A
marca do gesto: subjetividade
Leitura de Narciso de Caravaggio
por Samira Chalhub
Eu sou do que já fui, tão diferente
Que quando por meu nome alguém me chama,
Pasmo, quando conheço
Que ainda comigo mesmo me pareço.
Camões
Da imagem
Camões indica uma desproporção: Eu sou
(A), do passado, tão diferente (B), ou seja, A= B, mas um Traço, o traço,
simbólico que nomeia (o seu nome dito por Outro), o faz reconhecer-se na sua parecência.
Entre um eu (antes) e eu (agora), um Outro se interpõe, o semblante de Eu
nos caminhos do tempo, desde o início originário do espelho, quando ali se vê todo,
recompostos os fragmentos do corpo metonímico numa metáfora que o nomeia. Confirmando
desde logo o desacordo entre o imaginário e o simbólico. Desacordo também entre a
imagem e o verbal do nome. Entre o ver e o ouvido, entre o visto e o dito.
Os significantes eu e imagem do eu
compõem uma constelação que envia ao sentido do mito de Narciso: eu sou a imagem
real. Vários equívocos se traçam: o engano de que haja um real de eu, já que eu
é imagem despossuída de si, é imagem do outro. Esse é o ponto do estádio do espelho
(1), a experiência de identificação fundamental, onde a criança desbrava a conquista
do corpo.
A imagem que está no espelho parece-lhe
real e quer apreendê-la. Eis aí o assujeitamento do imaginário. Descobre, depois, que o
outro do espelho é tão só uma imagem e, depois ainda, que a imagem é a dela.
Reconhece-se, pois, através da imagem, enquanto representação do corpo próprio. Busca
confirmação através do gesto do Outro.
Mas a identificação primordial fica fixada a
partir de algo virtual, a imagem ótica que, mesmo não sendo dela, ela aí se reconhece.
O humano é tomado pelo imaginário. Mas que
isso: há uma confirmação simbólica de seu nome (imagem nomeada) e a memória de um
real fragmentado que se juntou na experiência de unidade do espelho, ao preço de uma
alienação no Outro, de um mal-estar do signo.
Sá de Miranda diz "comigo me desavim".
Camões otimiza o gesto pasmado de conhecer-se parecendo-se.
A arte vive, pois, dessa desavença aquém e
além do espelho, ou seja, luta para conquistar o momento-instante que se fez memória do
antes, projetando construtivamente o signo estético para além do agora. Imagem é, pois,
agoridade: gozo de um ideal, portanto ficção mítica, semblante da origem.
Bastando-se a si própria, cala o simbólico.
Ou é sempre equívoco, semblante da falta, rumo
ao ideal sígnico, perfazendo uma estética do desejo.
De Narciso
No imaginário da cultura, Narciso é uma
adjetivação do eu. Tem, no entanto, uma etimologia proveniente do real do significado: narkisós
possui o elemento narké, cujo sentido é entorpecimento (narcótico),
aquele que dorme.
Desfalecendo diante de sua própria imagem,
fascinado por ela -melhor dizendo, acreditando-a real, já que o espelho-água não fez
obstáculo, e não há simbólico que confirme uma diferença (nome e imagem), mas um
mandato o qual ignora, o de que não deve contemplar-se, Narciso está face-a-face o
trágico da lei inexorável, para quem quer apenas gozar da satisfação imediata. Aí
desaparece na morte da imagem, mas a estética do mito o faz renascer em outra espécie, a
do real da natureza.
Se a estética fascina-se na própria imagem?
Narciso faz obstáculo ao desejo, uma vez que goza da própria imagem e paga com a morte.
Sua aesthesis é um entorpecimento dos sentidos tomados na sua pulsionalidade -uma
estética que não percorreu o caminho da ética. Uma estética do fascínio, o narcisismo
é sombrio no seu fim, a morte; flagrante de um gesto que se atém ao passado sem
competência de futuro, signo enfermo sem condições de aperfeiçoar-se num ideal
sígnico que o faria admirável e contemplável, ao contrário de
sinistro contemplado.
Mas nem todo narcisismo é o mito de Narciso.
A identidade de percepção faz-se no traço
imagético, produzindo uma cegueira advinda da mudez sígnica, da inexistência do traço
diferencial do simbólico o qual representa a lei, no seu equilíbrio face ao gozo. Diante
do mito, o receptor sabe do mandato -Narciso não sabe. Desta ignorância fatal, o
trágico se enreda, tal como a trágica incompetência de Édipo.
