editorial de
www.pucsp.br/psilacánise
"A violência não é apenas
intrínseca à condição humana, e já foi apresentada como recurso imprescindível para
superar etapas obsoletas. Podemos discutir se Karl Marx e Friedrich Nietzche estavam
certos propondo tal função. Seria difícil refutá-los.
Com a violência acontece algo parecido
com a dor, a fome ou a culpa: tudo depende da dose. Nesta vida, nada de violência é
equivalente à morte. E muita, também... O mesmo raciocínio pode ser aplicado à fome,
à culpa e à dor.
Quem, porém, determina a dosagem? Quanto
e que tipo de violência seria tolerável em cada oportunidade? Além da violência
destrutiva, existem as inocentes ou sublimadas: o esporte, as tiradas de sarro, a
competição. Suas presenças dinamizam, mas seus matizes, objetivos e resultados são
contraditórios e infinitos segundo interesses, circunstâncias e protagonistas.
A violência foi exaltada como parteira do
progresso. No entanto, agora temos dúvidas sobre a própria natureza do progresso. Alguns
até afirmam que é prejudicial. Eu me recuso a condená-lo. Pelo contrário, acho que
atualmente o progresso ficou esfacelado. Em vez de se estender como um previsível eixo
que começa embaixo e termina encima, que levaria -teleologicamente- do alfa até o
ômega, ele se desdobrou em várias direções, algumas das quais têm intensidade
semelhante, enquanto outras sequer mantém paralelismo entre si, nem mesmo relação
dialética. Por exemplo, progridem a abundância e a escassez, a beleza e a feiura, os
direitos e suas violações, a solidariedade e a falta de solidariedade, o respeito e o
ódio, o bem-estar e a exclusão. Há crescimento e retrocesso, fantástica produção de
bens e tremendo esbanjamento do que se produz. Progredimos para o bem, e progredimos para
o mal.
A violência de matar gente nunca cessa.
Ë difícil considerá-la uma benção. Contudo, muitos iluminados a justificam como um
instrumento divino, o meio inevitável para garantir a paz, a ordem e a glória do Senhor.
As armas continuam a ser benditas pelas autoridades religiosas, e as carnificinas,
comemoradas pelo povo exaltado de patriotismo e outras alienações. Ingressamos no novo
milênio sem que a guerra tenha sido erradicada dos usos humanos e, por enquanto, não foi
entendido que, por sobre todas as coisas, é sempre criminal e estúpida. Vista em
perspectiva, jamais dissimula seu caráter sinistro.
Agora é ainda mais grave. Houve um
avanço horrível nesta área. Matar já não significa defesa ou afã de transcendência,
senão entretenimento. Esta novidade faz a felicidade dos que fabricam armas, dos que se
ocupam de construir de novo as zonas desbastadas pelos bombardeios, dos que submetem
regiões inteiras ou produzem cortinas de fumaça para ocultar sujeiras políticas. O
homicídio como diversão não apenas incentiva a vontade de matar, senão a indiferença
com que se mata. Progresso, uma ova! Agora pode-se liquidar o semelhante sem perceber sua
dor, sem ter perto o corpo convulso do iminente cadáver. Tirar a vida é equivalente a um
vídeo-game, um homicídio virtual. Algo tão inocente e benéfico como jogar pesticidas
desde um avião sobre seres que não valem mais que insetos.
Durante a Segunda Guerra Mundial,
calculava-se que um 80 por cento dos soldados se resistiam a disparar. Tamanha proporção
era insuficiente para os fins ofensivos. Naquela época, Stalin afirmava que quem não
estava decidido a ir até o fim, já estava à mercê da derrota. Então, começaram os
treinos mais eficazes e sofisticados. Mediante jogos, filmes e vídeos foi ensinado a
eliminar a humanidade o inimigo. Ali estava a chave: supor que não se tratava de gente
como a gente, senão de alvos que deviam ser eliminados com alegria.
Apenas vinte anos depois, quando foi
deflagrada a guerra de Vietnam, o número de soldados que mostrava algum tipo de
resistência caiu para um 20 por cento. Tinha sido obtida uma profunda insensibilidade.
Mais progresso! O intuito de banalizar a vida estava sendo cumprido. Este avanço homicida
foi acompanhado por outro, de signo contrário: as demandas das organizações que
defendem os direitos humanos e clamam pela paz. Para uns, o inimigo é menos respeitável
que as baratas. Para outros, são irmãos cujos direitos não podem ser profanados.
As conseqüências desta situação,
entretanto, não ficam restritas ao âmbito castrense. Os filmes e os vídeo-games
conquistam multidões. A violência não se sublima, e retorna à etapas primitivas, de
uma crueldade que nem os lobos têm. O progresso da destruição, pelo menos em
aparência, ganha de longe ao da solidariedade."
Marcos Aguinis. Los iluminados, Editorial
Atlántida, Buenos Aires. 2000 |