acessa a apresentação do Portal

acessa o manifesto

acessa a revista

acessa psicanálise e hospital

acessa a agenda

acessa a biblioteca

apresentação manifesto revista hospital agenda biblioteca

A questão do nome-do-pai, analisada pelo psicanalista e semioticista Geraldino Alves Ferreira Netto no contexto do Cinema, enfocando que o fenômeno do Nazismo não foi só uma conseqüência de causas políticas, sociais ou econômicas, mas principalmente um fenômeno psicológico. Pensado como quase uma formação do inconsciente coletivo do povo alemão, o texto propõe pensar que, já no período anterior a Hitler, a produção cinematográfica alemã pressentia e antecipava o surto psicótico que foi o Nazismo. E que, no período posterior, especificamente com vários filmes de Wim Wenders, é possível ler uma tentativa de restituição de uma função paterna falha.

Dúvidas podem ser tiradas pelo e-mail: psilacanise@pucsp.br


 


Um pai, nas Asas do desejo

por Geraldino Alves Ferreira Netto

Partindo do pressuposto de que o fenômeno do Nazismo não foi só uma conseqüência de causas políticas, sociais ou econômicas, mas principalmente um fenômeno psicológico, quase uma formação do inconsciente coletivo do povo alemão, o texto propõe pensar que, já no período anterior a Hitler, a produção cinematográfica alemã pressentia e antecipava o surto psicótico que foi o Nazismo. E que, no período posterior, especificamente com vários filmes de Wim Wenders, é possível ler uma tentativa de restituição de uma função paterna falha.

A produção wenderiana é então dividida em três fases, sendo a primeira composta de filmes produzidos na Alemanha, com ênfase no Pai real; a segunda, com filmes feitos nos Estados Unidos, apontando ao Pai imaginário; e a terceira, de novo filmada na Alemanha, com o foco no Pai simbólico, sobretudo com o filme Asas do desejo.

Palavras-chave: Wim Wenders, função paterna, nazismo,: Asas do desejo.

Taking into account that the Nary phenomenon was not only a consequence of political, social or economical causes, but primarily a psychological one, almost a collective unconscious formation af the German people, the text proposes that, even before Hitler's era, the German movie industry felt the Nazism's psychotic onset. Also, in the later era, specially with Wim Wenders' movies, we can see a trial of restitution of a lacking father's function. Wenders' movies are divided into three phases, the first one consiting of movies produced in Germany, with an emphasis on the Real Father; the second one, composed of movies produced in the United States, points out the Imaginary Father; the third one, again produced in Germany has a focus on the Simbolic Father, specially in the movie Wings of Desire.

Key words: Wim Wenders - Father's function - Nazism - Wings of Desire.

*

Asas do desejo, um dos filmes mais característicos de Wim Wenders, premiado no Festival de Cannes, em 1987, é profundamente instigante para um psicanalista cujo ofício é navegar na internet do desejo. Na obra de Freud, o desejo é certamente um dos conceitos mais densos e ricos, já que abarca toda a experiência humana. Desde suas formulações sobre a "Ciência dos sonhos" como realização de desejos, passando pelos desejos insatisfeitos na histeria, até às recentes formulações lacanianas sobre o "desejo do analista", enquanto "causa do desejo", nenhum analista pode ficar indiferente quando um cineasta do porte de Wim Wenders se põe a trabalhar este tema com tanta competência e poesia. O título do filme em alemão é: O céu sobre Berlim, porque se trata de um filme sobre Berlim, sobre o retorno de Wim Wenders à Alemanha e sua reconciliação com a pátria.

Depois de ter produzido seus primeiros filmes na Alemanha, Wim Wenders inicia uma segunda fase nos Estados Unidos para, enfim, retomar seu trabalho em casa, numa terceira fase, quando faz Asas do desejo.

Esta seqüência não é casual. Não só este filme, como toda a filmografia de Wim Wenders, sugere uma leitura psicanalítica, entre muitas outras, reducionista portanto, mas ilustrativa de um momento catártico, uma espécie de auto-análise, a meu ver, do próprio autor e do povo alemão como um todo, enquanto produzindo arte numa dada cultura, na coletividade em que estava inserido. A pátria, onde se nasce e se passa a infância, é um lugar sagrado como a mãe. É o berço das primeiras experiências que, segundo Freud, vão moldar a vida futura. É o lugar das fantasias originárias, das lembranças prazerosas.

Mas Wim Wenders, nascido a 14 de agosto de 1945, dois meses antes do fim da Segunda Guerra, bem como as demais crianças alemãs do pós-guerra, não puderam fantasiar esta experiência da infância. Ela foi trágica demais e dolorosa. Sua pátria e seus representantes legais (não legítimos) foram "bárbaros", no pior sentido.

