[A Revolução dos Viadutos,
de Paul Klee, 1937]
*
Uma aventura começa quando ousamos partir rumo
ao incerto. Quando nos entregamos à vivência do inesperado e à impossibilidade de
estabelecer garantias sobre o futuro. Quando partimos rumo ao incerto e sabemos que nada
se pode antecipar sobre o devir, já estamos cultivando a atitude de um homem
experimentado. Um homem experimentado conhece, como nos diz Gadamer, a insegurança de
todo o projeto e os limites de toda a previsão em relação ao futuro.
Mas esta impossibilidade de se estabelecer
garantias sobre o futuro é, ela mesma, uma abertura, e não um fechamento diante do que
se pode esperar do devir. E sendo abertura, esta impossibilidade é, em si mesma, uma
possibilidade. Mas não uma possibilidade qualquer. Quando o homem experimentado parte
rumo ao incerto, sabendo-se inseguro neste projeto e sem ilusões acerca do futuro, mas
simplesmente de coração aberto e disposto a enfrentar (o trágico), ele já está livre
do que seriam possibilidades nulas. A realidade da vida, esta que a doxa insiste em
situar como cruel, dura, difícil e não o faz inocentemente é uma
realidade que coloca o homem numa perspectiva pessimista. Ora, que perspectiva é essa? É
uma perspectiva que nos fala de não se iludir com o futuro, pois, via de regra, ele
guarda o fracasso, o golpe de misericórdia para nossas metas, a frustração de qualquer
plano. Mas o homem obstinado não ouve a voz antecipada da "dura realidade" e
insiste, heroicamente, na busca de seus objetivos, ainda que reconheça o que há de cruel
na realidade do mundo. O homem experimentado procura por um equilíbrio: nem tanto ao
inferno do fracasso absoluto, nem tanto ao céu do êxito total. Nesse equilíbrio, na
busca dessa espécie de diké, que é a justa proporção entre as partes, o homem
deixa para trás a posição de nada fazer, justificada por uma resignação e
conformidade típica de uma atitude passiva diante da realidade, nem deseja alcançar a
posição do super-herói, que contorna quaisquer dificuldades e faz o bem prevalecer, de
modo absoluto, sobre todos os males. Ele é homem experimentado porque sabe que estas duas
posições são justamente aquelas que evocam possibilidades nulas. Livre destas
possibilidades nulas, o homem experimentado quer agora evocar possibilidades autênticas.
Mas reconhecê-las, as possibilidades autênticas, depende de uma aprendizagem de duas
claves: pathos e enthusiasmós.
Pathos é a clave do sofrimento, da
paixão a que a alma tem de se submeter em uma experiência de transformação. Seu
primeiro tempo é a vivência, o encontro do inesperado, o estrangeiro, que vem de longe e
vem de fora, como nos diz Berlinck (2000), para desacomodar antigas certezas e mesmo para
colocar o sujeito na atividade de produzir alguma certeza, ainda que provisória e sujeita
a novos abalos sísmicos. Aprende-se com e pelo sofrimento. O primeiro tempo de uma
aprendizagem, portanto, é um tempo cuja vivência é de sofrimento. Mas não o sofrimento
ordinário, da dor subjetiva ou mesmo da dor somática. O sofrimento da aprendizagem é a
dor da alma, que já não é mais casta e pode agora deslocar o sujeito de antigas para
novas posições. A novidade das posições que se atingem com a aprendizagem pelo
sofrimento pode ser representada pelo entusiasmo. Enthusiasmós, cuja raiz é thus,
derivado de theos, divino, é uma espécie de encontro com as possibilidades
autênticas. Depois do padecimento da aprendizagem, o saber que resulta dessa experiência
pode dar à alma ânimo renovado e inflamá-la para vivências entusiasmadas diante da
vida. É o tempo de vivências aventureiras, de partir rumo ao incerto, de se entregar sem
medo à transitoriedade e aceitar a finitude com alegria, pois há uma vida que antecede a
morte. A transmissão e a produção do conhecimento são processos que libertam o homem
das possibilidades nulas para o encontro das possibilidades autênticas. Transmitir e
produzir o conhecimento são experiências de aprendizagem que são compartilhadas entre
ensinantes e aprendentes. O objetivo da transmissão e produção do conhecimento é
justamente ocupar a vida antes da morte com o cultivo da inteligência. E a inteligência
está onde está o desejo. O desejo de aprender é vital para que ensinante e aprendente
possam ser surpreendidos com a beleza da transmissão e da produção do conhecimento. A
inteligência é, portanto, a capacidade de se surpreender durante a transmissão e a
produção do conhecimento.
A transmissão e a produção do conhecimento
são processos que envolvem aprendizagem e o cultivo da inteligência. Na transmissão do
conhecimento é preciso que o conhecimento antigo, já produzido, seja objeto da
experiência do aprendente. O aprendente necessita do testemunho da aprendizagem do
ensinante. Há uma transposição do conhecimento aprendido pelo ensinante para o universo
de conhecimentos do aprendente. Há uma desconstrução do conhecimento já aprendido pelo
ensinante de modo que o aprendente possa encontrar acesso a esse conhecimento. Promover
aprendizagem é desconstruir o conhecimento aprendido. O ensinante realiza essa
desconstrução e o aprendente surpreende-se com a descoberta do conhecimento. Na
produção do conhecimento ele é fruto de uma experiência chamada de ponta: o
pesquisador deseja alargar o campo de conhecimento e se lança na atividade de pesquisa.
Mas antes de se alcançar a renovação propriamente dita do conhecimento é preciso aprender
a passivar. Ser passivo da experiência de aprendizagem, submeter-se a ela,
entregar-se à aventura que ela representa.
Assim, o conhecimento é antes de tudo o
resultado de uma experiência de aprendizagem com e pelo sofrimento. Mas sua transmissão,
produção e conservação podem ser também experiências de aprendizagem com e pelo
entusiasmo. A aprendizagem pelo entusiasmo é uma experiência estética porque amplia o
alcance dos sentidos. A escuta do significante na clínica psicanalítica, por exemplo, é
uma experiência de ultrapassagem do puro e simples efeito sensorial da audição. Há
nisso uma beleza. A ampliação da experiência sensorial é estética porque é pura aisthesis.
Todavia, a ciência normal, no sentido de Kuhn (1989), é uma experiência de sacrifício
e renúncia de qualquer beleza. O espírito grave dos cientistas não admite uma
aprendizagem dionisíaca, tampouco cruza os céus de maneira apolínea conduzindo o carro
que leva e traz o sol. A transmissão e a renovação do conhecimento científico estão
aprisionadas pela lógica aristotélica, esquecendo que seus antecedentes são
necessários para o percurso que tais processos envolvem. A poética, a retórica e a
dialética são experiências que não podem ser afastadas da transmissão e da
renovação do conhecimento científico.
O cultivo da inteligência como capacidade de se
surpreender não pode não considerar os antecedentes da lógica aristotélica. Uma
experiência de aprendizagem com e pelo sofrimento e com e pelo entusiasmo possuem uma
dimensão poética. A dimensão do inverossímil, das possibilidades mágicas, dos heróis
trágicos e épicos. A criança nos mostra o quanto aprende com os devaneios das fábulas,
por exemplo. Tais experiências possuem também uma dimensão retórica. A métis
do adolescente, sua astúcia e prudência, ensaio e erro de malandragens e espertezas, o
prepara para a crueldade do mundo adulto. A retórica permite localizar essa solércia
exemplar com que o adolescente se prepara para o agon da vida. A vida é disputa,
debate, às vezes guerra, e a retórica anuncia o momento dialético, de combate através
do diálogo. Finalmente, a lógica e sua operação através do silogismo preparam o
terreno do amadurecimento e consolidação das idéias e da inteligência.
Infelizmente, essa retomada das possibilidades
aristotélicas para a experiência do conhecimento científico não é uma revolução
viável. O máximo que se pode buscar são subversões locais. Pequenas transformações
que podem encontrar lugar no cotidiano de salas de aula do ensino médio, fundamental, de
graduação e pós-graduação. Isso porque a ciência considera válido
apenas a lógica aristotélica como experiência de transmissão e produção do
conhecimento. E isso não é problema. De fato, a lógica é um caminho seguro para tais
experiências. Todavia, seus antecedentes, a poética, a retórica e a dialética, são
também caminhos viáveis. E se possuem alguma margem de insegurança é porque são
caminhos que desejam partir rumo ao incerto. É a aposta realizada pela experiência
estética da arte e que chama a atenção para os limites da experiência científica. Por
isso ainda que a ciência em sua acepção de ciência normal, conforme Kuhn (1989), tenha
o poder de fazer permanecer na universidade, nas escolas e nas instituições sua
radicalidade acerca do que é válido como conhecimento e algumas vezes até
como saber, a experiência filosófica, a experiência hermenêutica e a experiência
estética estão aí, também em suas radicalidades que lhes dão o poder de não
desaparecer, para advertir a experiência chamada científica de seus limites e de seu
alcance. É o que nos lembra Gadamer (2000).
Todavia, convém lembrar quais circunscrições
de conhecimento e de experiência estética devem conduzir nossa reflexão. Vivemos uma
crise na produção do conhecimento. Diferentemente dos outros séculos, o XX e o XXI
estão marcados pelo que chamo de mosaico epistemológico inevitável e necessário.
Lacan, por exemplo, sofreu a influência desse mosaico. E nós herdamos isso de certa
forma. Por isso evito adesões radicais, até porque a transdisciplinaridade desse mosaico
epistemológico exige rigor, tolerância e também abertura. Novos dispositivos
nascem da miscigenação. Saliento isso, porque minhas reflexões sobre estética,
ciência e Pesquisa Psicanalítica se encontram em statu nascendi e envolvem o lego
homérico. Lego deriva de logos e Homero o utilizava para designar o
processo de recolher e reunir, segundo Schüler (2001). Recolher ossos, armas, alimentos
para reunir homens. Assim, o logos homérico significa recolher objetos sabendo
diferenciá-los. Logos significa a reunião de coisas segundo um determinado
critério. Ademais, o critério surge sempre a posteriori porque é a
alteridade que participa de seu encontro.
Mas o que é conhecimento afinal? Conhecer
significa produzir ou criar o objeto. Esta tese permite que se reconheça no próprio
objeto a manifestação ou a atividade do sujeito. Quando o pesquisador psicanalítico
conhece seu objeto, após descobri-lo como um resto, ele se movimenta da ficção à
alteridade e sua atividade é criadora. Nesta criação, o objeto produzido traz consigo a
manifestação do sujeito que conhece. Freud sabe (re)conhecer o inconsciente na arte e
quando inventa a psicanálise, ainda na correspondência com Fliess, está metido nisso
até as orelhas. Desde que comecei a estudar o inconsciente, tornei-me
muito interessante para mim mesmo. É uma pena que se fique de boca fechada sobre as
coisas mais íntimas (Freud a Fliess, em 3 de dezembro de 1897).
E o que é estética? Estética é uma palavra
que deriva do grego aisthesis. Aisthesis quer dizer sentir, perceber as
coisas com algum afeto. Estética é também aquele domínio da filosofia que se ocupa do
belo. As belas artes são refletidas e discutidas pela estética. A faculdade do sentir,
ligada aos afetos e às emoções, é objeto da estética. Mesmo a atividade racional não
é desprovida de emoção, há uma estética da razão, os próprios filósofos da
ciência o admitem. E são os filósofos da ciência, nos bastidores dela (hoje nem tanto)
que decidem o que é ciência, afinal. Mesmo Comte ou Popper, que abominavam as emoções,
não escapavam da influência de suas emoções. Aliás, basta lermos os discursos de
Helmholtz e veremos que a razão pode ser apaixonada (ainda que se fale pouco de uma
paixão racional). Ora, isto posto, damos adeus às inúteis especulações sobre o
exercício da razão como algo desprovido de emoção e, portanto, de estética.
Hodiernamente, quem decide os caminhos da ciência são padrões de ciência normal em que
a forma é altamente celebrada.
Uma coisa interessante sobre a estética como
condição sine qua non para a produção e divulgação do conhecimento
científico são as normas que orientam sua forma na academia. Aliás, a forma é, hoje,
mais importante que o conteúdo. Se o sujeito não tiver cumprido as normas da forma, pode
voltar pra casa com seu acelerador de partículas, não serve, ninguém vai ler o
trabalho. Até mesmo a pesquisa psicanalítica, apesar de suas rupturas com a ciência
normal, nos lembra sempre da divisa nenhuma bobagem a ser dita que não seja
legível, nenhuma bobagem a ser escrita que não seja audível´, parafraseando o conselho
de Dumézil a Foucault. Conhecemos bem o mercado editorial brasileiro, sem falsa
modéstia. Encaminham-se, diariamente, centenas de artigos para diversos periódicos. Cada
um deles possui uma estética. Quem não se envolve com isso, não imagina os fru-frus e
petit détails que consomem o articulista antes da submissão do manuscrito. O artigo
acaba virando um cavalheiro ou uma noiva, de quem temos de ajeitar o smoking e
dispor a grinalda na posição exata, senão pas de publication (poubellecation).
Assim, se o que se almeja é produzir verdades (plurais) sobre o conhecimento,
independente da área, ciência exata, humana, psicanalítica, a estética é o mote
primeiro, sempre. Audibilidade, legibilidade e normas de publicação (algumas vezes
excessivas e desnecessárias) são as vedetes do setor de RH da grande empresa chamada
ciência do século XXI.
E como definir uma experiência estética? E como
entender o sujeito na experiência estética? Uma experiência estética é aquela em que
o sujeito produz um sentido novo para o objeto conhecido através dos órgãos de sentido.
A obra de arte é sempre interrompida, portanto, aberta para novas significações. O
espectador nunca é cativo da intenção do autor na origem nem de sua pretensão de
destino desejado para a obra. Essa abertura de sentidos não é semelhante à desejada
pelo ato psicanalítico? Dito de modo grosseiro, a lembrança realmente fede da
mesma forma que, no presente, o objeto cheira mal; e, do mesmo modo que afastamos
nosso órgão sensorial (a cabeça e o nariz), enojados, o pré-consciente e o sentido da
consciência desviam-se da lembrança. Isso é o recalcamento (Freud a Fliess em
14 de novembro de 1897).
Mas o que conduz nosso interesse para a
experiência estética como algo recorrente no ensaio metapsicológico com que a Pesquisa
Psicanalítica comunica seus resultados? Que tipo de conhecimento há na experiência
estética da arte que pode servir como ilustração para nossa aproximação com a
experiência do ensaio metapsicológico na Pesquisa Psicanalítica? Tentemos se não
responder pelo menos encaminhar algumas aproximações.
Uma representação artística pode fazer o feio
parecer belo e, assim, a arte fica definida como a bela representação de uma coisa.
Encontramos nesse enunciado o problema da artificialidade e da habilidade. O artificial é
uma reprodução do mundo e da realidade, enquanto a habilidade é uma técnica, uma
ação que permite esta reprodução. Evitando longas digressões a esse respeito, Gadamer
(2000) irá concluir que: O que propriamente experimentamos numa obra de arte e
para onde dirigimos nosso interesse é, antes, quão verdadeira ela é, isto é, em que
medida conhecemos e reconhecemos algo e a nós próprios nela (p. 120).
Cabe assim a seguinte interrogação: será que
não deve haver nenhum conhecimento na arte? Tomo esta interrogação emprestada de
Gadamer. A experiência da arte possui em si mesma uma reivindicação à verdade. E esta
verdade não pode nem deve ser inferior àquela que a ciência nos oferece. Ela
é simplesmente outra. É sempre a linguagem que nos permite o encontro com qualquer
objeto dentro do mundo. A obra de arte possui também sua linguagem e nosso encontro com
ela é sempre um encontro com o inacabado. Uma obra de arte se interrompe, não
pode ser terminada. O espectador toma parte desse acontecimento e sua compreensão da obra
é sempre compreensão do modo de ser inacabado da obra de arte.
Tomemos como exemplo A Mão de Deus,
de Rodin:
[ A Mão de Deus, de A. Rodin]
É interessante notar como a mão parece nascer
do mármore, o qual se conserva em seu estado bruto. Não é mais uma escultura clássica,
toda polida em suas arestas, pretendendo uma inteireza de detalhes. A verdade da obra
de arte é não-toda. O ensaio metapsicológico, gênero com que a Pesquisa Psicanalítica
se comunica, semelhante à obra de arte, traz consigo uma verdade incompleta. Ele não
deseja concluir, ele mostra o ponto em que o autor o abandona. Ele é sempre uma
interrupção. Picasso dizia que terminar um quadro seria dar-lhe o golpe de
misericórdia. O mesmo vale para o ensaio metapsicológico. Mas o que é um ensaio,
afinal? E mais: o que é um ensaio metapsicológico?
A forma do ensaio é irmã da literatura. A
ficção é o ponto de partida e o ponto de chegada do ensaísta. Entre os dois pontos
está a experiência. Mesmo que o objeto da experiência exija um relevo fundamental, o
sujeito não se retira da cena: ele mescla subjetividade e objetividade em seu movimento.
De sua implicação de sujeito, o autor da experiência procura a vivência de algo
concreto, mas repleto de fantasias, às quais põe em diálogo com a alteridade. De sua
implicação objetiva, o autor da experiência busca uma aprendizagem com e a partir da
vivência. Por isso, o ensaio reúne o território da irracionalidade artística com o de
uma ciência organizada para a produção do conhecimento. Assim, o ensaio é uma
liberdade de espírito. O espírito livre não sacrifica todas as convicções em favor de
uma única como faz a ciência; o prelúdio positivista deseja afirmar a convicção de
que o espírito científico não admite convicções e sacrifica todas elas em favor
desta. O espírito livre é arrojado: enfrentará a possibilidade de naufrágio de sua
fantasia; todavia, ainda assim lhe restam as possibilidades de triunfo e de uma nova
exploração graças ao timoneiro chamado alteridade. O ensaio retoma o ócio infantil e o
entusiasmo pelo já feito. Como o poeta efebo que goza a influência de seu mestre até
encontrar a liberdade de sua letra e viver uma angústia cuja influência é a de não
poder não escrever, mas agora como autor singular. O ensaio termina quando encontra o
fim, quando é abandonado, pois se estanca para não prosseguir no que está dizendo,
sendo esta a hora de uma alteridade anônima verificar sua demonstração. O ensaio
reflete, não contenta, não classifica. Possui uma inteligência desviada: delira e
inventa coisas onde nada há. É a ficção que lhe serve de sangue, buscando o domínio
da invenção, da criatividade diante do já feito, já visto, e também do nunca tentado.