O privilegiamento da imagem não faz a diferença
simbólica, permanecendo Narciso preso ao eixo imaginário, perdendo-se no seu olhar de
(des)conhecimento: fatalidade de todo signo que não passa pelo crivo de um interpretante.
O narcisismo (2) é um nó, onde se cruza
o eu ideal, essa ficção especular, projeção imaginária da unidade belamente
gestáltica, o eu do aqui e agora, e o ideal do eu, introjeção
simbólica.
Passado, presente e futuro, rede de equívocos
pulsionais que pode tanto pender ao aquém como a um mais-além.
O eu ideal, investido de primárias vivências de
satisfação, é uma forma de paraíso narcísico: estética perfeita, integrada, conjunta
no momento do júbilo do espelho, precipitado nesse paradigma perceptivo, marcante...
modelar. Porque perdê-lo?
Para manter a idealidade dessa forma
prematuramente representacional do eu, o sujeito deve passar esforços castrativos,
provas simbólicas que possam mediar a relação dual, especular e imaginária de fusão,
deve introjetar simbolicamente um ideal de eu.
Narciso, o mito, diria: meu eu ideal é meu
ideal do eu, fusionando real e imaginário, sem a mediação interpretante do
simbólico.
No entanto, antes do esboço do eu, o
corpo em fragmentos territorializa zonas erógenas. Momento de satisfação auto-erótica,
o corpo tocado pelo Outro -o primeiro Grande Outro, o do zelo materno- é investido pelo
gozo.
A satisfação erótica supõe a unidade do eu,
momento lógico a posteriori da metonímia do corpo, guardando mnemicamente a geografia do
corpo traçado na sua anterioridade significante e agora acariciado pelo olhar do Outro.
Auto-erotismo (gozo) e erotismo (prazer),
parcialidade e ilusão de unidade -outra forma de "especular" o narcisismo. Em Caravaggio
já vemos, por exemplo, que o "claro-escuro" revela essa ambivalência da
lógica do corpo: se o gozo de pedaços desnudos, se o desejo vestido, dialética do ver e
do dar-se a ver (3).
Resultando numa sintaxe do efêmero (o maneirismo
didatiza uma semântica de efêmero), a relação entre o pleno e o vazio, relação quase
silenciosa, o Narciso de Caravaggio não fala o maneirismo barroco despedaçado
entre miríades de voltas: quase plano, horizontal, é mais gesto poético de um simples
mostrar e esconder sua figuração dupla. Diante da escultura, a de Bevenuto Cellini no
seu Narciso, ela se oferece ao olhar do Outro demandando o gesto tátil: mão e olho do
receptor são a sua superfície especular. A escultura é toda, na sua inteireza. O de
Caravaggio é um espelho na tela e da tela -está lá, faz corte no quadro (memória de
simetria renascentista?) imagem do reflexo diluído, exige movimento circular do olho
receptivo. Qualis desse acontecimento singular que marca o gesto do flagrante do
espelho. (4) Talvez tenha sido essa a memória narcísica sublimada numa estética.
Narcisismo do espelho: gesto da subjetividade
A pintura, linguagem visual que se insere no
registro da secundidade (3), demanda do receptor, em primeira instância interpretante,
seu campo escópico. (veja-se como skop é a raiz de skopeo = olhar.
Outros: spectru = visão, fantasma; speculus = espelho; especular =
observar).
É bem verdade que a tela de Caravaggio é um
forma figurativa -relação de signo/objeto em conexão com seu interpretante, ou seja, o
mito de Narciso é reconhecido nos seus traços de imagem refletida no seu momento de
contemplação, figura aliás que repete a convenção tradicional do mito.
No entanto, do que já extraímos do Estádio do
Espelho: imagem do eu, outro (ou outro-eu), flagrada jubilosamente, consagra o
instante identificatório da unidade do corpo. De um lado, temos a alegria de juntar os
fragmentos do corpo (aquela anterioridade metonímica, à qual já nos referimos) passado
de angústia e por outro, a projeção futura dessa unidade num ideal e aqui podemos
confirmar, num ideal estético da boa forma, amor à própria imagem, reflexo que durará
uma eternidade sígnica. Essa marca é um acontecimento. Selo que faz um. Traço unário
da identificação primária. Marca do gesto subjetivo.