Depois de ter participado e sofrido em duas grandes guerras mundiais, o povo alemão saiu de tal modo arrasado, derrotado e humilhado, que as ruínas de seus prédios, casas, catedrais e monumentos eram só uma pálida imagem da destruição interior da subjetividade e da identidade pessoal e nacional.

Vários cineastas alemães, além de W. Wenders, abordaram implícita ou explicitamente os estigmas e seqüelas causados pela irresponsabilidade e fúria criminosa de Adolf Hitler.

E toda a história do cinema alemão, anterior ao período nazista, já pressentia ou profetizava e, quem sabe, exigia, inconscientemente, como um arquétipo, a chegada de um grande líder, um Führer, um tirano assassino; e assassino justamente dos judeus, que sempre esperaram, e continuam esperando, a chegada de um líder de outro tipo, o Messias. Os judeus, que sempre se apresentaram como o "povo escolhido" e preferido de Deus, precisavam assim ser destruídos para dar lugar a uma nova "raça ariana", a mais pura e privilegiada do mundo. Esta missão estava reservada e clamava por Hitler.

De acordo com Siegfried Kracauer, em seu livro magistral De Caligari a Hitler (Uma história psicológica do Cinema Alemão)[01], o fenômeno do nazismo deveria ser interpretado não só como uma conjuntura política, social ou econômica, mas sobretudo como um fenômeno de natureza psicológica, conseqüência de uma história de vários séculos de um inconsciente coletivo de todo um povo. Basta citar alguns títulos de filmes, entre inúmeros, para se sentir os presságios antecipatórios do nazismo. Paul Wegener produziu O estudante de Praga (1913), sobre um pacto feito com um feiticeiro; Golem (1915), a fabricação de um monstro de barro; Homunculus (1916), outro monstro, ditador, que provoca uma guerra mundial; O outro (1913), um sujeito de dupla personalidade que comete crimes.

Hans Janowitz e Carl Mayer iniciaram e Robert Wiene terminou o maior clássico do expressionismo alemão, o filme O Gabinete do Dr. Caligari (1919), onde um psiquiatra de dupla personalidade hipnotiza seu outro eu, uma autoridade insana, para cometer vários crimes. R W. Murnau produziu Nosferatu, o Vampiro (1922), uma figura tirânica, sedenta de sangue. Fritz Lang lança Pode o amor mais que a morte ? ( 1921 ), em que as ações dos tiranos são atribuídas ao destino; Mabuse, o Jogador (1922), um super-homem, tirano de poder ilimitado, liderando assassinos e criminosos; Os Nibelungos (1924), filme mundialmente famoso, com desfiles militares monumentais, muitas bandeiras e pompa, em que o nazismo se inspirou posteriormente; com O testamento do Dr. Mabuse (1932), Lang retoma o personagem Mabuse, já agora com traços inequívocos do próprio Hitler em pessoa.

Carl Mayer, em parceria com Murnau, lança A última gargalhada (1924), uma farsa, onde o personagem principal é o uniforme militar, símbolo da autoridade. A partir de 1922, vários filmes foram feitos sobre Fridericus Rex, Frederico II, o Grande, nascido em Berlim (1712) e rei da Prússia (1740 a 1786), o "déspota esclarecido" que declarou guerra a vários países vizinhos. A mensagem destes filmes era comparar a submissão incondicional à autoridade absoluta de Frederico com a ideologia que Hitler começava a explorar nos filmes de propaganda nazista. Murnau não dá trégua, e apresenta a superprodução de Fausto (1926), com o velho tema goethiano da venda da alma ao diabo. Fritz Lang volta com Metrópolis (1927), denunciando a luta de classes; e, em 1931, lança uma de suas mais importantes produções, seu primeiro filme falado, M - O vampiro de Dusseldorf, em que o assassino é prisioneiro de impulsos incontroláveis.

Fato curioso é que o título original deste filme deveria ser: Um assassino entre nós, título que teve de ser substituído por pressão do gerente do estúdio, que já trazia escondida na lapela a insígnia do nazismo.

Estes poucos exemplos são suficientes para indicar os antecedentes culturais e psicológicos de um povo. E a produção cinematográfica alemã parece mais sensível do que em qualquer outro país para expressar os anseios, os medos e os desejos das massas.

