A psicanálise com crianças se situa assim no tempo de desconto que a
criança subjetiviza ali onde isso era gozado, a necessária perda da cena parental da que
deve descontar-se e que constitui a estaca zero da sucessão temporal em que consiste sua
própria história. (2) Como responder, então, desde esse lugar a pergunta que inaugura
cada consulta acerca do que lhe ocorre a uma criança? Para além da dimensão
diagnóstica a que alude - dimensão que está presente no analista para situar-se na
cura, mesmo que não seja necessariamente comunicável -, se faz evidente que muitas vezes
é esse diagnóstico o que se vem buscar.
Um "psicodiagnóstico" cujas
"conclusões" derramadas em "informes" costumam circular
irresponsavelmente, tornando pública nas instituições - em especial a escolar- a
intimidade dessas crianças, às suas custas e, obviamente, sem seu consentimento.
A resposta do analista a essa pergunta dos pais
mal poderia ser um rótulo psicopatológico que, reforçando a posição objetalizada da
criança, o encaixaria em uma nomenclatura, com o risco de marcar a fogo seu futuro
"em tempo de espera".
O "psicodiagnóstico" costuma trazer
aparelhada a precipitada conclusão de que "não existe nada que esperar", por
quanto já estaria aparentemente "tudo" dito.
Situação imprópria para a criança e de risco
para o analista que, preso nas suas próprias afirmações, tenderia a fixar, mais do que
um ponto de partida, um "ponto de chegada", congelando o devir da cura. Não
está de mais lembrar que o que caracteriza a consulta por uma criança é que alguém
pede por e para ela. É imprescindível situar então quem, o quê e para quem demanda, o
que não é sempre evidente nas entrevistas iniciais.
Um pai solicita tratamento para seu filho quando
o que denota como sintoma recobre um saber cujo sentido lhe escapa, mas que considera
dirigido a ele, atribuindo à criança, às vezes, certa intencionalidade.
Os pais aparecem destituídos momentaneamente
desse lugar de saber sobre seus filhos que se supõe deveriam sustentar durante a
infância (3). Daí essa queixa dirigida ao analista: "não sei o que lhe está
acontecendo", "não sei o que fazer". É a suposição de um saber oculto
recoberto pelo sintoma a que motiva a demanda e o que se espera que o analista decifre
(4).
Uma das formas como costumo responder, longe de
circunscrever a uma nosologia, consiste em transmitir aos pais, desde o início da
consulta, uma "leitura" aproximada da cena que ficou recortada no discurso
familiar. É uma maneira de interpretar nos casos mais acessíveis a nossa intervenção,
quando o sintomático da criança, segundo propõe Lacan (5), está em posição de
responder ao que existe de sintomático na estrutura do casal parental.
Trata-se de uma construção que comenta o quê
dessa interrogação sobre a criança se articula na cena "que faltava", cena
lúdica que tentamos sustentar, e que se desdobra no consultório. Intervenção que
aponta não somente a re-situar a criança em sua condição de tal, senão que relativiza
a intencionalidade intolerável atribuída ao sintoma; e que contribui, por sua vez, a
re-introduzir em termos discursivos a cena perturbadora no mito familiar.
Foi o que ocorreu no caso de um púbere, segundo
de três irmãos, designado como o "menino problema", que sofria e fazia sofrer
com seu padecimento aos seus pares e aos seus pais. Estes, aflitos pela perda acidental de
sua primeira gravidez no último mês de gestação, tomaram a determinação de não ter
mais filhos.
Decisão que, evidentemente, não cumpriram, mas
que se deslizava na afirmação de que nenhum de seus três filhos foi esperado. A mãe
contava que, ao saber da gravidez de meu paciente, lhe abrumava a convicção de que
depois da morte do primeiro filho e um segundo nascido com uma má formação, não
poderia esperar mais que um novo problema. O paradoxal era que o "mais são" dos
três (ou dos quatro) não podia evitar encarnar o temido "problema",
significado como desobediência e rebeldia e que se revelava, contrariamente, como a
"eloqüente" expressão de uma obediência irrefletida à fantasmática
parental.
Outra maneira de responder a um pedido de
diagnóstico é transmitir o que em ocasiões capturamos como um modo de "não
renuncia" que envolve tanto a criança na análise como a um ou a ambos progenitores.
Trata-se de um ponto que amarra a resposta da criança (o que se indica como seu sintoma)
e o chamado mudo de uma satisfação inadvertida nos pais.
Lembro de um menino de oito anos, neto de um
velho dirigente stalinista, por quem me consultam, não casualmente, no momento da queda
do muro de Berlim e a conseqüente derrubada da hegemonia da URSS. O pai deste menino
tinha sofrido passivamente o autoritarismo de seu próprio pai, a quem nunca tinha se
atrevido a contradizer. O motivo da consulta alude, no início, ao baixo rendimento
escolar, efeito do desafio constante do pequeno à autoridade da professora: ela lhe
parece "tonta", "indigna de atenção". A cena que o sintoma desenha
revela-se num episódio que comove a rotina familiar. Depois de uma discussão do pai com
seu irmão (o preferido do "patriarca"), o pequeno deixa na casa de seus avôs
um bilhete -que pretende fazer passar como "anônimo" e assina ingenuamente com
o sobrenome de seu tio- onde acusa de maneira insultante o avô de fictícias injustiças
cometidas ao largo dos anos.
