por
Profa. Leny Magalhães Mrech [02]
Resumo: Atualmente fala-se muito a respeito da
realidade da escola, do real da Educação e dos educadores. Um real concebido através de
uma leitura simplificada das concepções de senso comum.
No entanto, pode-se localizar a partir da década
de 70, uma desvalorização cada vez maior do real, em detrimento das novas mídias
eletrônicas e televisivas. A globalização e o mercado de saber impuseram à cultura
novas vestimentas do real que alteraram drasticamente o processo de formação do educador
e dos alunos.
Situações novas têm se tornado cada vez mais
constantes no cotidiano escolar. Entre elas o estranhamento e a alienação de professores
e alunos em relação ao contexto educativo.
*
Alunos revoltados, professores insatisfeitos.
Risco constante de violência. Este tem sido o "real " trazido pelas mídias
eletrônicas e televisivas a respeito do que vem acontecendo com a Educação e os
educadores. Um real construído através de imagens e símbolos padronizados;
desencadeando muitas vezes uma reação emocional de tal ordem, que parece um rastilho de
pólvora a ser transmitido, como por contágio, de uma escola a outra, de um professor a
outro, de um aluno a outro, de um pai a outro, etc. As escolas ficam com uma crença de
que agora o seu real é esse a violência.
Porém, quando se avança nas discussões
constata-se que grande parte dos educadores não conseguem mais ter clareza do que está
acontecendo na escola. Porque ela não é mais a mesma das imagens e símbolos através
dos quais eles aprenderam a reconhecê-la no passado. Ela se tornou outra, exigindo novas
leituras e encaminhamentos de outra ordem. Mas, afinal que está acontecendo com a
Educação, com as escolas e com os professores e alunos?
Pode-se dizer que vive-se atualmente um momento
inédito na história da humanidade. As agências educativas se ampliaram a tal ponto que
o psicanalista francês Beillerot criou, em 1985, um conceito para designá-las: sociedade
pedagógica. Ela seria a ampliação e a extensão das situações escolares, além dos
marcos das agências educativas formais.
Um modelo que aparece com os nomes de sociedade
da informação, sociedade do conhecimento, sociedade do saber. Todos sinônimos da mesma
situação básica, onde predomina a crença em um saber que se crê ciente de tudo. A
crença de se estar às portas de um saber total, de um todo saber. Propiciando a
emergência de um movimento paradoxal nas últimas três décadas: enquanto a sociedade se
torna cada vez mais pedagógica, as instituições escolares e os educadores perdem cada
dia mais a sua importância.
O que está acontecendo? Será que estão
surgindo outras alternativas sociais e culturais, além daquelas atribuídas às
instituições escolares tradicionais? Uma sociedade pedagógica sem escolas e sem
educadores? Agentes educativos sem formação pedagógica ?
A globalização e o surgimento do mercado de
saber
Há algo de novo no ar, sendo tecido nas escolas
e fora delas, alastrando-se por toda a sociedade. As escolas não ocupam mais o lugar
sagrado que ocupavam no passado. Agora elas parecem ser uma instituição como qualquer
outra.
Paralelamente, as demais instituições estão se
pedagogizando. Pais fazem cursos para serem melhores pais. Empresas criam cursos com
conteúdos mais adaptados às necessidades práticas dos seus funcionários, levando ao
aparecimento dos mestrados profissionalizantes (M.B.I. ).
O que mudou? A própria concepção de escola e
Educação que os educadores traziam, que aparentemente tinha um curso determinado, pois,
acreditava-se que eles saberiam o que precisaria ser feito e onde seria possível chegar.
Para Lacan, desde a década de 70, vive-se a
radicalização do mercado capitalista, em função da absolutização do mercado. Tudo se
transformou em mercadoria. Um outro nome para a absolutização de mercado é o processo
de globalização. Ele é o produto mais avançado do discurso capitalista.
"A globalização é um processo cujo cerne
é a unificação do mercado em escala universal. A imposição crescente do mercado comum
em escala planetária só foi possível a partir da universalização introduzida pela
ciência; discurso científico e discurso capitalista, portanto, estão conjugados no
mesmo processo.