Freud, em seu texto "Psicologia de grupo e análise do ego" (1921), afirma que a vida mental de um indivíduo envolve um modelo, um objeto, um auxiliar, um oponente, isto é, tudo o que caracteriza a psicologia individual. Entretanto, há algo mais: é que estes mesmos elementos se expandem também na área da psicologia social. Tudo o que a psicanálise descobriu sobre o indivíduo pode ser aplicado ao fenômeno social. Citando-o literalmente:

A psicologia de grupo interessa-se assim pelo indivíduo como membro de uma raça, de uma nação, de uma casta, de uma profissão, de uma instituição, ou como parte componente de uma multidão de pessoas que se organizaram em grupo, numa ocasião determinada, para um intuito definido[02].

Freud avança ainda mais sua análise falando de um "instinto social", citando em inglês no original alemão: herd instinct, group mind, ou instinto gregário. Isto sugere pensar que a produção cultural de um povo, especialmente seus filmes, é uma tentativa de realização de desejo coletivo. E que os produtores desta cultura fazem-no inseridos numa grande família, ligados a um líder, a um Führer, a um pai, que é de onde vem a palavra "pátria". O pai, neste momento histórico da Alemanha, é Hitler.

Este homem foi investido de uma função pública de defender a lei, a ordem e a paz, mas fez justamente o contrário. Falhou naquilo que a psicanálise chama de "função paterna", a instância da lei. Quando o pai interdita aos filhos o acesso e a posse da mãe, ele impõe o "não" da lei da proibição do incesto, bem como impõe aos filhos seu sobrenome, o chamado Nome-do-Pai, que possibilita ao filho definir sua identidade sexual e adquirir o direito de desejar parceiros não incluídos na constelação familiar, num referencial sociocultural.

Este processo não aconteceu, na sua plenitude, com Hitler. Seu pai, Alois, era fiIho ilegítimo, não tendo contraído dívida simbólica com nenhum pai, e só portava o sobrenome da mãe, a qual não lhe era, portanto, interditada.

Depois de algum tempo, Alois inventou para si, e por conta própria, o sobrenome "Hitler" não fundado na lei dos registros civis, não referenciado socialmente - e passou-o para seu filho. Adolf Hitler, portanto, traz em sua história uma falha na função paterna, cujo prognóstico pode propiciar qualquer tipo de loucura. Ninguém hoje hesita em classificar Hitler como psicótico, o que certamente facilitou as transgressões que veio a cometer a nível internacional, invadindo países, destruindo, saqueando e matando milhões de pessoas. Na esfera pessoal, também não conseguiu assumir a paternidade. Não teve filhos. Assim, os filhos da Alemanha só podiam sentir-se órfãos. A mãe-pátria também se prostituiu, ao ser conivente com o crime.

Portanto, da mesma maneira que podemos ver a produção cinematográfica alemã, antes de Hitler, como um pressentimento ou presságio de uma catástrofe que estava por vir, de uma angústia antecipada ou, na terminologia freudiana, um sinal de angústia, também podemos vislumbrar, na era pós-Hitler, passado o pesadelo e o trauma, um trabalho de reconstrução não só dos edifícios destruídos, mas sobretudo da subjetividade comprometida. É aí que entra a produção de W. Wenders, que pode ser vista como uma tentativa de restituição de uma função paterna que falhou.

Para tanto, proponho dividir o trabalho de Wim Wenders em três momentos, com três grupos de filmes:

1. No primeiro grupo, os primeiros filmes feitos na Alemanha, onde o Pai real, que falhou em sua função, que transgrediu a lei em vez de impô-la, este pai covarde e fracassado é exorcizado;

2. No segundo bloco, os filmes feitos nos Estados Unidos procuram uma suplência para o pai, recuperando sua função de Pai imaginário, onde o "pequeno outro" é introduzido nos belíssimos jogos de espelho;

3. No terceiro grupo, os últimos filmes, de novo na Alemanha, surge o Pai simbólico, possibilitando o advento do amor e da paz. É a metáfora do pai, em sua substituição pela representação dos anjos, os mensageiros do "grande Outro", a Lei que retorna a seu lugar, com efeito de castração.

Na primeira fase, alguns de seus filmes parecem claramente exorcizar este Pai real assassino, pelo uso das mesmas armas: o crime. São crimes inexplicáveis e desnecessários. Parece que os criminosos são guiados por uma pulsão agressiva irresistível, como vimos nos filmes da época anterior a Hitler. Não é possível entrar em detalhes sobre estes filmes, por falta de espaço. Mas algumas pontuações podem ser úteis.

a) O medo do goleiro diante do pênalti (1971). É a primeira produção profissional de Wenders. Retoma aí o tema do medo, constante em seus filmes, como, aliás, em toda a história do cinema alemão. Seu colega Fassbinder produziu outro intitulado: O medo do medo. Baseado num romance bastante conhecido de Peter Handke, Wenders explora o interesse pela questão do olhar. Aqui acontece um jogo de futebol, onde o jogo em si não interessa.

