Quatro
considerações sobre Lacan e a filosofia
por Jorge Alemán
I.
Lacan nunca deixou de insistir no caráter
antifilosófico do seu ensino. De fato, a tese do inconsciente freudiano -e sua
interpretação na cura- não se inclui em nenhuma tradição hermenêutica, e a estrutura
que delimita seu campo não se inscreve em ontologia alguma. Portanto, a diferença entre
a psicanálise e a filosofia seria irredutível.
II.
Esta diferença só foi bem situada por Lacan
porque, em contraposição a outros psicanalistas (indiferentes à filosofia e, como
conseqüência, impregnados pelas versões mais canônicas), realizou três operações a
esse respeito, discriminadas ao longo do seu ensino:
a) Em princípio, mostrou a filosofia como emergência exemplar
do discurso do amo, que pretende estabelecer o ser-no-mundo para além dos impasses que a
diferença sexual impõe ao ser falante.
b) No entanto, a clínica analítica, se constituindo numa
experiência cujo meio é a palavra, exigiu atravessar todas as figuras da tradição
metafísica ocidental. Vale como exemplo a leitura lacaniana de Descartes, para formular o
sujeito do inconsciente; a de Kant e Spinoza, para propor uma ética de psicanálise; a de
Marx, para indagar o funcionamento do sintoma nos vínculos sociais.
c) Pesquisando as encruzilhadas da clínica analítica através
destes autores, surgiria a possibilidade dialética de que a experiência mesma da
psicanálise permita interpelar os filósofos de uma forma inédita. A maneira como a
práxis analítica acede ao real da satisfação humana habilita uma operação de leitura
que subverte a concepção da subjetividade presente na filosofia. Aceitando a
intervenção desta, Lacan conseguiu escrever uma página ausente que atravessa o
coração da dita cuja.
III.
Na psicanálise aparece um novo ordenamento das
categorias do ser, do saber, da verdade, do sujeito, agora destituídas da carga
metafísica, disposto a dar conta do sujeito que a ciência exclui, e desentranhar sua
relação com o ser. Como conseqüência, no hiato entre o ser e o sujeito que a
psicanálise nunca sutura, podem ser explicadas as modalidades de gozo implícitas e
consumadas no objeto técnico que o discurso da ciência usa para povoar o real.
IV.
O ensino de Lacan inaugura um ponto de partida
distinto nos lugares onde a questão do gozo -aquela forma paradoxal de satisfação
descoberta pela clínica freudiana- se encontra encalacrada: no valor do objeto técnico e
sua função estética na malha que captura o sujeito nas suas relações com o real; no
modo em que os povos, as línguas e as religiões configuram insígnias, brasões, nomes,
monumentos, que não podem ser reduzidos pelo sentido e que se abrem aos diferentes
sedimentos do gozo, na lógica coletiva das formações sociais. No último Lacan,
confirma-se que sua reflexão, ainda habitando a época da ciência, não estaria
concernida pela ontologia que é própria desta última.
Tanto seu esforço para construir uma topologia do Dizer que não
se sustente apenas no "metafórico" da palavra, quanto sua decisão de produzir
uma escritura do tecido material do pensamento, tentam preparar as condições para que
aconteça um "dizer menos tonto" sobre o real, que aquele da filosofia, da
ciência e da religião.