Kubrick Directors cut
por Oscar Angel Cesarotto
Dois filmes de Stanley Kubrick,
assistidos em dias consecutivos, inteirando uma filmografia incompleta.
*
Barry Lyndon, produção
impecável, fotografia deslumbrante, atuações perfeitas, tudo a serviço de uma
história de W. M. Tackeray, um dos baluartes ideológicos da loira Albion. O livro foi
filmado de maneira magistral, e o roteiro tornou concisa uma extensa obra literária. A
adaptação parecia apenas ilustrar cinematograficamente uma peça literária.
Quando o filme acaba, discorrendo sobre
os infortúnios do seu protagonista principal, um letreiro final informa que a sua saga
teria se passado no século XVIII, com os personagens típicos de então, feios ou
bonitos, ricos ou pobres, honestos ou aproveitadores. No entanto, consta uma frase
definitiva, para além da alusão ao passado, "hoje também é assim".
Destarte, Kubrick, fazendo bom uso da
alegoria, adjudica um valor metafórico à sua obra: filmando uma época anterior sob a
ótica de um autor que tão bem a descrevera, na realidade, estava fazendo uma crítica do
seu momento contemporâneo, ao propor uma identidade comum para ambas situações
históricas.
O último elo da cadeia clausura a
significação, e o realizador se torna responsável pelo saldo ideativo da mensagem, pois
foi dele a decisão de que assim sua produção fosse encerrada, para mostrar aquilo que
seu espírito queria transmitir.
*
Spartacus, o original de Gladiador,
tantos anos antes. Dura umas três horas, tempo suficiente para ilustrar um épico.
Tratava-se do livro homônimo de Howard Fast. O script foi redigido por Dalton Trumbo, o
notável autor de Johnny foi para a guerra, perseguido durante anos pelo
macartismo, acusado, justamente, de ser comunista.
De Kirk Douglas não se precisa falar
muito. Neste filme, retorna ao mundo antigo, como antes em Ulisses. Um ator que
sabia usar a espada. Mas, e os autores? No plural, sim, porque foram três: Fast, Trumbo
& Kubrick. O desenlace do romance decorre da batalha final, quando o exército dos
rebeldes é derrotado, e a maioria, mortos. Muitos dos sobreviventes serão crucificados,
e outros voltaram a ser escravos. Centos de cadáveres cobrem o campo; entre eles, o de
Espártaco.
Nunca será encontrado, pois não seria
reconhecido. Sua imagem persistirá, como uma fantasia libertária, na memória dos
oprimidos e, como um fantasma ameaçador, na imaginação dos vencedores.
No entanto, segundo o argumento filmado,
Espártaco é preso, identificado in extremis, e crucificado. Antes de morrer, tem a um
desejo realizado: seu último olhar, definhando, lhe permite vislumbrar seu filho, que
será um homem livre, e conhecerá a gesta do seu pai, contada pela mãe. Kubrick resolve
a cena, a derradeira do filme, da seguinte maneira: rumo à liberdade longe de Roma,
Varínia, a ex-esclava, desce da carruagem, se aproxima da cruz e beija os pés do
moribundo. Apresenta o filho e, cedendo aos apelos de quem a acompanha, aceita partir. A
última imagem é uma panorâmica do caminho, eles indo embora.
A cada lado, uma longa fileira de cruzes,
o terrível castigo dos romanos. Um horizonte aberto aguarda os viajantes, representando
um futuro em aberto.
Fast era um escritor de esquerda, Trumbo
tinha pertencido ao Partido Comunista, e Kubrick, seria difícil considerá-lo de direita.
Juntos, perpetraram uma versão materialista, histórica, dialética e evangélica de um
mitema moderno de emancipação. Não por acaso, muitos séculos depois, o
espartaquismo seria, na Europa pós-revolução industrial, o nome de um movimento
operário de idéias socialistas.
Começando pelo óbvio: quem sucumbe na
cruz? Neste caso, não foi o filho, senão o Pai. Este último morre para que aquele viva,
possa ser livre, e não esqueça. Nascido de uma mulher de todos, depois convertida em
Mãe, esta criança é o homem novo, o Filho, que um dia saberá que não há
dignidade na submissão, nem liberdade sem violência.
Metáforas de um cristianismo
beligerante, num filme contemporâneo da Teologia da Libertação?
Como qualquer produção significante, um
filme determina sua significação definitiva a partir do efeito retroativo da sua
conclusão. Em Spartacus,temos a postulação de uma posição alternativa para o
clássico e conturbado relacionamento entre o senhor e o escravo, entre o algoz e sua
vítima. A escolha forçada costuma ser aquela que contrapõe a possibilidade de ficar
vivo, porém acorrentado, a morrer de imediato, de forma mais ou menos cruenta. Liberdade
ou morte! Este grito tem ecoado em mais de um programa político, como se fosse um
jogo absoluto de tudo ou nada.
Entre viver de joelhos ou perecer pelas
mãos do mais forte, a terceira via consistiria em se insurgir e, se é para morrer, que
seja como um liberto, com as armas em riste e a cabeça erguida. Ainda, uma tentativa
frustrada não acabaria com o sonho de não ter dono, e as gerações futuras continuariam
a luta, hasta la victória, siempre!
Ter esperança revolucionária seria algo
assim como um desejo de redenção impossível? Então, uma boa nova: se a morte for
inevitável, então, lute e goze! Entre viver acorrentado ou ser supliciado, truco!
Isto posto, o saldo ainda fica no
vermelho: os romanos ganham a parada, e a mensagem cristã é a mesma de sempre: faça o
que fizer, acabará na cruz. Bom proveito.
*
Entretanto, seria injusto crucificar
Kubrick. Num outro dos seus filmes, A laranja mecânica, também baseado num
romance, desta vez de Anthony Burguess, apesar de seguir um roteiro absolutamente fiel ao
livro, se permitiu acrescentar uma última cena. O protagonista, Alex, protótipo de
sociopata de um tempo por vir, pego pelo longo braço da lei, é submetido ao método
Ludovico, de condicionamento coercitivo, para eliminar seus comportamentos anti-sociais de
forma aversiva. O tratamento é bem sucedido no início, mas as contingências fazem com
que, em definitivo, seja inoperante, e o sujeito em questão, na última cena do filme, se
reencontra consigo mesmo, igual a como sempre foi, e imagina uma situação tirada do Novo
Testamento: Jesus, conduzido ao Calvário, cai repetidas vezes, e um centurião o
chicoteia.
Alex se identifica com esta figura. Está
completamente recuperado; se a escolha fosse ser prego ou martelo, sem duvidar, preferiria
sempre o segundo.
Desta vez, para além do referente,
Kubrick tomou partido, firmando uma posição não cristã. Aleluia!