Não se conhece o nome das equipes e nenhum resultado do jogo é fornecido. O filme propõe uma inversão do olhar. Em vez de o espectador seguir a bola, propõe assistir ao jogo olhando para os olhos do goleiro, vendo suas reações e, a partir daí, deduzir o que se passa no campo. É quando acontece um pênalti. Bloch, o goleiro, fica com medo e começa a raciocinar, tentando descobrir para qual canto do gol o atacante vai chutar. Sabe que ele costuma sempre chutar para um mesmo lado. Mas..., e se ele blefar? Na seqüência, Bloch é expulso do time sem maiores explicações. Sem ter o que fazer, sai viajando para matar o tempo. Vai ao cinema toda noite, conhece a bilheteira Glória e se interessa por ela. Saem juntos. Vão para um motel e transam numa boa. Enquanto descansa na cama olhando para o teto, observa a cortina da janela, em cujas extremidades vê uma corda sustentando um pingente. Crê ter tido uma boa idéia.

Pega a corda e, com o maior sangue-frio, estrangula a companheira, sem nenhuma razão aparente e sem culpa. Levanta-se, sai como se nada tivesse acontecido. A polícia não aparece, a impunidade não é questionada. O crime é banal. É imperativo transgredir.

 

b) Em 1972, Wenders dirige A letra escarlate, baseado no romance de Nathaniel Hawthorne, um dos primeiros clássicos da literatura americana, que inspirou outras adaptações para o cinema. Há aí uma situação de culpa coletiva. As pessoas não podem falar o que sabem umas das outras. A história se passa na pequena cidade puritana de Salem, onde tudo lembra a caça às bruxas, uma espécie de nazismo antecipado. O filme começa com uma procissão que leva Hester Pryme, a mulher adúltera condenada ao pelourinho. De novo a transgressão. Ela tem uma filha ilegítima.

Isto obriga a bela senhora a carregar em sua roupa, bem visível, a letra A escarlate, que identifica as mulheres adúlteras, denunciando-as publicamente, para serem evitadas pelas pessoas (Clara alusão à estrela amarela que os judeus eram obrigados a usar.). A mãe sabe quem é o verdadeiro pai, mas não pode revelar seu nome porque se trata simplesmente do vigário da cidade, e não se pode provocar escândalo. O vigário também não pode se denunciar, porque seria linchado pelo povo. O médico da cidade conhece toda a história, mas ele é o legítimo marido de Hester, e seria o último a querer exibir, em sua cabeça, um belo par de chifres bentos. A filha de Hester é rebelde como a mãe, afronta a todos, inclusive o pai. Assim, as pessoas vivem da mentira e da negação para não perderem o respeito aparente. Este é um dos raros filmes de história dirigidos por Wenders, inclusive onde o personagem principal é uma mulher.

 

c) Em 1975, o filme Falso movimento é uma adaptação do livro Wilhelm Meister, obra-prima de Goethe. O personagem do filme, também chamado Meister, como nos romances de formação, readaptado agora à Alemanha depois de dois séculos, tenta preencher o vazio de existir, tornando-se escritor. Parte para uma viagem de trem, conhece mais três pessoas, e o grupo resolve visitar um industrial decadente que planejava se suicidar. Este se alegra com a visita que lhe dissipa um pouco a solidão. Mas ao voltarem, no dia seguinte, o homem havia se matado. Um dos componentes do grupo, que era cantor, conta a Wilhelm que tem um passado nazista e que assassinara um judeu, durante a guerra. Wilhelm se enfurece e tenta jogá-lo no rio. É sempre o crime que retorna.

 

d) No decorrer do tempo (1976) trata da decadência do cinema. O personagem Bruno viaja pelo interior da Alemanha, consertando projetores de filmes em velhas salas de cinema, acompanhado pelo pediatra Roberto, morando os dois em um caminhão. É um filme de homens, como no faroeste, com a diferença de que, aqui, os homens não demonstram a falsa valentia dos faroestes, não são necessariamente vitoriosos, mas são homens com limitações e fragilidades. Em seu texto "Emotion pictures", Wenders declara: "Neste filme, sobre a consciência do cinema na Alemanha, o pai perdido, não, o pai que nos falta, instalou-se, insinuou-se por si próprio". O pai citado é Fritz Lang, sobre o qual Wenders comenta: "Herzog tem razão ao dizer que somos uma geração que não teve pais, só avós. Quanto a mim, digo que Lang é o pai que eu gostaria de ter, eu o olhava como um órfão vê o pai dos outros".