Qualis do belo, aquele proporcional da boa
forma, projeto de futuro do admirável estético. Neste sentido, embora figura, é uma
forma não representativa, um primeiro do segundo e segundo do primeiro.
Usamos, pois, com abrangência e liberdade a
classificação da linguagem visual proposta pela autora Lúcia Santaella, observando que
a forma não-representativa do signo em si-mesmo, enquanto qualidade como
acontecimento singular, um segundo do campo do um, é o interpretante semiótico do
instante gestáltico do espelho, daquele gesto que captura como marca-representação, uma
imagem do eu, outro a ser ideal, expectativa futura,
desenho-desígnio das formas o corpo.
A metáfora que escolhemos para essa marca da
subjetividade estética é o Narciso de Caravaggio (5).
Caravaggio
Nascido entre 1571 ou 1573, morto em 1610, seus
significantes pictóricos o diferenciam dos contemporâneos e, embora não assinasse seus
quadros, registra-se neles a marca singular que, esteticamente o subjetiva, torna-o o
autor de autoria. Seu momento plástico é o legado renascentista: a ciência da
perspectiva; o projeto pensado é anterior à execução da forma; a seleção de figuras
humanas advém da concepção de natureza humana digna e nobre; as academias sugerem que o
saber artístico tem transmissibilidade; luz com neutralidade homogênea: cor descritiva.
Enfim, o Renascimento equilibrou a imagem na simetria que ficcionava a realidade -o
fenomênico representado com naturalidade.
Caravaggio não fazia o "croquis antes
-já rascunhava sobre a própria tela. Seus modelos não possuíam a dignidade corajosa
dos modelos de Carraci, nem o senso de medida ou de equilíbrio na conciliação do belo
harmônico; eram músicos ambulantes, lutadores, ciganos, prostitutas e bêbados.
As figuras são, pois, mais gestuais do que
geométricas, tensionadas pela feiúra ou pela vulgaridade; a presença da androginia na
série de Bacos, por exemplo, evidencia a concepção do humano na vertente do erotismo.
Inicia a concepção de natureza morta, expondo o murcho e o efêmero das frutas, com
recursos cromáticos mais opacos, com a imperfeição artesanal.
Não há marcação de linha desenhada, há
massas de luz a qual determina a forma, passando por tons escuros para o claro,
concretando o relevo, convocando o receptor à tatilidade do olho mais que o ótico. Nos
espaços brancos há falta de cor. Seus quadros operam num campo de massa de luz que se
distribui conforme o impacto do gesto pictórico. As dobras são também um acontecimento
significante: há ondulações onde a luz emudece e adquire outros percursos,
diferentemente da verossimilhança renascentista com a linha perspectiva.
Assim, a antecedência significante marca-lhe a
paternidade pictórica: Leonardo com a técnica da veladura, passagem do claro ao escuro;
Ticiano, um encenador que temporaliza o ritmo da cor, Tintoretto, cujo gesto perspectivo
impõe o campo movimentado do afeto; Michelângelo, na sabedoria do corpo.
O corpo em Caravaggio é velado pela gradação
de um campo a outro -véu que, atenuando os contrastes, ambigüiza a forma. O corpo do
imaginário no seu mistério de exibir o real, dele se defendendo. Cor quase monórrima,
marrom afetado pela luz: cena desnuda, encenação de outra perspectiva, a diagonal
inclinada realiza o espaço que diz do essencial para a moldura.
Na seriação de sua textualidade pictórica:
-Baco jovem, cabeça enfeitada, a luz
incidindo sobre o corpo, apresenta certa postura, os panos pregueados que acolhem a luz, a
transparência do cálice de vinho, placidez entediada de quem se oferece à exibição;
-Baco com cesto de frutas, o artesanato do
vime, certa neutralidade do corpo sobre o qual a luz se suaviza;
-Jovem mordido por lagarto
(representação alegórica dos 5 sentidos, este aqui representando o tato) Cena
que implica em gesto, metonímia da mão como um estilema maneirista do pulso
saliente que resulta em relevo, vidro transparente, luz no corpo que é escondido e
mostrado, portanto fragmentado (corpo antes da unidade do espelho?).