Para além da raiva inicial -a letra delatava o
autor do "panfleto"-, a satisfação do pai pelo atrevimento de seu filho era
evidente. Nessa entrevista reconhece, com um sorriso nos lábios, que se deleitava pelo
filho ter uma posição desafiadora. Resultava manifesto que a rebelião, em princípio
tinha, para seu pai, mesmo que reprimido, outro destinatário: o avô, seu próprio pai,
ante quem não tinha podido rebelar-se nunca.
Porém, o diagnóstico psicopatológico
propriamente dito se estabelece às vezes na clínica de um modo inelutável, sem que sua
função possa ser situada de maneira unívoca. Vou me referir brevemente a dois casos,
ambos rotulados de "autismo", nos quais este termo e sua dialética se inscrevem
de uma maneira oposta.
No primeiro, os pais consultam por uma criança
de três anos que não fala nem responde as "consignas da professora no Jardim".
O pai descreve, na primeira entrevista, as provas que ensaia para corroborar que o menino
entende o que lhe é pedido. A mãe, por outro lado, não deixa de transmitir-me que teme,
desde a gravidez, ter um filho com "deficiências neurológicas" similares as
que sua irmã porta desde o nascimento. Uma infecção do menino realiza seus temores: o
bebê é internado durante trinta dias na UTI neonatal, onde ela "só ia para
escutá-lo chorar".
Através de suas descrições, não era difícil
deduzir que tinha sofrido uma depressão puerperal inadvertida por seu entorno. Ao final
dessa primeira entrevista, a mãe me pergunta precipitadamente e, como pedindo licença,
se estando seu pequeno "nesse estado" poderia "encomendar" outro
bebê. Ao largo das seguintes reuniões com os pais se faz evidente que vêm para
autorizar-se a ter outro filho, mas também para confirmar o fantasma materno. Durante os
três meses que durou o tratamento, a criança começou a falar, a relacionar-se com
outras crianças no Jardim, enquanto desdobrava jubilosamente na sessão uma brincadeira
de esconde-esconde, de fazer-me cair e dele cair, ante o olhar surpreso do pai. Evito
utilizar termo psicopatológico algum para referir-me ao pequeno.
A mãe fica repentinamente grávida e a criança
é tirada abruptamente do tratamento, invocando que "não poderia com a gravidez e
com a criança". Ao cabo de um tempo, um psiquiatra sanciona o mencionado
"autismo" sem advertir que o que está em jogo na demanda da mãe é a
permissão de dedicar-se inteiramente a um "filho são". A confirmação do que
ela "sabia" desde antes do nascimento a habilita a deixar o menino que é
confinado numa instituição "especializada".
Ao inverso, no segundo caso, a confirmação do
diagnóstico se faz necessária para que os pais possam se re-situar frente a sua
suposição inicial. A consulta estava formulada de maneira tal que o que vinham
desesperadamente buscar não era um pedido de tratamento senão de ratificação ou, mais
precisamente, a retificação de um diagnóstico que os consumia numa profunda angústia.
O pedido era de estabelecer um diagnóstico para poder mudar a criança de analista, sem o
terror de estar causando-lhe um dano irreparável, e retomar assim um certo saber sobre a
mesma que esse tratamento pretensiosamente "analítico" lhes tinha transferido.
O menino que descrevia o "analista" era
outro que o aquele que os pais reconheciam, responsabilizando-os do prejuízo que lhe
acarretariam se o afastavam dele. Esse "analista" era o único que podia
conversar com o menino, o único capaz de traduzir suas demandas, situação que nem os
pais e nem a escola a que freqüentava havia quatro anos podiam constatar. O diagnóstico
de autismo lhes permitiu, neste caso, recuperar a possibilidade de tomar uma decisão
responsável sobre o futuro de seu filho e decidir uma mudança de orientação e na
modalidade do tratamento.
Se, dado o caráter objetivante de um
diagnóstico e suas eventuais conseqüências "autoproféticas", tendemos em
princípio a retê-lo, os exemplos mencionados tentam relativizar a possibilidade de uma
conduta estandarizada. Porque o pedido de um diagnóstico põe inevitavelmente em jogo a
falha estrutural que separa a demanda do desejo, falha que, no caso da psicanálise de
crianças, corresponde ao pedido dos pais pelos seus filhos. Será necessário o percurso
das diversas seqüências dessa demanda inicial ao largo das entrevistas para elucidar
algumas referências atinentes ao desejo em que esse diagnóstico será capturado,
instalando-se como a confirmação "fatal" de um destino, ou habilitando uma
mudança ainda por vir.