Do modo como vem ocorrendo, a globalização tem
se acompanhado de dois outros fenômenos, uma americanização do mundo, ou seja, um
arremedo de generalização do American Way of Life, e uma prevalência da ideologia
neoliberal, conferindo valor absoluto às leis do mercado".(Barreto, 98: 31).
O grande problema, como revela Giddens, é que a
globalização não está apenas no interior da sociedade. Ela está também dentro de
nós.
"É errado pensar que a globalização afeta
unicamente os grandes sistemas, como a ordem financeira mundial. A globalização não diz
respeito apenas ao que está " lá fora", afastado e muito distante do
indivíduo. É também um fenômeno que se dá "aqui dentro", influenciando
aspectos íntimos e pessoais de nossas vidas". ( 2000: 22)
A absolutização de mercado acabou levando ao
aparecimento de um novo tipo de mercado: o mercado de saber, fazendo com que o sujeito
seja atingido não apenas pela compra de produtos externos, mas por um produto
"interno" ( o saber ), que passa a regular a sua vida. O conceito mercado de
saber foi criado por Lacan.
"O saber se torna mercado não inteiramente
pelo efeito da corrupção nem pela imbecilidade dos homens. O processo mesmo por onde se
unifica a ciência , enquanto ela toma o seu nó de discurso conseqüente, reduz todos os
saberes a um mercado único". (Lacan, 1971/1972: 15).
O mercado único de saber mudou os parâmetros
anteriores de concepção de Educação e escola que os educadores apresentavam. Um
aspecto que foi bastante enfatizado pelo psicanalista Beillerot (1985).
"O que é certo é que a sociedade do
século XX se organizou para a produção de saberes que se transformaram em mercadorias e
bens de produção e que, desta forma, manipulam-se as forças físicas de milhões de
assalariados". ( Beillerot, 1985 : 109).
Fala-se em um aumento da interdisciplinaridade,
da troca constante entre as várias ciências. Por outro lado, os efeitos da implantação
do mercado de saber acabaram levando à proletarização da categoria mais diretamente
vinculada à produção de saber: os educadores.
"A produção dos saberes, das técnicas e
das tecnologias é o feito de organizações, de empresas privadas, públicas ou
semipúblicas nas quais se encontram os mesmos problemas que nas outras empresas
produtoras de qualquer mercadoria. E aqui, como em outros lugares, assiste-se à
proletarização que tanto significa condições materiais como relações sociais de
dominação interna. Deparamo-nos com rentabilidade, gerência (os laboratórios para as
novas formas de gestão), autoritarismo, hierarquia e insegurança de emprego".
(Beillerot, 1985: 110).
O próprio processo de formação dos educadores
passou a sofrer novos encaminhamentos. O mercado de saber tem vendido a ideologia da
aprendizagem contínua, fazendo com que os sujeitos tenham de se adaptar, cada vez mais,
aos ritmos impostos pelas mídias eletrônicas e televisivas, pelo próprio mercado de
saber.
Um tempo que não é mais medido pelo tempo do
sujeito. Esse é que precisa acompanhar, como o personagem de Chaplin, em Tempos Modernos,
o tempo da máquina. Um ritmo da produção desenfreada do sistema capitalista que, cada
vez mais, gera novos produtos, sejam eles bens de consumo ou, agora, o próprio saber.
Assim, não é de se espantar que os educadores
recebam pacotes prontos de cursos de formação, capacitação e reciclagem, chegando
mesmo a serem penalizados, se não entrarem no jogo do consumo proposto pelo mercado de
saber. O que eles desejam estudar é deixado de lado. O que interessa é o que o mercado
de saber propõe que eles estudem.
Onde está o real da educação e dos educadores?
Onde está o real da Educação e dos educadores
na sociedade atual? Ao contrário do que se pensa, ele não se encontra à tona,
facilmente identificável por aquilo que trazemos no plano da consciência, como se a
nossa concepção de escola e Educação fosse a escola e a Educação. Esta concepção
os psicanalistas chamam tradicionalmente de realidade, mais precisamente da realidade
psíquica do sujeito.
Freud revela que ela não é o real. Isto porque,
devido ao nosso narcisismo exacerbado, nós tendemos a nos projetar em relação à
natureza e às demais pessoas, numa confusão de imagens e símbolos entre o eu e o outro,
o homem e a natureza.