O rosto de Caravaggio passeia por esses Bacos,
modelo de si próprio na representação da festa orgiástica, já neutralizada pelo corpo
andrógino, não completamente exibido, mas velado nas pregas dos panos em luz quebrada.
-Medusa, escudo que é um exercício do
rosto com suporte convexo: o mito do horror ao sexo é deformado, transformando-se, pois,
no escudo defensivo, metáfora literal.
As obras intermediárias são aquelas que
narrativizam alegoricamente cenas e personagens da chamada pintura de gênero.
Já as obras de cunho religioso revelam uma
maturidade pictórica, segundo seu próprio estilo: ocupação espacial com obliqüidade,
feixes de luz, foco claro-escuro.
-Vocação de São Mateus- onde o campo
escópico faz sentido na distribuição dos olhares, para fora da cena, lugar de onde se
origina a luz, propondo a ausência figural de Cristo, olhares convocantes, na
"humanização vulgarizada" da mesa do jogo.
-Crucificação de São Pedro - onde a
posição diagonal cria a dramaticidade do heroísmo brutalizado, onde a questão
significante da luz é primordial, operando uma tensão do claro-escuro, redistribuindo a
dor e a resistência pela corporeidade iluminada.
-Deposição de Cristo - curvas nos panos
pregueados, luz quebrando-se entre o silêncio e o relevo que é efeito. A virgem é
velha. Cristo, teria o rosto de Caravaggio?
-São Jerônimo - a placidez tranqüila
que, finalmente repousa no despojamento pictórico com o marrom, vermelho e amarelo, cores
dialógicas da luz de Caravaggio.
-Narciso - o quadro é dividido em dois,
limite horizontal do reflexo especular o que, de certa forma, pode movimentar a
superfície, formando outra figuração, conforme o lugar onde o espectador se coloque. A
figura de Narciso é angulada da esquerda para a direita, refletida inversamente no
espelho das águas: o quadro é a metalinguagem do espelho uma vez que, sendo imagem,
presentifica imagem da imagem, refletindo a imagem. Momento mesmo em que o gesto de olhar
se dá a ver ao receptor, mas também atualizando a estrutura do estádio do espelho,
conforme verificamos atrás.
Não sendo maneirista, mas apresentando a
circularidade que é um significante destacado no barroco, a figura de Narciso, na
representação, circula oblongamente, com certo gesto oval, num retorno a si própria.
Esta circularidade alongada num ritmo oval ilumina a figura que se destaca do fundo,
trazendo-a para a frente, volteando sobre si mesma.
Na parte inferior do quadro, a imagem refletida
só o é nos contornos, a luz só desenha o minimamente assegurável para não perder o
reflexo. Imagem refletida, quase sem luz, obscurecida. A imagem "real" é que
recebe a luz, ou seja, a possibilidade de um fora-de-cena iluminar a imagem que, por sua
vez, vai ser refletida, é a possibilidade de oferecer um espelho entre o quadro que
representa o espelho e o receptor, que aí se especulariza. O limite entre uma e outra é
frágil, não havendo completo distanciamento, como se Caravaggio convocasse a memória
receptiva, para o duplo velado que apresenta. Isso lhe assegura um lugar de autoria (6)
significante, de assinatura de estilo, de sujeito de enunciação pictórica.
A luz, em Caravaggio, proporciona-lhe o traço
diferencial face ao contexto que herdou (Leonardo, Tintoretto, Ticiano, Michelângelo) e,
assinando propriamente o nome próprio -embora Caravaggio indique o lugar de
nascença- assegura, ele mesmo, um Nome-do-Pai que lhe deixará descendentes. A luz de
Rembrant, Verneer, as figuras de Ribera, certo Velasquez rearticulam alguns dos
significantes fixados em Caravaggio.
A cor marrom é o efeito da distribuição
escurecida do quadro que didaliza a luminosidade das cores amarelo e ocre claro,
ritmando contraste com as sombras.
Do escuro não preenchido salta a manga de
Narciso, tecido com dobras que refletem à modo de espelho, os tons de terra, criando
volumes. Um Narciso vestido, diferentemente das representações de Narciso nu, uma vez
que, ao dirigir o olhar para a própria figura, deixa à mostra momentos do corpo que
repetem em gradações as incidências da luz. Caravaggio pinta sempre o não-todo,
um meio-dizer, seja porque sua luz encontra quebras nos ângulos da figura, seja porque,
cobrindo Narciso, deixa à mostra fragmentos do corpo -um ombro vestido reflete-se no
joelho nu, por exemplo, repetindo "narcisicamente" a proporção de zonas
corporais. Digamos que se trata, dentro do quadro, de uma repetição da idéia de
espelho, repetição metonímica de que, o quadro é a metáfora. Veste e des-veste,
do ombro-manga do joelho -metonímias do corpo.