A insistência das viagens, nos filmes de Wenders, aponta para a necessidade da mudança interior. E o filme termina insistindo no refrão de sempre: "Tudo precisa mudar", ao mesmo tempo em que aparece a capa de um livro da psicanalista Maud Mannoni.

 

e) Em 1977, foi lançado O amigo americano, do qual uma parte já é rodada nos Estados Unidos, para onde Wenders se expatria. O enredo é baseado no romance de Patrícia Highsmith, que inspirou versões diferentes de vários outros cineastas. O personagem Jonathan supostamente tem uma doença terminal, uma leucemia. Disto se aproveita um suposto amigo americano, rico e gentil, que oferece a Jonathan um tratamento em Paris, com o melhor especialista, tudo pago. Só com uma condição: que ele concorde em assassinar um judeu-americano, criminoso da máfia, a mando e indicação do amigo.

Este lhe oferece todas as garantias de segurança para o crime, bem como o compromisso de que, caso venha a morrer de sua doença, a família receberia uma grande soma de dinheiro para o resto da vida. Como Jonathan estava convicto de que, em breve, morreria de sua doença incurável, aceita a missão, como uma espécie de legítima defesa indireta contra a morte. Ao receber o telegrama confirmatório do trato, ele, que viviajá letargiado, sente-se revitalizado. E realiza o crime na estação do metrô "La défense", em Paris. É uma estação fria, hostil e desumana. O crime é cometido com igual frieza. Assim, vão sendo exorcizados a transgressão, o crime e a culpa, herdados do nazismo. Isto lembra o conceito de "paranóia de autopunição", desenvolvido por Jacques Lacan, num vislumbre criativo e inédito na literatura psicanalítica, quando afirma que o crime pode ter um efeito terapêutico.

 

f) Em Além das nuvens (1995), feito em parceria com Antonioni, numa das quatro histórias do filme, a personagem diz, com toda naturalidade, como se fosse banal, e sem maiores explicações: "Matei meu pai com doze facadas". Ao que o interlocutor responde: "Duas ou três já não eram suficientes?"

 

g) Só para registrar, de passagem, no filme Hammet, mistério em Chinatown (1978-82), feito em parceria com Francis F Coppola, a questão do crime também está presente, com características semelhantes aos filmes anteriores. Nestes filmes, as pessoas vivem um vazio sofrido, não se comunicam, não se tocam, quase não fazem amor, não convivem. Os encontros são esporádicos e efêmeros. As pessoas vivem andando, sem rumo, pelas estradas ou pelas ruas desertas, nas madrugadas.

São os road-movies, como os travellings, marca registrada wenderiana. É um constante viajar que, na tradição do romance de formação, significa buscar-se a si mesmo. Entretanto, como demonstrou Freud em "Romances familiares"[03], além dos pais reais, os filhos normalmente costumam fantasiar ou sonhar com outros pais imaginários: o rei, a rainha, o príncipe, a princesa, personagens ricos, belos e poderosos que os adotariam. É a forma simbólica de realizarem o desejo inconsciente de matarem os próprios pais e poderem sair da relação incestuosa.

Segundo W. Wenders, os alemães, decepcionados, passaram a sonhar com o modelo americano, a pátria vencedora, rica e sedutora, que "colonizou o nosso inconsciente"[04]. Assim, a América que salvou o mundo, ostentando uma bandeira de liberdade, tornou-se o "ideal do eu" do povo alemão.

Wenders sonhava em ir morar nos Estados Unidos. E, como vários outros cineastas e intelectuais da Alemanha, realizou seu sonho, à busca de um novo pai.

Aqui começa a segunda fase de sua produção, nos Estados Unidos, com filmes que giram em torno da constituição de um Pai imaginário. Surgem os pais adotivos. A presença e a importância dos jogos de espelhos sugerem pensar no "outro", não mais como elemento a ser destruído, mas como modelo identificatório, como ideal a ser conquistado, como fonte da percepção da própria imagem e constituição do eu.

a) Alice nas cidades (1974) faz parte da "trilogia da viagem", junto com Falso movimento e No decorrer do tempo. Wenders declarou no Cahiers du Cinéma, de outubro-87, que neste filme ... encontrei minhas próprias marcas no cinema". Embora tenha dito que a inspiração deste título se deva a uma música do roqueiro Chuck Berry, é impossível não ver, no filme, várias alusões ao texto de Lewis Carroll (Aventuras de Alice, no país das maravilhas, e Através do espelho).

