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Samira Chalhub é lembrada por "psicanálise & conexões" em um de seus escritos fundamentais que relaciona arte, psicanálise & semiótica.

 

 

 

Dúvidas podem ser tiradas pelo e-mail: psilacanise@pucsp.br


 


A marca do gesto: subjetividade
Leitura de Narciso de Caravaggio

por Samira Chalhub

 

Eu sou do que já fui, tão diferente
Que quando por meu nome alguém me chama,
Pasmo, quando conheço
Que ainda comigo mesmo me pareço.

Camões

 

Da imagem

Camões indica uma desproporção: Eu sou (A), do passado, tão diferente (B), ou seja, A= B, mas um Traço, o traço, simbólico que nomeia (o seu nome dito por Outro), o faz reconhecer-se na sua parecência. Entre um eu (antes) e eu (agora), um Outro se interpõe, o semblante de Eu nos caminhos do tempo, desde o início originário do espelho, quando ali se vê todo, recompostos os fragmentos do corpo metonímico numa metáfora que o nomeia. Confirmando desde logo o desacordo entre o imaginário e o simbólico. Desacordo também entre a imagem e o verbal do nome. Entre o ver e o ouvido, entre o visto e o dito.

Os significantes eu e imagem do eu compõem uma constelação que envia ao sentido do mito de Narciso: eu sou a imagem real. Vários equívocos se traçam: o engano de que haja um real de eu, já que eu é imagem despossuída de si, é imagem do outro. Esse é o ponto do estádio do espelho (1), a experiência de identificação fundamental, onde a criança desbrava a conquista do corpo.

A imagem que está no espelho parece-lhe real e quer apreendê-la. Eis aí o assujeitamento do imaginário. Descobre, depois, que o outro do espelho é tão só uma imagem e, depois ainda, que a imagem é a dela. Reconhece-se, pois, através da imagem, enquanto representação do corpo próprio. Busca confirmação através do gesto do Outro.

Mas a identificação primordial fica fixada a partir de algo virtual, a imagem ótica que, mesmo não sendo dela, ela aí se reconhece.

O humano é tomado pelo imaginário. Mas que isso: há uma confirmação simbólica de seu nome (imagem nomeada) e a memória de um real fragmentado que se juntou na experiência de unidade do espelho, ao preço de uma alienação no Outro, de um mal-estar do signo.

Sá de Miranda diz "comigo me desavim". Camões otimiza o gesto pasmado de conhecer-se parecendo-se.

A arte vive, pois, dessa desavença aquém e além do espelho, ou seja, luta para conquistar o momento-instante que se fez memória do antes, projetando construtivamente o signo estético para além do agora. Imagem é, pois, agoridade: gozo de um ideal, portanto ficção mítica, semblante da origem. Bastando-se a si própria, cala o simbólico.

Ou é sempre equívoco, semblante da falta, rumo ao ideal sígnico, perfazendo uma estética do desejo.

 

De Narciso

No imaginário da cultura, Narciso é uma adjetivação do eu. Tem, no entanto, uma etimologia proveniente do real do significado: narkisós possui o elemento narké, cujo sentido é entorpecimento (narcótico), aquele que dorme.

Desfalecendo diante de sua própria imagem, fascinado por ela -melhor dizendo, acreditando-a real, já que o espelho-água não fez obstáculo, e não há simbólico que confirme uma diferença (nome e imagem), mas um mandato o qual ignora, o de que não deve contemplar-se, Narciso está face-a-face o trágico da lei inexorável, para quem quer apenas gozar da satisfação imediata. Aí desaparece na morte da imagem, mas a estética do mito o faz renascer em outra espécie, a do real da natureza.

Se a estética fascina-se na própria imagem? Narciso faz obstáculo ao desejo, uma vez que goza da própria imagem e paga com a morte. Sua aesthesis é um entorpecimento dos sentidos tomados na sua pulsionalidade -uma estética que não percorreu o caminho da ética. Uma estética do fascínio, o narcisismo é sombrio no seu fim, a morte; flagrante de um gesto que se atém ao passado sem competência de futuro, signo enfermo sem condições de aperfeiçoar-se num ideal sígnico que o faria admirável e contemplável, ao contrário de sinistro contemplado.

 

Mas nem todo narcisismo é o mito de Narciso.