Recusa, portanto, o homem de fatos da ciência e abre-se para o homem aéreo da poesia.
Aceita o terror da proibição de dizer além do já dito, como salienta Adorno (1965).
O ensaio possui uma autonomia estética e
desconfia do modelo canônico e positivista de conteúdo. A consistência não brota da
retirada do sujeito, de sua supressão em favor de uma quimérica neutralidade
científica; ela brota justamente de sua inclusão e revela um autor em sua opacidade, na
pior das hipóteses; ou, na melhor das hipóteses, um autor cuja clareza é cortesia de
gênio. Para o ensaísta, autônomo em sua estética, não existe alergia da forma, aquela
do espírito científico dogmático e obstinado. Como na literatura de Proust, o ensaio
traz à tona a sensibilidade do escritor que vai além da ciência e é capaz de enunciar
conhecimentos profundos e sólidos sobre o homem e seu contexto social. Para Freud, o
escritor, com sua sensibilidade, possui a coragem de deixar falar seu próprio
inconsciente (a obra de arte é uma confissão do autor, mas é preciso saber lê-la) e a
capacidade de perceber pulsões ocultas no espírito das coisas e das pessoas. Os
escritores desejam proporcionar prazer estético e intelectual através de efeitos
emocionais. Assim, não podem re-produzir a matéria da realidade sem modificá-la. A
ficção é audaciosa: mas a renúncia ao princípio do prazer, de que Freud diz ser a
ciência a mais radical representante, é relativizada na forma do ensaio: toda ficção
deverá ser corrigida pelo diálogo com a alteridade. E alteridade é princípio de
realidade. No ensaio, não há pretensão de objetividade; há uma vaga plausibilidade.
Não interessa a verificação da tese defendida pela eficácia e repetição de sua
comprovação. Interessa o conjunto da experiência individual e sua potência de
vivência criadora e instauradora de aprendizagem.
O ensaio quebra a continuidade das teorias
empiristas elevando às últimas conseqüências a experiência não-conclusiva e
não-antecipadora de uma ordenação conceitual fixa. O ensaio não procura o eterno no
passageiro, mas quer eternizar o passageiro. A vivência é o lance, fugaz, que prepara o
segundo tempo: aquele de uma aprendizagem, relance do primeiro, em que o sujeito, livre do
objeto, encontra sua capacidade de autoria. Demonstrando assim como aprendeu e ocupando o
lugar de ensinante. O ensaio acaba com a ilusão de que o pensamento possa partir da thesei
(cultura) para atingir a physei (natureza). A única ponte que reúne tese e
natureza é a da ficção e quem testa-lhe os alicerces é a alteridade. O ensaio procede
metodicamente através do não-método. A figura de Adorno é mais que ilustração: o
estrangeiro que aprende uma nova língua sem ir ao dicionário é um privilegiado que
desfruta de uma palavra em diferentes contextos e, por isso, pode experimentar as
diferentes nuances de sentido, as quais o dicionário, por maior que seja seu esforço,
somente oferece um pálido reflexo.
Em última e provisória análise, o ensaio rompe
com a tradição cartesiana de impor um percurso de aquisição de conhecimentos que vão
dos mais simples aos mais complexos. O ensaísta não teme desafios, pois sabe que o
simples é familiar; busca a complexidade de um autor, de um tema, seja o que for. O
ensaio não tolera o engodo de que para entender o complexo é preciso primeiro cortejar o
simples; o adiamento do desafio de uma compreensão acaba por impedi-la. O ensaio é como
a vida: sempre inconclusivo para o seu autor, pois no dia de sua morte, apenas os que
ficarem poderão falar do que restou, enquanto o autor jamais poderá extrair uma
aprendizagem desta vivência radical e derradeira. Enquanto se vive, se pode ensaiar.
Contudo é preciso saber que o espetáculo é o próprio ensaio e não haverá outra
chance para cada ato, cada cena o autor é ator de um drama singular, inadiável e
intransferível.
O ensaio metapsicológico segue a tradição da
metapsicologia freudiana, pois está situado como um texto produtor de modelos
conceituais. Tais modelos afastam-se da experiência e constituem ficções teóricas a
partir das quais a própria experiência é radicalmente transformada. Garcia-Roza (1998)
nos dá uma idéia clara da metapsicologia freudiana: O termo ficção teórica
pode causar estranheza. Afinal costumamos opor a liberdade imaginativa da ficção ao
caráter rigoroso e restritivo da teoria. Mas, na verdade, produzir conceitos é inventar,
é violentar o dado, ultrapassando-o (p. 11).
Freud escreveu a Fliess que sem especulação e
teorização metapsicológicas, os quais aproxima da fantasia, não se avança na Pesquisa
Psicanalítica. Freud costumava chamar a metapsicologia de feiticeira, pois é
ela que por meios nem sempre muito claros, pelos caminhos da imaginação, possibilita
esse passo adiante no sentido da criação, arrancando o pesquisador da admiração do
dado e ao mesmo tempo impedindo-o que o formalismo teórico o paralise. O ensaio
metapsicológico é um texto que deve convocar uma alteridade para que a experiência do
pesquisador seja comunicada. Daí para frente o ensaio metapsicológico faz falar. A
interrupção do ensaio metapsicopatológico revela o autor em sua nudez que provoca
alteridade. Alteridade benfazeja que fala a partir de um texto. Como a obra de arte, que
por representar o encontro do espectador com o inacabado, também faz falar. Diante
da obra de arte, as palavras nos brotam como uma maneira de preencher um vazio deixado por
sua incompletude. Benjamin dizia que a obra de arte se completa com a crítica. O
ensaio metapsicológio, interrompido, inconclusivo, faz falar a alteridade. E, por ser
texto, possui um estilo, uma marca do autor. Muitos trabalhos de Freud e Lacan são
ensaios. E neles se pode reconhecer a marca de um estilo. E o estilo do autor, com sua
marca, pertence a uma ordem estética. Por isso a experiência da Pesquisa Psicanalítica,
através do ensaio metapsicológico, como uma experiência estética. O que nos permite
entender a verdade da Pesquisa Psicanalítica mais como uma verdade da ordem de uma
experiência estética do que de uma experiência científica. A experiência estética,
com sua verdade inacabada, surpreende mais do que a experiência científica, com sua
verdade cativa de uma dúvida cínica, porque cartesiana.