Baseado nas primeiras viagens de Wenders à América, em busca de um novo pai, o personagem Philip Winter, alemão, viaja aos Estados Unidos para fazer algumas reportagens, durante um mês. Vários imprevistos impedem a realização de seu intento. O máximo que consegue é fazer algumas anotações e fotos. Decide então voltar para a Alemanha.

No aeroporto, fica sabendo que os aeroviários estão em greve, só havendo vôo para o dia seguinte, para Amsterdam. Reserva mesmo assim sua passagem. Ainda no guichê, encontra Alice, uma garota de nove anos, e sua mãe Lisa, compatriotas, ambas na mesma situação e que marcam bilhetes no mesmo vôo. Os três vão para o mesmo quarto do hotel. Na manhã seguinte, ao acordarem, Philip e Alice encontram um bilhete de Lisa dizendo que precisou sair por um imprevisto, que só poderia seguir viagem dois dias depois, e pedindo ao amigo para levar sua filha, com quem se reencontrará na seqüência, o que acaba não acontecendo. Alice parte para uma bela aventura com este desconhecido, que faz tudo o que um pai faria por sua filha. O verdadeiro pai de Alice abandonara a família e só é mencionado.

Alice curte ao máximo seu novo e desconhecido pai adotivo, a ponto de Ihe fazer esta pergunta: "Será que as pessoas estão pensando que você é meu pai?" Ela já nem se lembra da mãe, inclusive porque, já na Alemanha, os dois passam a maior parte do tempo tentando encontrar a casa da avó de Alice, tendo como única referência uma foto antiga, através da qual, depois de muita procura, conseguem achar a casa, mas não a avó. Os dois parecem estar apaixonados, tal a delicadeza, a candura e a meiguice que ostentam. Wenders tem uma habilidade ímpar para fazer trabalhar crianças em seus filmes. Eles viajam de carro, de ônibus, de trem, de avião. E não falta a marca registrada da vista aérea tomada do avião, com a asa em primeiro plano.

Da janela, Winter fotografa em Polaroid e entrega a foto para Alice que comenta: "Linda a fotografia, tão vazia!" Em outro momento, os dois brincam com o jogo da forca. Alice teria que indicar as letras que completariam uma palavra. Não consegue. A palavra era "sonho". b) Paris-Texas ( 1984), o primeiro sucesso de bilheteria e Palma de Ouro em Cannes-84. Influenciado pela leitura da Odisséia, de Homero, este é o filme da maturidade de Wenders, pelo domínio da narrativa e tomadas harmoniosas do espaço. É a história de um desejo. Aqui, ele perde o medo da emoção e reinventa o melodrama familiar, com um homem saindo à procura de um filho e da mulher que amava.

O filme começa com as paisagens desérticas do Texas, e Travis, o andarilho, carregando um saquinho onde havia um canivete, um porta-moedas, uma foto de família e umas pedrinhas de cascalho.

Caminhava meio sem rumo, hipnotizado e mudo. Só imagens e a característica música seca e nostálgica. Travis havia abandonado a família. Seu irmão adota o filho de Travis, e sai à sua procura. Quando finalmente o encontra no deserto, consegue, a duras penas, o seguinte diálogo:

- Por que ficou tanto tempo fora de casa?
- Quanto tempo fiquei?
- Quatro anos.
- Quatro anos é muito tempo?
- Para uma criança de oito anos é metade da vida.

Travis estava tentando localizar um terreno que comprara em Paris, através de anúncio de jornal. O irmão se oferece para levá-lo de avião a Paris, quando se dá conta do equívoco. Não se trata de Paris-França, mas de Paris-Texas, uma cidadezinha por ali. Acaba indo para a casa do irmão, reencontra seu filho Hunter e começa a reaproximação. Desajeitado, Travis pede à empregada para ajudá-lo a ter a "aparência de um pai", vestindo a roupa adequada para tanto. Revendo slides da época do casamento, Hunter percebe que seu pai e sua mãe se amavam. Pai e filho saem então à procura da mãe, sem saber ao certo o endereço. Numa emocionante cumplicidade, ficam de plantão numa esquina que supunham ser o roteiro dela. Hunter teve a intuição de que ela passara num carro vermelho. Seguem-na até uma casa de shows, tipo motel.