A identidade de percepção faz-se no traço imagético, produzindo uma cegueira advinda da mudez sígnica, da inexistência do traço diferencial do simbólico o qual representa a lei, no seu equilíbrio face ao gozo. Diante do mito, o receptor sabe do mandato -Narciso não sabe. Desta ignorância fatal, o trágico se enreda, tal como a trágica incompetência de Édipo.

O privilegiamento da imagem não faz a diferença simbólica, permanecendo Narciso preso ao eixo imaginário, perdendo-se no seu olhar de (des)conhecimento: fatalidade de todo signo que não passa pelo crivo de um interpretante.

O narcisismo (2) é um nó, onde se cruza o eu ideal, essa ficção especular, projeção imaginária da unidade belamente gestáltica, o eu do aqui e agora, e o ideal do eu, introjeção simbólica.

Passado, presente e futuro, rede de equívocos pulsionais que pode tanto pender ao aquém como a um mais-além.

O eu ideal, investido de primárias vivências de satisfação, é uma forma de paraíso narcísico: estética perfeita, integrada, conjunta no momento do júbilo do espelho, precipitado nesse paradigma perceptivo, marcante... modelar. Porque perdê-lo?

Para manter a idealidade dessa forma prematuramente representacional do eu, o sujeito deve passar esforços castrativos, provas simbólicas que possam mediar a relação dual, especular e imaginária de fusão, deve introjetar simbolicamente um ideal de eu.

Narciso, o mito, diria: meu eu ideal é meu ideal do eu, fusionando real e imaginário, sem a mediação interpretante do simbólico.

No entanto, antes do esboço do eu, o corpo em fragmentos territorializa zonas erógenas. Momento de satisfação auto-erótica, o corpo tocado pelo Outro -o primeiro Grande Outro, o do zelo materno- é investido pelo gozo.

A satisfação erótica supõe a unidade do eu, momento lógico a posteriori da metonímia do corpo, guardando mnemicamente a geografia do corpo traçado na sua anterioridade significante e agora acariciado pelo olhar do Outro.

Auto-erotismo (gozo) e erotismo (prazer), parcialidade e ilusão de unidade -outra forma de "especular" o narcisismo. Em Caravaggio já vemos, por exemplo, que o "claro-escuro" revela essa ambivalência da lógica do corpo: se o gozo de pedaços desnudos, se o desejo vestido, dialética do ver e do dar-se a ver (3).

Resultando numa sintaxe do efêmero (o maneirismo didatiza uma semântica de efêmero), a relação entre o pleno e o vazio, relação quase silenciosa, o Narciso de Caravaggio não fala o maneirismo barroco despedaçado entre miríades de voltas: quase plano, horizontal, é mais gesto poético de um simples mostrar e esconder sua figuração dupla. Diante da escultura, a de Bevenuto Cellini no seu Narciso, ela se oferece ao olhar do Outro demandando o gesto tátil: mão e olho do receptor são a sua superfície especular. A escultura é toda, na sua inteireza. O de Caravaggio é um espelho na tela e da tela -está lá, faz corte no quadro (memória de simetria renascentista?) imagem do reflexo diluído, exige movimento circular do olho receptivo. Qualis desse acontecimento singular que marca o gesto do flagrante do espelho. (4) Talvez tenha sido essa a memória narcísica sublimada numa estética.

 

Narcisismo do espelho: gesto da subjetividade

A pintura, linguagem visual que se insere no registro da secundidade (3), demanda do receptor, em primeira instância interpretante, seu campo escópico. (veja-se como skop é a raiz de skopeo = olhar. Outros: spectru = visão, fantasma; speculus = espelho; especular = observar).

É bem verdade que a tela de Caravaggio é um forma figurativa -relação de signo/objeto em conexão com seu interpretante, ou seja, o mito de Narciso é reconhecido nos seus traços de imagem refletida no seu momento de contemplação, figura aliás que repete a convenção tradicional do mito.

No entanto, do que já extraímos do Estádio do Espelho: imagem do eu, outro (ou outro-eu), flagrada jubilosamente, consagra o instante identificatório da unidade do corpo. De um lado, temos a alegria de juntar os fragmentos do corpo (aquela anterioridade metonímica, à qual já nos referimos) passado de angústia e por outro, a projeção futura dessa unidade num ideal –e aqui podemos confirmar, num ideal estético da boa forma, amor à própria imagem, reflexo que durará uma eternidade sígnica. Essa marca é um acontecimento. Selo que faz um. Traço unário da identificação primária. Marca do gesto subjetivo.

Qualis do belo, aquele proporcional da boa forma, projeto de futuro do admirável estético. Neste sentido, embora figura, é uma forma não representativa, um primeiro do segundo e segundo do primeiro.

Usamos, pois, com abrangência e liberdade a classificação da linguagem visual proposta pela autora Lúcia Santaella, observando que a forma não-representativa do signo em si-mesmo, enquanto qualidade como acontecimento singular, um segundo do campo do um, é o interpretante semiótico do instante gestáltico do espelho, daquele gesto que captura como marca-representação, uma imagem do eu, outro a ser ideal, expectativa futura, desenho-desígnio das formas o corpo.

A metáfora que escolhemos para essa marca da subjetividade estética é o Narciso de Caravaggio (5).

 

Caravaggio

Nascido entre 1571 ou 1573, morto em 1610, seus significantes pictóricos o diferenciam dos contemporâneos e, embora não assinasse seus quadros, registra-se neles a marca singular que, esteticamente o subjetiva, torna-o o autor de autoria. Seu momento plástico é o legado renascentista: a ciência da perspectiva; o projeto pensado é anterior à execução da forma; a seleção de figuras humanas advém da concepção de natureza humana digna e nobre; as academias sugerem que o saber artístico tem transmissibilidade; luz com neutralidade homogênea: cor descritiva. Enfim, o Renascimento equilibrou a imagem na simetria que ficcionava a realidade -o fenomênico representado com naturalidade.

Caravaggio não fazia o "croquis’ antes -já rascunhava sobre a própria tela. Seus modelos não possuíam a dignidade corajosa dos modelos de Carraci, nem o senso de medida ou de equilíbrio na conciliação do belo harmônico; eram músicos ambulantes, lutadores, ciganos, prostitutas e bêbados.

As figuras são, pois, mais gestuais do que geométricas, tensionadas pela feiúra ou pela vulgaridade; a presença da androginia na série de Bacos, por exemplo, evidencia a concepção do humano na vertente do erotismo. Inicia a concepção de natureza morta, expondo o murcho e o efêmero das frutas, com recursos cromáticos mais opacos, com a imperfeição artesanal.

Não há marcação de linha desenhada, há massas de luz a qual determina a forma, passando por tons escuros para o claro, concretando o relevo, convocando o receptor à tatilidade do olho mais que o ótico. Nos espaços brancos há falta de cor. Seus quadros operam num campo de massa de luz que se distribui conforme o impacto do gesto pictórico. As dobras são também um acontecimento significante: há ondulações onde a luz emudece e adquire outros percursos, diferentemente da verossimilhança renascentista com a linha perspectiva.

Assim, a antecedência significante marca-lhe a paternidade pictórica: Leonardo com a técnica da veladura, passagem do claro ao escuro; Ticiano, um encenador que temporaliza o ritmo da cor, Tintoretto, cujo gesto perspectivo impõe o campo movimentado do afeto; Michelângelo, na sabedoria do corpo.

O corpo em Caravaggio é velado pela gradação de um campo a outro -véu que, atenuando os contrastes, ambigüiza a forma. O corpo do imaginário no seu mistério de exibir o real, dele se defendendo. Cor quase monórrima, marrom afetado pela luz: cena desnuda, encenação de outra perspectiva, a diagonal inclinada realiza o espaço que diz do essencial para a moldura.

 

Na seriação de sua textualidade pictórica:

-Baco jovem, cabeça enfeitada, a luz incidindo sobre o corpo, apresenta certa postura, os panos pregueados que acolhem a luz, a transparência do cálice de vinho, placidez entediada de quem se oferece à exibição;

-Baco com cesto de frutas, o artesanato do vime, certa neutralidade do corpo sobre o qual a luz se suaviza;

-Jovem mordido por lagarto (representação alegórica dos 5 sentidos, este aqui representando o tato) Cena que implica em gesto, metonímia da mão como um estilema maneirista do pulso saliente que resulta em relevo, vidro transparente, luz no corpo que é escondido e mostrado, portanto fragmentado (corpo antes da unidade do espelho?).

O rosto de Caravaggio passeia por esses Bacos, modelo de si próprio na representação da festa orgiástica, já neutralizada pelo corpo andrógino, não completamente exibido, mas velado nas pregas dos panos em luz quebrada.

-Medusa, escudo que é um exercício do rosto com suporte convexo: o mito do horror ao sexo é deformado, transformando-se, pois, no escudo defensivo, metáfora literal.

As obras intermediárias são aquelas que narrativizam alegoricamente cenas e personagens da chamada pintura de gênero.

Já as obras de cunho religioso revelam uma maturidade pictórica, segundo seu próprio estilo: ocupação espacial com obliqüidade, feixes de luz, foco claro-escuro.

-Vocação de São Mateus- onde o campo escópico faz sentido na distribuição dos olhares, para fora da cena, lugar de onde se origina a luz, propondo a ausência figural de Cristo, olhares convocantes, na "humanização vulgarizada" da mesa do jogo.

-Crucificação de São Pedro - onde a posição diagonal cria a dramaticidade do heroísmo brutalizado, onde a questão significante da luz é primordial, operando uma tensão do claro-escuro, redistribuindo a dor e a resistência pela corporeidade iluminada.

-Deposição de Cristo - curvas nos panos pregueados, luz quebrando-se entre o silêncio e o relevo que é efeito. A virgem é velha. Cristo, teria o rosto de Caravaggio?

-São Jerônimo - a placidez tranqüila que, finalmente repousa no despojamento pictórico com o marrom, vermelho e amarelo, cores dialógicas da luz de Caravaggio.

-Narciso - o quadro é dividido em dois, limite horizontal do reflexo especular o que, de certa forma, pode movimentar a superfície, formando outra figuração, conforme o lugar onde o espectador se coloque. A figura de Narciso é angulada da esquerda para a direita, refletida inversamente no espelho das águas: o quadro é a metalinguagem do espelho uma vez que, sendo imagem, presentifica imagem da imagem, refletindo a imagem. Momento mesmo em que o gesto de olhar se dá a ver ao receptor, mas também atualizando a estrutura do estádio do espelho, conforme verificamos atrás.

Não sendo maneirista, mas apresentando a circularidade que é um significante destacado no barroco, a figura de Narciso, na representação, circula oblongamente, com certo gesto oval, num retorno a si própria. Esta circularidade alongada num ritmo oval ilumina a figura que se destaca do fundo, trazendo-a para a frente, volteando sobre si mesma.

Na parte inferior do quadro, a imagem refletida só o é nos contornos, a luz só desenha o minimamente assegurável para não perder o reflexo. Imagem refletida, quase sem luz, obscurecida. A imagem "real" é que recebe a luz, ou seja, a possibilidade de um fora-de-cena iluminar a imagem que, por sua vez, vai ser refletida, é a possibilidade de oferecer um espelho entre o quadro que representa o espelho e o receptor, que aí se especulariza. O limite entre uma e outra é frágil, não havendo completo distanciamento, como se Caravaggio convocasse a memória receptiva, para o duplo velado que apresenta. Isso lhe assegura um lugar de autoria (6) significante, de assinatura de estilo, de sujeito de enunciação pictórica.

A luz, em Caravaggio, proporciona-lhe o traço diferencial face ao contexto que herdou (Leonardo, Tintoretto, Ticiano, Michelângelo) e, assinando propriamente o nome próprio -embora Caravaggio indique o lugar de nascença- assegura, ele mesmo, um Nome-do-Pai que lhe deixará descendentes. A luz de Rembrant, Verneer, as figuras de Ribera, certo Velasquez rearticulam alguns dos significantes fixados em Caravaggio.

A cor marrom é o efeito da distribuição escurecida do quadro que didaliza a luminosidade das cores amarelo e ocre claro, ritmando contraste com as sombras.

Do escuro não preenchido salta a manga de Narciso, tecido com dobras que refletem à modo de espelho, os tons de terra, criando volumes. Um Narciso vestido, diferentemente das representações de Narciso nu, uma vez que, ao dirigir o olhar para a própria figura, deixa à mostra momentos do corpo que repetem em gradações as incidências da luz. Caravaggio pinta sempre o não-todo, um meio-dizer, seja porque sua luz encontra quebras nos ângulos da figura, seja porque, cobrindo Narciso, deixa à mostra fragmentos do corpo -um ombro vestido reflete-se no joelho nu, por exemplo, repetindo "narcisicamente" a proporção de zonas corporais. Digamos que se trata, dentro do quadro, de uma repetição da idéia de espelho, repetição metonímica de que, o quadro é a metáfora. Veste e des-veste, do ombro-manga do joelho -metonímias do corpo.

A luz lateral encontra obstáculos e, em certa medida de marcação rítmica, inviabiliza-os, focando outros momentos do corpo, deixando o reflexo na parte inferior pontos obscuros da imagem, que simulacra sua projeção. Corpo capturado num átimo doe olhar, borrando, neste flagrante, o limite entre eu-ideal e ideal de eu.

Assim, a imagem nos dá a convenção de Narciso, com os traços de reconhecimento, qual seja seu fixar-se no espelho, contemplando-se; simulacra a imagem, porque rompe com a cristalização convencional através de sua força sintática, cuja morfologia marcante é a luz-cor.

No filme Caravaggio do diretor Derek Jarman (com Nigel Terry), a concepção de luz realizada pelo pintor, recebe a tradução pertinente para a linguagem cinematográfica, como se Caravaggio tivesse "adiantado" de sua luz refletida, a luz emitida na película. Além dos quadros re-montados no filme, a intertextualidade observada por Jarman e o traço fortemente biográfico que dá ao enredo-enunciado, a enunciação cumpre filmicamente a ocupação espacial da luz de orientação oblíqua, a atenuação das cores subordinadas à tonalidade geral e o movimento velado do claro-escuro, apontando a dissolvência das formas.

Chamamos a isso assinalamento de Caravaggio, ou por outra, sua assinatura.

A subjetividade na qual ele se marca, não é a da função emotiva da superfície confessional do eu, mas das marcas significantes que fixaram seu gesto de pintura.

Na obra de Caravaggio, aliás, o tema do auto-retrato desloca-se continuamente por seus quadros. A figuratividade do eu em conexão dinâmica com seu objeto mascara-se, conforme já apontamos, em outros personagens, Baco, São João Batista, Os Músicos.

O rosto de Narciso, aí velado, seria o de Caravaggio? Não é desse fenomênico que se trata.

Narciso é egóico no seu amor, seu objeto amoroso é seu próprio eu? Sim, mas em Caravaggio não se extrai desse mito o seu traço subjetivo. Claro que o eu se assegura no narcisismo, claro que o duplo rediz a figura.

Mas o que interessa nessa relação especular narcísica, advinda da metáfora do espelho singular do pintor, é a marca que expõe o traço significante aliado a seu nome, na estruturação de sua pintura, significantes que se repetem no decorrer de sua produção e, portanto, por sua vez, cunham seu nome.

Dão-lhe a categoria de Mestre em seu discurso pictórico, mestria significante no sentido de Lacan; ou seja, m’être, o ser que se marca, selo (de sê-lo).

Subjetividade, pois, é enunciação que sela uma marca singular do nome, assegurando propriedade, ou seja, que o nome seja próprio e que haja algo (um objeto a ?) próprio daquele nome.


Notas

01. Lacan, Jacques - O estádio do espelho como formador da função do eu, tal como nos é revelado na experiência psicanalítica, in PSICANÁLISE nº 2/1985, SP, Clínica Freudiana.

02. Freud, Sigmund - Uma introdução ao Narcisismo (1914), volume XIV, Coleção Standard, Obras Completas, Ed. Imago, Rio de Janeiro.

03. Lacan, Jacques - Do olhar como objeto a minúsculo, in O Seminário Livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise, Zafar Editores, Rio de Janeiro, 1979.

04. Santaella, Lúcia - Por uma Classificação da Linguagem Visual, in Revista Face, volume 2, nº1, janeiro/junho de 1989, Educ, S.P.

05. Caravaggio - Los Genios de la Pintura, Gran Biblioteca Sarpe, Madri, 1979.

06. Baltasar, Maria Lúcia - Autor verso autoria, in Revista Face de Comunicação e Semiótica, volume 2, nº2, dezembro/89, Educ.SP.

 


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