Um processo parecido ao mito de Narciso em
que Freud se baseou para criar o conceito de narcisismo - que ao olhar a sua própria
imagem projetada no lago, tentou apanhá-la, acabando por se afogar. Situações bastante
semelhantes a aquelas vividas pela criança pequena que chora ao ver uma outra criança
apanhar, ao adulto que fica em pânico ao assistir um filme de terror ou ao professor que
ao identificar uma criança com piolho na classe, começa a sentir a sua cabeça coçando.
Para Lacan o real não se confunde com a noção
de realidade. Pois, ele não pode ser acessado diretamente. Ele é da ordem de algo que
escapa, de algo que não consegue ser captado através das imagens ou símbolos.
Pode-se dizer que, na sociedade atual, estamos
como Narciso quase nos afogando em um lago de imagens e símbolos, propostos pelas mídias
eletrônicas e televisivas. O que acaba fazendo com que nós confundamos nosso saber com o
saber proposto pelas mídias eletrônicas e televisivas. Tal como o caso do professor que
ao ver uma reportagem a respeito de adolescentes, acredita que agora entendeu como os
adolescentes funcionam, como eles pensam. O que ele não percebe é que foi capturado por
uma imagem de adolescência e adolescentes que acabou por bloquear a sua elaboração de
quem são os seus alunos adolescentes e como eles pensam.
Perante a realidade vendida pelas mídias
eletrônicas e televisivas, Lacan assinala a importância do sujeito identificar aquilo
que volta sempre ao mesmo lugar, demandando novas leituras. O real não capturável. O
real como impossível. O real que apanha o sujeito desprevenido.
Uma posição inversa da sociedade atual que
tenta prever todas as coisas. As doenças. Os problemas. As dificuldades. Ressalta-se a
importância do sujeito estar sempre atento. Como se através desta aparente prevenção
fosse possível barrar o real. Este parece ser o caso de grande parte das semanas de
planejamento onde o professor prepara conteúdos destinados ao aluno, sem ainda ter feito
nenhum contato com ele.
O que não se percebe é que o real está em
outro lugar, distinto daquele que montamos para entrevê-lo. Pois, por mais que tentemos
nós nunca conseguimos lidar suficientemente bem com a morte, a doença, as perdas
afetivas.
Assim, é fundamental que os educadores e
psicanalistas façam uma leitura mais profunda do que vem acontecendo na sociedade
capitalista. Pois, o que se constata é que através do privilegiamento dos símbolos e
das imagens, cada vez mais deixa-se de lado o real. Havendo até uma tendência geral à
sua desmaterialização, como revela Jacques Allain Miller.
Jacques Allain Miller revela no seminário O
Lugar e o Laço (2001) que as pessoas tem feito um uso da linguagem e da fala,
principalmente da palavra, como se fosse possível controlá-las.
É o caso das formas terapêuticas que tem
aparecido nas mídias eletrônicas e televisivas, onde diz o mote: " Fale que eu
estou aqui para escutá-lo". Estabelecendo a crença no poder mágico da palavra,
como se bastasse falar para as coisas se transformarem.
Freud e Lacan revelam que não é tão simples
assim lidar com a palavra e o real. Não basta nós fazermos catarse, isto é,
expurgarmos, através das palavras as coisas ruins. Há coisas que, por mais que nós
queiramos, nós não conseguimos dizer. Algo que a linguagem não consegue alcançar.
Com isto, desmaterializa-se o real, isto é,
aquilo que eu não consigo colocar em palavras, aquilo que eu não consigo dizer; para
reduzí-lo a um dito, a um real construído.
Por exemplo, vende-se uma imagem do "Você
decide". De que as mídias eletrônicas e televisivas são interativas. O que o
telespectador não percebe é que apenas duas ou três alternativas foram escolhidas. O
seu poder de decisão se resume a elas.
A Psicanálise não se deixa enganar por aquilo
que a sociedade vem tecendo para os sujeitos: uma decisão aparente ou até mesmo uma
realidade aparente, tal como a realidade virtual. Implantando a crença de que é
possível criar um novo mundo. Um mundo ideal, onde as coisas aconteceriam da forma que os
sujeitos desejariam.