A ciência normal não deseja partir rumo ao
incerto. Só pode haver conhecimento autêntico e livre das possibilidades nulas quando
há surpresa. Os bebês o sabem. O fogo, a roda e a histeria o provam. Surpreendamo-nos,
então! De outra forma, a finitude se eleva acima da vida que há antes dela. A ciência
teve seu momento mais lúdico, mais repleto de surpresas. Galileu surpreendeu-se com suas
observações. Não se pode generalizar, é claro, a figura de um cientista atual
carrancudo e aprisionado pelo ideal positivista de assepsia completa do fazer científico.
Todavia, a experiência nos mostra que muitos lugares de produção do conhecimento,
especialmente na universidade, recusam o homem aéreo da poesia como continuação do
homem de fatos da ciência. Há um furor experimentalista, sobretudo em alguns domínios
das ciências do espírito, que deseja submetê-las aos métodos das ciências naturais.
Perde-se assim a ousadia de partir rumo ao incerto. Quer-se prever e controlar. Prever e
controlar acima de tudo. Antecipar a qualquer custo a compreensão da realidade. E se
esquece daquilo que Heidegger (1927/2001) advertiu: acima da realidade está a
possibilidade.
A verdade de qualquer experiência, mesmo a
científica (que o nega), é sempre faltante, há sempre um buraco. É dele que falamos,
é o litoral-literal do texto, sua borda, portanto. Podemos pensar no valor
epistemológico da arte, já que dar-lhe o adjetivo epistêmico seria elevá-la à
condição de conhecimento oposto à doxa, à chamada opinião comum. Isso é
possível, é claro. Mas seria atribuir à arte a possibilidade de alcance de uma opinião
verdadeira (epistemé) acerca da natureza. Isso é mitologia platônica e todos
sabem o que Platão pensava das artes. Ainda que tenha sido um artista ao compor o
Simpósio. Quando falo de experiência estética e de sentirmos a verdade numa obra de
arte, prefiro pensar no valor epistemológico disso, ou seja, que o ato de conhecer do
espectador diante da obra pode libertá-lo para o alcance de uma verdade que a ciência
não pode dar.
Mas o que é verdade, afinal? Nesta linha de
raciocínio, tomo a verdade como aletheia. Lembremos Heidegger (1954/2000), em um
de seus exames sobre o problema da aletheia: Sabemos demais e acreditamos
com demasiada rapidez no que sabemos. Talvez por isso nos seja tão difícil adquirir
familiaridade com uma questão nascida de uma verdadeira experiência. Para que isso
aconteça, é preciso poder espantar-se diante do simples e assumir esse espanto como
morada. O simples, certamente, nos é dado pelo fato de pronunciarmos e reproduzirmos, de
maneira simplista, o significado literal de aletheia como des-encobrimento.
Des-encobrimento é o traço fundamental daquilo que já apareceu e que deixou para trás
o encobrimento. Esse é o sentido do alfa que compõe a palavra grega aletheia e que
somente recebeu a designação de alfa privativo na gramática elaborada pelo pensamento
grego tardio. A relação com lethe, encobrimento e o próprio encobrimento não perdem de
forma alguma o peso pelo fato de se experienciar diretamente o encoberto como o que
apareceu, como o que entrou em vigência, como vigente (p. 229).
Aletheia é o desvelamento do objeto
conhecido, mas desvelamento na medida em que se descobre a manifestação ou atividade do
sujeito nesse desvelamento. O analisante e o pesquisador psicanalítico buscam uma
travessia, no sentido de Guimarães Rosa, isto é, travessia da mimesis, da
imitação do sintoma herdado e da imitação do mestre. Algo como gozo e angústia da
influência, de acordo com Harold Bloom. O desvelamento é a passagem para uma
transformação, como nos diz Caon (1996). Analisar-se e fazer Pesquisa
Psicanalítica só têm um sentido genuíno quando o sujeito se transforma. No quê, em
quê, disso cada um pode falar pessoalmente. Mas uma coisa é ponto pacífico e universal
nesta experiência: do sofrimento inevitável que as duas experiências exigem, há a
possibilidade de uma transcendência para o entusiasmo diante da aprendizagem inaugurada
pelo sofrimento. Por isso insisto que aprender significa libertar-se das possibilidades
nulas para o encontro das autênticas. Isso envolve uma guinada que coloca o sujeito
diante de uma beleza possível na vida (e por acaso não é belo reconhecer que há uma
vida antes da morte?) e de uma beleza possível no texto. Bem dizer e bem escrever, não
são estes os motes do analisante e do pesquisador psicanalítico?
Mas que verdade é essa que a ciência não pode
dar? Ora, precisamente aquela de que não se pode falar senão como algo muito particular
e singular. Todos nós sabemos que a arte nos transforma. Há livros, filmes, etc., que
nos conduzem às transformações mais radicais. E mais: a arte conspira para as
transformações da ciência. A literatura grega é vital para uma concepção de ciência
oriunda dela que persiste até hoje. O modernismo na arquitetura recebeu influência do
modernismo da pintura e assim por diante. mas isso são outras histórias. Uma obra de
arte nos liberta para o alcance de uma verdade cuja experiência é estética porque o
conhecimento estético que nos chega através dos sentidos (órgãos sensoriais) promove
uma abertura de sentidos (significados). Quando ouvimos a nona de Beethoven não o fazemos
como adeptos de uma seita. Cada um irá experimentar sua beleza de uma maneira diferente
e, portanto, singular. Agora todos nós sabemos que a lei da gravidade será igual na
experiência de todos nós, ainda que num divertido suicídio coletivo, uns resolvessem
saltar sem pára-quedas de um avião, outros de um prédio de vinte andares e outros, por
que não dizer, do alto de seu próprio ego.
Digo que a verdade da experiência da Pesquisa
Psicanalítica está próxima da experiência estética porque há mais invenção nela do
que descoberta. Freud inventa a psicanálise o que é diferente de tê-la descoberto. Mas
é a descoberta dela em cada um de nós, que nos aventuramos na clínica e na pesquisa
psicanalíticas, que a transforma em aletheia. O chiste é modelo de aletheia.
*
Assim, podemos lembrar de Winnicott, que falava
de dois caminhos que conduzem à verdade. É Caon (1996) que nos lembra disso: Winnicott
examina dois caminhos que conduzem à verdade, a saber, a poesia e a ciência. para esse
pesquisador, o laço entre verdade poética e verdade científica aparece na experiência
de cada um de nós. Sabemos, por experiência, que a verdade se dá na nossa experiência
enquanto poetas de maneira repentina e veloz, como o raio. Mas, enquanto cientistas, ela
somente se nos dá aos poucos e temos que estar, como tais, em constantes tateios e no
escuro (p. 98).
Winnicott (1965, citado por Caon,1996) nos diz o
seguinte: A verdade poética apresenta certas vantagens. Ela oferece ao
indivíduo profundas satisfações, e a expressão nova duma verdade velha é uma ocasião
de experiência criadora de beleza. Mas a verdade poética é muito difícil de ser
utilizada. A verdade poética é um affaire de sentimento: diante do mesmo problema,
podemos muito bem não experienciar a mesma coisa. Com a verdade científica e seus
objetivos limitados, espera-se levar as pessoas que sabem refletir e podem ser
influenciadas por considerações intelectuais a chegarem a um acordo quanto ao que se
refere a certos domínios práticos. Da poesia, brota, como cristalizada, a verdade. Para
planificar nossas vidas, precisamos da ciência. Entretanto, a ciência recua diante do
problema da natureza humana, ela tende a perder de vista o ser humano na sua
totalidade (p. 99).
O ensaio metapsicológico pode ser tomado como um
bem-escrever, em que a legibilidade evoca uma estética, não necessariamente a do belo,
pois a arte também torna belo o feio (vide Sebastião Salgado e seus Êxodos). Prefiro
dizê-lo e escrevê-lo, o ensaio metapsicológico, como um gênero literário. e, se
literário, portanto artístico. O ensaio metapsicológico quer alcançar uma verdade de
natureza estética. A Montanha Mágica de Thomas Mann nos serve, algumas vezes, mais que
um DSM-IV e Schreber serviu à Freud mais do que Jaspers e Kraepelin. Muito bem posta a
observação de Luiz Artur. Na arte, nos sujamos com as tintas, recusamos a assepsia da
ciência. Na Pesquisa Psicanalítica também estamos maculados por nossa implicação
subjetiva de autor. Não desejamos assepsia. Aliás, prever e controlar são metas da
Pesquisa Psicanalítica. Ou alguém ainda acredita na simulação de um sonho, de um ato
falho? O inconscientizado se manifesta e aí sim, depois disso, après-coup, vamos
procurar explicá-lo. Ainda que os artistas realizem os famosos esboços, eles não são
projetos piloto nem simulação de uma obra de arte. A Pesquisa Psicanalítica
é também uma manifestação do inconsciente. O principal sujeito de uma Pesquisa
Psicanalítica é seu próprio autor. Há mais de Freud em Schreber e Hans do que daqueles
dois a que Freud faz alusão.
Que Freud tenha dito que a ciência toda teria de
se transformar se sua Psicanálise não fosse ciência e que a Weltanschaaung
da Psicanálise não é outra senão a da ciência, tudo bem. Mas fico com lacan
e assoun que superaram estas assertivas. a pesquisa psicanalítica exige uma
epistemologia que é própria das condições do ato de conhecer que é bem diverso
daquele da ciência normal, no sentido de Kuhn (1989).
Ora, quando Paul Klee pinta a 'Revolução do
Viaduto', em 1937, os críticos se puseram a trabalhar e encontraram verdades diversas na
tela. Houve quem disse que as legiões de arcos acastanhados avançavam sobre o
espectador, houve quem disse que o quadro anunciava um mau agouro sobre o observador, pois
são arcos que representam o avanço e a marcha do totalitarismo sobre um mundo arruinado
por sua imaturidade. Mais tarde, Werckmeister deu ao quadro uma interpretação que
pôs em causa as anteriores. Os arcos, desiguais em tamanho e cores saem da ordem, fazem revolução,
livres de qualquer ordem que desejaria uniformizá-los. A pesquisa Psicanalítica é isso:
uma revolução que recusa a uniformização da ciência normal. É o que Caon (1996) tem
sugerido quando fala de universalização do singular. Eu sou universal, mas não posso
ser generalizado é um enunciado que não cabe na ciência normal. O sujeito é
universal porque sua singularidade é universal.
Gadamer (2000) diz literalmente não poder
acreditar que um texto seja diferente de uma música. O artista quando executa uma peça
ao violino deverá ser fiel à pauta. O que estiver fora das intenções do autor é o que
se chama de interpretação. Na hermenêutica, a mesma coisa. A música o prova.
Experimentemos modificar o compasso de uma peça de Lizst e seu andamento. Acaba-se com
Lizst. A partitura está lá, tal como o autor a concebeu a partir de sua criação.
Nossos problemas começam quando entramos no domínio da língua escrita. A linguagem
musical é universal. O maestro japonês e o alemão não tocam Lizst em alemão ou
japonês. Tocam em lizt. O problema da língua do texto escrito e sua interpretação é
que toda tradução é uma atividade criminosa. Toda compreensão é interpretação.
Lembremos, a esse respeito, que Hermes, o deus mensageiro, era também ladrão. Hermes
está na raiz da palavra hermenêutica. Toda interpretação é criminosa e a
compreensão que a engendra é cúmplice disso.
A clínica é lugar de moi, la verité je
parle, pois Lacan dizia: 'vos falo como analisante'. Interessante que para os
gregos o lethes, esquecimento, era dependente da mneme, memória, para se
tornar a-lethes, aletheia. Em Construções em Análise, de 1937, mesmo ano
em que Paul Klee pinta 'A Revolução do Viaduto', Freud escreve que os sintomas e
inibições do paciente são substitutos para aquelas coisas que esqueceu. E que o
material colocado à disposição pelo analisante são fragmentos de lembranças,
deformados, por exemplo, pelos fatores relacionados à formação dos sonhos. O analisante
tenta recordar algo experimentado e recalcado. Disso restam pistas. A tarefa
do analista, escreverá Freud, será a de completar aquilo que foi esquecido a partir dos
traços que restaram, isto é, construí-lo. Freud irá opor a construção à
interpretação. A primeira recai sobre materiais reunidos, a segunda sobre um
elemento isolado. Tudo isso para dizer que o tratamento analítico envolve uma aletheia,
e muito semelhante àquela dos gregos, de uma certa maneira. O lethes necessita da mneme
para ser a-lethes. No trabalho de análise, toda memória é uma memória
construída. Interessa mais o efeito dessa construção do que sua legitimidade em um
tempo ultrapassado.