Travis consegue localizá-la, mas não se identifica de imediato. Conversam através de um vidro espelhado, de modo que só ele vê a mulher, Jane, interpretada por uma deslumbrante Nastassia Kinski. Aos poucos, ela começa a reconhecer o ex-marido. Só tem certeza quando apaga a luz interna da cabine, invertendo o espelhamento e vendo-o, enfim. O diálogo é o atestado da solidão absoluta dos dois. Travis havia explicado ao filho o motivo da separação: "Ela queria uma coisa, e eu não sabia o que era". Ela, por sua vez, diz a Travis: "Não sei exatamente o que você quer".

Este diálogo ilustra bem a teoria de Freud sobre a discordância amorosa, bem como a afirmação de Lacan sobre a não existência da relação sexual.

Por outro lado, as cenas da cabine com vidro espelhado são de uma beleza inimaginável, e não se pode deixar de ver aí a alusão à teoria lacaniana do estádio do espelho, onde o ego se constitui pelo reflexo do "pequeno outro" no registro do imaginário.

Está assim preparado o cenário para o surgimento do Pai simbólico, numa terceira fase. Tendo se mirado no espelho americano, na cultura do consumo e da mistificação, percebendo o engodo e frustração daí advindos, Wenders se confronta com a falta e a castração simbólica. Pode, enfim, reconhecer a Alemanha como sua pátria, sentir-se em casa, vendo agora, em vez dos demônios hitlerianos, os anjos da paz de uma consciência livre da culpa, sabedora de que o "mal-estar" é inevitável para o ser falante. E a Lei pode agora ser incorporada à vida como um elemento normativo, e não mais como instrumento louco de morte, violência ou destruição.

É assim que, em 1987, surge Asas do desejo. No retorno à Alemanha, opera se a reconciliação com a lei, na figura dos anjos que sobrevoam Berlim curiosos com a vida dos mortais. Os anjos são os mensageiros de Deus, os representantes da lei suprema, do "grande Outro". Já não são as asas dos aviões de guerra lançando bombas, mas asas angelicais trazendo paz e amor.

A mãe-pátria, antes prostituída, é agora a santa que acolhe e protege seus filhos, já libertados e preparados para viver. O processo de auto-análise que implicou em matar o pai real, substituindo-o por um imaginário e ilusório, culmina agora com a castração operada pelo pai simbólico, que autoriza os filhos a voar nas asas do desejo.

O filme se passa em Berlim Ocidental.

Ainda havia o muro, e Wenders solicitou ao Ministro do Cinema autorização para fazer algumas tomadas em Berlim Oriental, estabelecendo-se o seguinte diálogo:

Ministro: - Tudo bem, mas qual é a história?
Wenders: - É a respeito de dois anjos.
- Ah! dois anjos... eles são invisíveis?
- Sim. (O ministro começa a rir).
- E eles podem atravessar o muro, e você quer filmar lá?

- Quando eu disse que sim, ele caiu na gargalhada, ficou vermelho como se fosse ter um ataque. E disse que, neste caso, não podia fazer nada por mim, e não permitiria filmar em parte alguma de Berlim Oriental, porque o muro não poderia ser mostrado em nenhum filme. Wenders fala do "desejo de um filme indescritível"[05].

Os heróis seriam os anjos observando a vida dos berlinenses, do alto, como um supereu, aquele que surge como herdeiro do complexo de Édipo. A idéia de anjo mensageiro coaduna bem com a figura do analista, enquanto este devolve ao paciente sua mensagem invertida. A inspiração do tema deste filme veio dos poemas de Rilke, leitura habitual de Wenders, onde os anjos circulavam livremente. No filme, o tédio dos anjos, por uma eternidade que nunca acaba, e o interesse e curiosidade pelos humanos foi tal, que um deles chegou a se apaixonar por uma mulher e se tornar humano também. Utilizar anjos facilitou o trabalho das câmeras: eles atravessam os muros, entram nas casas, vêem as pessoas dentro do metrô. De início, pensou em colocar quatro anjos, correspondendo às quatro potências que comandavam Berlim: Estados Unidos, Inglaterra, França e Rússia.

Pensou também em transformar em anjos os aviadores que fizeram a guerra. Por fim, simplificou as coisas, reduzindo-as ao essencial: o olhar! Um olhar livre. Era a profissão de fé do cineasta. As vistas são tomadas do alto. Como já foi dito, sua marca registrada é a vista aérea tomada de um avião, cuja asa aparece em primeiro plano. Trata-se de recordações infantis do próprio Wenders, que dizia: "Quando criança, sempre que me sentia inseguro, eu procurava lugares bem altos, onde podia ter uma visão melhor de conjunto". Curiosamente, no filme somente as crianças conseguem ver os anjos, um privilégio dos corações puros, abertos à magia, como acontece nos sonhos, numa realização alucinatória de desejos. Nos sonhos, como neste filme, ficam subvertidas as noções de tempo e espaço.

