilidade mútua primária
entre os seres humanos"... Ainda bem que Harold Blum é um pouco mais sensato na sua
avaliação do poder da hipnose, reconhecendo o corte epistemológico entre tal prática e
a psicanálise, e entendendo melhor que o articulista anterior as diferenças entre a
sugestão e a transferência. Continuando por este viés, o trabalho de Hannah Decker
sobre o caso Dora é bom, apesar de um tanto ingênuo: o historial é relatado
corretamente, mas sem prestar nenhuma atenção as reviravoltas dialéticas entre a o
analista e a paciente, e suas conseqüentes retificações subjetivas.
Chega-se assim à terceira parte, Assimilação
e disseminação. O ensaio de Peter Gay é competente, destacando a contribuição da
compreensão psicanalítica na sua especialidade, a História. Caberia aqui acrescentar um
parâmetro de convergência entre a tarefa do historiador e a do analista. Como já
apontara Carlo Guinsburg, ambos como também o detetive tipo Sherlock Holmes- seriam
usuários de um mesmo método científico, na interpretação de rastos, restos e sinais,
denominado de paradigma indiciário ou semiótico, surgido por volta do
final do século XlX, amplamente operante de fato, e quase nunca teorizado de maneira
explícita.
A seguir, um conjunto de quatro artigos situa a
incidência do freudismo nos Estados Unidos. O primeiro conta a visita do mestre vienense
em 1909, os altos e baixos de sua popularidade nas terras do Tio Sam, as peculiaridades da
formação dos profissionais ianques, o problema da análise leiga, e a chegada dos
analistas europeus depois da Segunda Guerra. O segundo rende uma merecida homenagem a Erik
Erikson, um exemplar desta espécie, que acabou se tornando um dos autores culturalistas
de maior proeminência. O último da série comenta os vínculos entre o inconsciente e o
cinema. De início, a recepção que Hollywood ofereceu às idéias psicanalíticas não
foi muito calorosa. Nos anos em que a censura do código Hayes controlava
inquisitorialmente as mensagens e as imagens, a outra cena não tinha muita chance
de ser apresentada como tal.
Foi nos chamados "filmes B", aqueles de
baixo orçamento e produção desleixada, que as alusões a Freud e sua teoria fizeram sua
entrada na tela grande. Mais tarde, os analistas seriam personagens freqüentes em muitas
fitas, dramáticas ou cômicas.
Acrescentemos agora um breve comentário sobre a
contribuição do cartunista Art Spiegelman, o genial criador de Maus. Como sempre,
seus desenhos são muito bons, sua inteligência é brilhante e mordaz, mas seu cartoon
comprova que, na medida em que traduz e entende o witz como joke, pisa na
bola, pois nada entende do riscado.
Para finalizar, o grupo de trabalhos intitulado Heranças
contestadas fecha o livro na alçada da polêmica e do confronto. Freud e sua obra
são colocados contra a parede, indiciados e praticamente condenados. Frank Cioffi escreve
sobre as controvérsias que a prática freudiana desperta atualmente, no que diz respeito
à possibilidade de verificação da sua eficácia, com argumentos consistentes que
deveriam ser levados em consideração. Todavia, para Peter Kramer, tanto a teoria quanto
seu mentor padecem de erros que talvez desqualifiquem seu prestígio, colocado agora sob
caução. Há, ainda, um paper sobre as relações paradoxais de fascínio,
mas também de contestação-, entre o feminismo e a psicanálise.
Oliver Sachs, depois, reporta-se às origens de
Freud como neurologista para apontar qual teria sido a base de um pensamento que, segundo
ele, nunca ficaria por completo isento de uma interligação de dependência entre o
modelo funcional do cérebro e o psiquismo, iniciada no Projeto de 1895.
Concluindo esta resenha, o texto de Adolf
Grünbaum pode ser considerado o ponto alto das diatribes à epísteme freudiana. Este
autor não hesita em afirmar que Freud teria falhado nas suas fundamentações, além de
não comprovar a veracidade operacional do seu método terapêutico. Sua crítica atinge
também Jacques Lacan, desconsiderado impiedosamente. No entanto, e não obstante sua
animosidade, é interessante ver como, ainda hoje, após mais de cem anos de clínica, a
questão do recalque continua sendo a pedra no sapato da ideologia reacionária. Pedra
angular da teoria, na realidade trata-se de um rochedo, aquele mesmo, que não tem
remédio nem nunca terá. Qual seria a razão do recalque? O que teria de intrinsecamente
conflitante a sexualidade humana que a torna alvo fácil e inevitável do recalque?
Porque, para Freud, o recalque originário
mesmo sendo um fenômeno não observável- nada teria de metafísico? Muito pelo
contrário, como pedra de toque conceitual, permite edificar um sistema de pensamento
a metapsicologia- que exige um status científico singular, impossível de ser
validado pela metodologia bitolada do positivismo laboratorial.
Por estes e outros motivos, celebremos o
conflito, desejemos longa vida para nossos antagonistas, e lembremos que, mesmo mortos,
Freud e também Darwin- continuam gozando de boa saúde, intranquilizando as
respeitáveis consciências da era Clinton.
Oscar Cesarotto Psicanalista.
Professor de Semiótica Psicanalítica no Programa de Pós-Graduação em
Comunicação e Semiótica da PUC-SP.