A verdade fala, mas é o olhar que a
captura. Depois a escuta faz seu trabalho. Se a escuta é dirigida pelo olhar, e a
construção da memória é desvelamento, aletheia, mais uma razão para tomar o
ato psicanalítico como um ato cuja experiência é estética. Não só a Pesquisa
Psicanalítica, mas também a clínica. Cézanne entrevistado por Gasquet dizia que toda
a vontade tem de ser de silêncio. O pintor deve calar todo preconceito, esquecer,
fazer silêncio, ser um eco perfeito e traduzir inconscientemente o texto da
paisagem que está sendo decifrado. Ora, Cézanne parece estabelecer uma regra fundamental
para a pintura que lembra, de uma certa forma, uma outra conhecida regra fundamental.
Não me refiro à experiência da Pesquisa
Psicanalítica como desprovida de cientificidade, no entanto. O que pode não estar claro
é que no terreno da psicanálise das instituições e do trânsito dela na filosofia, o
ângulo é muito diferente daquele que orienta meu foco. Vivo e sobrevivo entre alguns
pesquisadores positivistas e iludidos de que os modelos da ciência natural podem dar à
psicologia uma garantia de cientificidade. Nesse ambiente, o que impera é uma atitude
científica pautada pelo naturalismo do séc. XVIII e pelo sonho de tornar a psicologia
uma ciência unitária. Quando na verdade sua riqueza está justamente na multiplicidade
de abordagens. A psicologia de nosso planeta é ciência normal que deseja ser dura
como a astrofísica. O jargão não é diferente do da física quando se extrai o
conteúdo de uma pesquisa psicológica.
Quando aproximo a experiência da Pesquisa
Psicanalítica da experiência estética é para afastá-la dessa experiência de
obturação do sujeito na ciência normal. Mesmo que ao jogar o sujeito pela janela, ele
retorne e bata na porta. A estética é uma ciência. E a experiência
psicanalítica de pesquisa gera um movimento estético que é o texto. E todo o texto
possui um autor. E a autoria é uma experiência estética. A Psicanálise exige uma
aproximação da ciência com a arte e isso não é demérito para que a metapsicologia
seja um conhecimento científico. Porém, diferente daquele que faz o sujeito desaparecer
diante do objeto. Outra coisa. Nasio (1993) diz: ao invés de rejeitar o
impossível porque indemonstrável, a psicanálise o retém como causa de seu
discurso. Por isso devemos seguir Milner a esse respeito. A Psicanálise permite
realizar a conversão de toda singularidade subjetiva em uma lei que é necessária do
mesmo modo que as leis da natureza o são, tão contingente quanto elas e tão absoluta.
A verdade da experiência da Pesquisa
Psicanalítica é semelhante à da experiência estética e anuncia uma nova
cientificidade: a de um autor universal impossível de generalizar. A Pesquisa
Psicanalítica é uma experiência científica que inova pelo lugar conferido ao sujeito:
sua presença é, enfim, reconhecida como necessária mas não suficiente para a
produção do conhecimento. Não há mais como evitar o caminho de uma aproximação entre
ciência e arte, pois a experiência estética é um amanhecer inevitável para nossa práxis
de pesquisadores. Vivemos um crepúsculo especial, o ocaso da ciência normal atual,
no qual uma revolução paradigmática revela seus primeiros ares glaciais. A
catástrofe, no sentido grego da palavra, vai trazer vida nova ao ofício do cientista.
Altro diletto qu´emparar non provo. Esse
é o dístico que deve nascer como divisa. Não tenho outro prazer que não seja o de
aprender. Pensemos na coisa heraclitiana, o real é puro vir-a-ser. Uma experiência
de tratamento é sempre arredia, indócil como um petiço, às tentativas de definição.
Mas como aproximação podemos pensá-la como uma travessia. No sentido que Guimarães
Rosa pretende dar ao que se chama travessia. Uma travessia que vai da tragédia do sintoma
à epopéia da sublimação. Quem se analisa sabe. Há um momento em que não se escapa da
banal constatação de que não há garantia alguma para nada e que cair em si não é
assim tão desagradável. É uma queda simbólica. além do mais, a morte é certa. Mas
há vida antes dela. ainda que o neurótico não se conforme.
O inconsciente é um. Não está em todas as
cabeças e não é um problema de realidade. O real impossível da clínica é também o
que a Psicanálise retém como causa e isso é indemonstrável. Na experiência
psicanalítica de tratamento o inconsciente é UM. O Unbewusstsein é sempre
observado através de um efeito. Um efeito para o qual conspiram analista e analisante. A
psicanálise continua sendo uma teoria do sujeito psíquico. É claro que sua
demonstração também se dá através de seus efeitos, mas isso de que Freud se
ocupou, Seele, é a alma, isso é transcendental, e o Lebenswelt de
Husserl e Heidegger é o mundo em que o sujeito sofre. Essa é a ultrapassagem que a
Metapsicologia sugere. Ultrapassar o sintoma e re-sintomatizar numa transformação de si,
que não melhora o sujeito em relação aos outros, mas em relação a si mesmo. Como diz
o provérbio popular, se o gato fica doente, melhor para os ratos, mas quando o gato está
curado, pior para os ratos.
A Pesquisa Psicanalítica não admite elemento
tético pois ele é destruído quando a experiência do pesquisador é interrompida. Não
se conclui uma pesquisa psicanalítica, se a interrompe, a abandonamos e a suspendemos em
determinado ponto. Assim, ela permanece aberta, inconclusiva, por isso o ensaio é o
gênero mais adequado para sua comunicação. Aliás, o próprio Adorno quando escreve um
ensaio sobre o ensaio nos diz que se trata de um gênero que aproxima a irracionalidade
artística da racionalidade científica. A metapsicologia de ponta exige a experiência de
análise pessoal e quem se lança na Pesquisa Psicanalítica, o faz a partir de seus
restos inanalisáveis. O saber que se produz na experiência psicanalítica é uma
questão que Lacan parece esclarecer em seu artigo sobre ciência e verdade. Remetamo-nos
a ele. Ora, o acontecimento estético, num sentido geral, está em tudo que é humano,
assim como o acontecimento ético. Aisthesis e ethos são partes
constituintes de nossa humanidade essencial. É o nosso velho e conhecido modelo: para
ensinar é preciso mostrar como se aprende. E ao mostrar como se aprende, inevitavelmente,
vemos o outro aprender e, assim, aprendemos novamente. Assim como voltar é uma ilusão,
porque estamos sempre indo, também ensinar é uma ilusão, estamos sempre aprendendo.