A luz lateral encontra obstáculos e, em certa
medida de marcação rítmica, inviabiliza-os, focando outros momentos do corpo, deixando
o reflexo na parte inferior pontos obscuros da imagem, que simulacra sua projeção. Corpo
capturado num átimo doe olhar, borrando, neste flagrante, o limite entre eu-ideal e ideal
de eu.
Assim, a imagem nos dá a convenção de Narciso,
com os traços de reconhecimento, qual seja seu fixar-se no espelho, contemplando-se;
simulacra a imagem, porque rompe com a cristalização convencional através de sua força
sintática, cuja morfologia marcante é a luz-cor.
No filme Caravaggio do diretor Derek
Jarman (com Nigel Terry), a concepção de luz realizada pelo pintor, recebe a tradução
pertinente para a linguagem cinematográfica, como se Caravaggio tivesse
"adiantado" de sua luz refletida, a luz emitida na película. Além dos quadros
re-montados no filme, a intertextualidade observada por Jarman e o traço fortemente
biográfico que dá ao enredo-enunciado, a enunciação cumpre filmicamente a ocupação
espacial da luz de orientação oblíqua, a atenuação das cores subordinadas à
tonalidade geral e o movimento velado do claro-escuro, apontando a dissolvência das
formas.
Chamamos a isso assinalamento de Caravaggio,
ou por outra, sua assinatura.
A subjetividade na qual ele se marca, não é a
da função emotiva da superfície confessional do eu, mas das marcas significantes
que fixaram seu gesto de pintura.
Na obra de Caravaggio, aliás, o tema do
auto-retrato desloca-se continuamente por seus quadros. A figuratividade do eu em conexão
dinâmica com seu objeto mascara-se, conforme já apontamos, em outros personagens, Baco,
São João Batista, Os Músicos.
O rosto de Narciso, aí velado, seria o de
Caravaggio? Não é desse fenomênico que se trata.
Narciso é egóico no seu amor, seu objeto
amoroso é seu próprio eu? Sim, mas em Caravaggio não se extrai desse mito o seu traço
subjetivo. Claro que o eu se assegura no narcisismo, claro que o duplo rediz a figura.
Mas o que interessa nessa relação especular
narcísica, advinda da metáfora do espelho singular do pintor, é a marca que expõe o
traço significante aliado a seu nome, na estruturação de sua pintura, significantes que
se repetem no decorrer de sua produção e, portanto, por sua vez, cunham seu nome.
Dão-lhe a categoria de Mestre em seu
discurso pictórico, mestria significante no sentido de Lacan; ou seja, mêtre,
o ser que se marca, selo (de sê-lo).
Subjetividade, pois, é enunciação que sela uma
marca singular do nome, assegurando propriedade, ou seja, que o nome seja próprio e que
haja algo (um objeto a ?) próprio daquele nome.
Notas
01. Lacan, Jacques - O estádio do
espelho como formador da função do eu, tal como nos é revelado na experiência
psicanalítica, in PSICANÁLISE nº 2/1985, SP, Clínica Freudiana.
02. Freud, Sigmund - Uma introdução
ao Narcisismo (1914), volume XIV, Coleção Standard, Obras Completas, Ed.
Imago, Rio de Janeiro.
03. Lacan, Jacques - Do olhar como
objeto a minúsculo, in O Seminário Livro 11, Os quatro conceitos
fundamentais da Psicanálise, Zafar Editores, Rio de Janeiro, 1979.
04. Santaella, Lúcia - Por uma
Classificação da Linguagem Visual, in Revista Face, volume 2, nº1, janeiro/junho de
1989, Educ, S.P.
05. Caravaggio - Los Genios de la
Pintura, Gran Biblioteca Sarpe, Madri, 1979.
06. Baltasar, Maria Lúcia - Autor verso
autoria, in Revista Face de Comunicação e Semiótica, volume 2, nº2, dezembro/89,
Educ.SP.