Por isto, Wenders faz quase todo o filme em preto e branco, indicando que se trata de ficção, de sonho, que remete à verdade do inconsciente. Quando introduz as cores em algumas partes, trata-se de documentário, já é o estado de vigília, da consciência, que ele considera a superficialidade. Várias línguas são faladas na narrativa, para destacar a correção da língua materna em oposição ao sotaque e à hesitação nas línguas estrangeiras, o que confere densidade à atmosfera de realidade, bem como alude à quebra de barreiras entre as nações e as pessoas.

Como em vários outros de seus filmes, o roteiro foi escrito em parceria com o novelista Peter Handke. Daí resultou um belo poema dramático, um filme em estado de poesia, concebido por um homem apaixonado e interpretado pela mulher que ele ama (Solveig Donmartin), no papel de Marion.

Esta é responsável por um dos mais emocionantes e deslumbrantes momentos do filme, a cena do trapézio. Usando asas de anjo, confeccionadas com leves penas de galinha, Marion (na vida real, Solveig já havia trabalhado em circo, não como profissional) ensaia uma apresentação no trapézio[06]. A graciosidade foi tanta, que o anjo Damiel se apaixonou por ela. E no momento em que ela finge que vai cair, a imagem fica colorida. É o corte cromático, metaforizando a metamorfose do anjo em homem, o surgimento do amor que começa a se concretizar. Os nomes dos anjos, Damiel e Cassiel, foram tirados de um dicionário de anjos, segundo Wenders[07]. Eles representam as "vozes interiores" de todos nós, sendo uma metáfora da pessoa melhor que carregamos dentro de nós. Como num conto de fadas, eles moram na Biblioteca de Berlim, onde está a memória do mundo (a lei, a cultura, a linguagem escrita).

Aí eles vão buscar novas forças e serenidade para, em seguida, reconfortar um homem angustiado no metrô, receber a alma de um motoqueiro que morre de acidente, e salvar a vida de uma menina que cai do terraço de um prédio. Na seqüência, aparece uma foto antiga de uma rua bombardeada de Berlim, com cadáveres enfileirados, ladeados por sobreviventes que tentam reconhecer os parentes mortos. Depois Cassiel e o velho Homero, com quem se encontrara na biblioteca, passeiam por um terreno baldio, coberto de mato, cortado pelo muro de Berlim, onde antes ficava a praça Potsdamerplatz, o coração da cidade, com um famoso café, ponto de encontro dos amigos.

Cassiel agora aparece num velho carro Mercedes, de antes da guerra, de teto conversível. Este carro que foi construído assim para que as pessoas pudessem olhar para o céu, de dentro dele, e que foi usado na guerra para disparar metraIhadoras. Daí o anjo assiste a filmagem de um documentário sobre a guerra, que está sendo rodado com Peter Falk, onde aparecem judeus e soldados alemães. Mas agora Wenders já pode encarar a guerra com outra visão. Como coisa do passado.

Nesta altura, não há mais o espelho de vidro separando os amantes. Não há mais obstáculos. Parece que as pessoas se reconciliam com o mundo. E, pela primeira vez em seus filmes, o encontro do homem e da mulher. Marion e Damiel (agora humano) olham-se nos olhos, abraçam-se e se beijam. E dizem: "Não existe história maior do que a nossa, a do homem e da mulher".

E o filme termina com a frase escrita no alto do céu de Berlim: "à suivre" (continua)[08].

E continuou mesmo, em 1993, após a queda do muro, com outro belo filme de anjos: Tão longe, tão perto e, em 1997, com O fim da violência. Mas isto já é "outra história".

 


Notas:

1. S. Kracauer, De Caligari a Hitler. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
2. S. Freud. Psicologia de grupo e análise do ego. E.S.B, vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
3. S. Freud. Romances familiares. E.S.B., vol. IX. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
4. P. Bunchka. Os olhos não se compram. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
5. W. Wenders. Cahiers du cinéma. Paris: Éditions de l’Étoile. n° 400, 1977.
6. M. Boujut. Wim Wenders. Paris: Flammarion, 1986.
7. W. Wenders. Op. cit.
8. P. Handke e w. Wenders. Les ailes du désir. Paris: Jade-Flammarion, 1987.

 


acessa a apresentação do Portal

acessa o manifesto

acessa a revista

acessa psicanálise e hospital

acessa a agenda

acessa a biblioteca

apresentação manifesto revista hospital agenda biblioteca