Não entendo Freud como um pesquisador que
procurava descrever fatos. A Pesquisa Psicanalítica não utiliza descrições. A Pesquisa
Psicanalítica de Freud opera através de duas ferramentas: a escuta e a especulação
metapsicológica. Escuta não é descrição. Especulação metapsicológica também não.
Escuta e especulação são, respectivamente, dispositivos instauradores de duas
situações: uma situação psicanalítica de tratamento e uma situação psicanalítica
de pesquisa. A escuta clínica do significante é um dispositivo que amplia a dimensão
estética do sentido da audição. A escuta dirigida pelo olhar retoma o problema da
figurabilidade em Freud e busca um outro alcance para a clínica do psicopatológico.
Quando ouvimos estamos atingindo apenas a dimensão ordinária da comunicação, isto é,
sua dimensão mais pobre. Escutar psicanaliticamente significa uma aisthesis que
vai além do funcionalismo cotidiano dos emissores e receptores de mensagem. A escuta é a
escuta do significante. O Witz é o melhor modelo e a melhor ilustração! Três
coisas são as mais importantes para o homem: mulher, dinheiro e bicho de pé. Bicho de
pé? É, porque de que adianta ter dinheiro e mulher quando não se tem o bicho de
pé? A dimensão significante depende do exercício de uma aisthesis que
só se alcança através da análise pessoal e que é uma experiência de formação. De
formação do inconsciente. A especulação metapsicológica é justamente uma renúncia
à descrição. O que é a construção do caso psicanalítico senão a mais pura e
absoluta ilustração disso? Tomemos o silogismo básico: A) Sócrates é homem, B) o
homem é mortal, C) Então Sócrates é mortal? Isso é descrição, coisa da ciência
normal. Podemos, no entanto, escrevê-lo: A contém B, B contém C, logo A contém C. Isso
é especulação metapsicológica genuína. Uma aisthesis que rompe com a
descrição objetiva da estrutura, pois ainda que haja implicação subjetiva do
pesquisador, o produto final é ensaio, o qual não admite nem objetividade pura nem puro
subjetivismo, pois é pura criação, invenção. Como diria Rousseau (citado por Derrida,
1989), dir-me-ão que sonho e concordo. O que cuido em fazer é deixar as pessoas
espertas averiguar o que meus sonhos têm de útil (p. 340).
O conhecimento buscado pela Pesquisa
Psicanalítica é também científico, contudo. Não se discute isso. Mas é sempre
manifestação do subjetivo em sua objetividade. Não estou nem um pouco preocupado com a
legitimação do conhecimento científico ou com a reivindicação desta legitimidade para
o conhecimento psicanalítico. a prática da psicanálise que é clínica e
pesquisa só se mantém na medida em que não desaparecer. Como na ciência.
Feyerabend (1977) diz que a ciência não conhece
fatos nus. O cientista os contempla de determinado ângulo e isso é um processo ideativo.
Dada a ciência, a razão não pode ser universal e a sem-razão não pode ser
excluída.
O cientista é um homem religioso. Acredita com
toda sua fé na racionalidade do processo científico. Como se o método fosse garantia de
alguma coisa. No que religião e ciência se diferenciam? Quem tem ciência e arte tem
também religião, quem não tem nenhuma das duas, que tenha religião, dizia Goethe. A
Pesquisa Psicanalítica rivaliza e compete com a ciência normal e com a teologia. Mas a
atitude dos homens em relação a elas é muito parecida: todos querem se salvar. A
ciência possui uma convicção que sacrifica a si mesma todas as outras. A Pesquisa
Psicanalítica não deseja sacrificá-la; deseja preservá-la e apresentar outra maneira
de fazer ciência.
Mas e a verdade, afinal, está onde? Dentro do
sujeito? Fora dele? A verdade está (sempre incompleta). A verdade é precisamente isso
de que não se fala quando falamos dela. A verdade termina quando aquele que se ocupa
dela morre. Estar vivo é estar jogado num mundo que nos força a compreender através da
linguagem. Dessa verdade nenhum de nós escapa.
Notas:
1. Este ensaio é uma reação do autor à morte
de Hans-Georg Gadamer, em abril deste ano, e uma tentativa de aproximar a experiência
estética da Arte da experiência da Pesquisa Psicanalítica. É, portanto, um ensaio em
statu nascendi, repleto de imperfeições, mas que se destina às alteridades mais
diversas para delas captar suas ressonâncias e ser reformulado a posteriori. Uma pesquisa
psicanalítica deve ser trazida à luz também quando ainda se encontra em andamento.
2. Psicanalista, escritor e pesquisador. Mestre
em Psicologia do Desenvolvimento pela UFRGS, doutorando do PPG em Psicologia do
Desenvolvimento e membro do Laboratório de Psicanálise e Aprendizagem na mesma
universidade.
Referências
Adorno, T. (1965). Der essay als Form. Frankfurt:
Surkhamp.
Berlinck, M. T. (2000). Psicopatologia Fundamental. São Paulo: Escuta.
Caon, J. L. (1996). Tradição ou Pesquisa. Coletâneas da ANPEPP, Pesquisa em
Psicanálise, vol. 1, número 16.
Derrida, J. (1989). Gramatologia. São Paulo: Perspectiva.
Feyerabend, P. (1977). Contra o Método. São Paulo: Edusp.
Gadamer, H. G. (2000). Verdade e Método. Petrópolis: Vozes.
Garcia-Roza, L. A. (1998). Introdução à Metapsicologia Freudiana. Rio de
Janeiro: Zahar.
Heidegger, M. (1927/2000). Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes.
Heidegger, M. (1954/2000). Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes.
Kuhn, T. (1989). A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo:
Perspectiva.
Masson, J. M. (1986). A Correspondência Completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess,
1887-1904. Rio de Janeiro: Imago.
Nasio, J. D. (1993). O Olhar em Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.
Schüler, D. (2001). Heráclito e seu (dis)curso. Porto Alegre: LP&M.