A Psicanálise revela que com isto nós estamos
deixando de lado muita coisa: o corpo e o real. O real trazido pela morte e pela
sexualidade. Que não podem ser manipulados apenas sob a forma imaginária e simbólica,
pois, sempre em algum momento, emerge o real para desnudá-las. Como no caso do parceiro
fantástico da Internet que se revela alguém que a pessoa não desejaria conhecer.
Há uma crença que as máquinas irão superar
todos os limites. O que acredita-se abriria possibilidades ilimitadas para o ser humano,
tais como as interfaces neurais, isto é, a possibilidade de downloads diretos de saberes
para o cérebro do sujeito, instituindo a crença que ensinar e aprender são formas
obsoletas. O que acabaria levando, acredita-se, à criação de um novo homem, um ser meio
máquina, meio gente : um cyborg.
Contudo, o que é esquecido , assinala Lacan, é
que as máquinas principalmente, os computadores se basearam, desde o
início, na estrutura do cérebro humano. E, se elas aparentemente não têem limites em
seu processo de criação, o ser humano tem, assim como o corpo também, e a própria
natureza. O efeito estufa, o aquecimento constante da temperatura da terra, revela que nem
tudo pode ser feito. Há sempre a constatação de um limite, de uma impossibilidade.
Desde o século passado, Freud sabia disto, ao
assinalar que devido à linguagem e à fala, o ser humano se defronta sempre com algo que
escapa: os limites do corpo e da natureza, assim como o impossível de ensinar, governar e
psicanalisar.
Os seres humanos não apresentam apenas a pulsão
de vida. Mas, também a pulsão de morte. Os seres humanos não apenas criam, mas também
destroem.
A sociedade capitalista atual tem tentado
controlar o saber e suas formas de produção, visando produzir um saber, mais verdadeiro
que aquele estabelecido pelo sujeito. Um saber perfeito, aparentemente completo,
esquecendo-se que ele é apenas um saber simulacro, um saber produto, gerado pelo
mercado de saber.
A crença é a de que este saber revelaria um
"real construído" que poderia ensinar à escola, à Educação e aos educadores
um saber mais real do que aquele que tem sido produzido por elas.
O que o mercado de saber não percebe é que :
" Do real não há mais que o impossível e é precisamente aí que eu
tropeço", como comenta Lacan no Seminário Lo no sabido que sabe de la
significación se ampara en la morra.
Educar não se reduz a enviar informações ao
cérebro ou fazer circular uma crescente quantidade de informações na rede.
Educar implica a construção do objeto educativo
no interior do sujeito. Algo que, como assinala Carvalho, pressupõe o delineamento de um
objeto projeto em que a dimensão filosófica apela à radicalidade crítica, à
transgressão e à utopia. É um objeto por si mesmo instável, incontrolável."
(Carvalho, 1994:86)
Educar implica a implantação de uma
transferência de trabalho [03]. Algo que nunca é da ordem do saber absoluto, mas de um
saber incompleto.
O que o mercado de saber não se deu conta é que
o real da Educação e dos educadores aponta para um impossível de ensinar e de educar e
não o seu contrário.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARRETO, Francisco Paes - A clínica
psicanalítica no mundo globalizado. In : Curinga, Escola Brasileira de Psicanálise,
Seção Minas Gerais, no. 12, set de 1998.
BEILLEROT, Jacky A Sociedade Pedagógica.
Lisboa, Rés Editora, 1985.
BRUCE, Fink O Sujeito Lacaniano entre a
linguaguem e o gozo. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998.
CARVALHO, Adalberto Dias de Utopia e
Educação. Porto, Editora Porto, 1994.
FORBES, Jorge Da palavra ao gesto do
psicanalista. São Paulo, Papirus, 1999.
GIDDENS, Anthony Mundo em descontrole
o que a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro, Editora Record, 2000.
LACAN, Jacques De um outro a Outro -
Seminário de 1971-1972. Texto mimeografado.
MILLER, Jacques Allain O Lugar e o Laço.
Material de circulação interna do Seminário Colombe sob a coordenação do Dr. Jorge
Forbes, 2001.
MRECH, Leny Magalhães Psicanálise e
Educação: Novos Operadores de Leitura. São Paulo, Editora Pioneira, 1999.
Notas: