Psicanálise
e feminidade
por Maria Escolástica
Pode parecer paradoxal
que uma mulher se interrogue sobre o que é ser uma mulher da mesma forma que um homem o
faria mas, não é do mesmo lado. Pois, em que pesem as "cabeças ornadas com
tiaras de hieróglifos, cabeças com turbantes ou com gorros negros, cabeças com perucas
e mil outras pobres e suarentas cabeças masculinas" (Heine), as mulheres são, elas
próprias, os "quebra-cabeças".
Os homens sempre se
lamentam por não compreenderem o universo feminino: Freud se esforçava e chegou a
formular alguns esboços do que pensava ser o funcionamento psíquico da mulher. Lacan
até que encontrou uma saída elegante: a mulher, ela não se diz toda. Claro, isto é
óbvio. Só que, enquanto os homens quebram a cabeça no imaginário, a mulher se quebra
inteira no real.
É isso: acabei de tocar
no ponto G de gozo. A diferença entre os sexos é muito mais que sexual: ela é
topológica. Enquanto uns se debatem num nível, outros estão em outra.
Desde Hipócrates (IV
a.C.), vemos essas pobres cabeças suarentas debruçadas sobre o enigma posto pelo
feminino mas o enigma não é o feminino e sim o lugar em que isto (o feminino)
põe o sujeito. Parecia que seus males, suas dores, suas doenças, tudo fluía de uma
mesma fonte: o sexo. Confusos, os homens se embaraçavam : "Seu útero é um ser
vivo, afirmava Platão (Timeu) , possuído pelo desejo de fazer crianças." Havia
até a crença levada a sério -- de que dentro de seu ventre, a mulher abrigava um
animal que não tinha alma. Este animal subia e descia dentro de seu corpo, provocando as
famosas "sufocações uterinas". Essa estranheza (dos homens) fazia da mulher um
ser diferente, sem alma, um produto da metempsicose, um homem mutilado.
Será preciso que se
passem quatro séculos, antes que os médicos consigam ver na mulher um ser humano e, em
seu útero, simplesmente um órgão reprodutor. Enquanto isso, as mulheres continuavam a
sofrer com a sufocação da matriz, termo genérico que designava todos os sintomas hoje
chamados histéricos. Depois de aceito que o útero não era um animal estranho que
provocava toda sorte de problemas, como espasmos, sufocação, paralisias e até
contorções lúbricas, passou-se a acreditar que a histeria era uma espécie de mal
sagrado, tal como a epilepsia da era arcaica pré-médica, e que possuía causas
sobrenaturais. A mulher, diziam, era por natureza submissa a forças instintivas, às
vezes bestiais e demoníacas.
Na Renascença, abre-se o
pensamento para as doenças da alma. A melancolia, causada pela bílis negra, é um
presságio para o terror que vai acometer milhares de mulheres acusadas de bruxaria. Os
sintomas histéricos tornam-se um claro indício de uma alma possuída pelo diabo. Entre o
poder médico e o religioso, as mulheres não tinham salvação. Às vezes, surgia um
lampejo de razão: Que teologia torta é essa, padre? É com semelhantes lengalengas que
você pretende arrastar à tortura pobres mulheres inocentes, com semelhantes sofismas que
você condena os outros como heréticos, você que não o é menos, por esse procedimento,
que Fausto e Donato? Essa era a voz de Cornelius Agrippa (1484-1535), um mago ocultista
que, entre o fogo cruzado da teologia e da razão, teve a coragem de tomar, racionalmente,
a defesa do mistério da bruxa.
Foram muitas as teologias
tortas que se sucederam e sucedem ainda, tendo por objeto a histeria. O que não se via
ou não se vê, ainda é que, para além de toda a encenação da
histérica, para além de seus sintomas mágicos e suas reações teatrais, tudo nela é
um silêncio absoluto. O segredo que guarda dentro de si é o de abrigar o paradoxo do
feminino: o ser que o porta é constrangido a não existir senão como ator (atriz) de
seus sintomas porque é habitante de dois mundos.
Se na antigüidade, a
histeria se manifestava por crises de sufocação, na Idade Média passou a ser assediada
pelo diabo. Mais tarde, sob os holofotes da Salpetrière e da batuta do mestre Charcot,
elas foram grandes personagens para uma platéia de perplexos doutores, já no final do
século XIX. Tempos depois, languidamente estendidas no divã do doutor Freud, tiveram,
enfim, a chance de fazer falar o silêncio do seu sexo. Já os pós freudianos, sobretudo
aqueles que conseguiram fazer a leitura de Lacan, puderam descortinar parte do enigma,
ainda que pelo viés da lógica.
Às vezes, nos
perguntamos: se os sintomas são construídos histórica e culturalmente, por onde anda a
histeria hoje? Como se traveste a sua dor? Ou melhor, como se des-veste atualmente a
histeria? Basta olhar em volta. Não há mais um público seleto de pesquisadores da alma
feminina, o que há é um bando de consumidores voyeurs (de ambos os sexos) que se babam
diante da TV , da Internet ou das revistas masculinas, entre ávidos e ansiosos para
devorar algo não importa o quê que se mostre por entre as dobras do lado
avesso de sua nudez. A avidez será que o sabem? não é pelas carnes
rosadas, mas pelo que elas escondem. Ainda a pergunta eterna pela mulher...
Paulo Francis, numa de
suas irônicas tiradas, disse certa vez que os homens são eternas crianças, e que as
mulheres, bem, essas são eternamente ridículas...
Ele tem razão. O que é
o ridículo, senão o que causa o riso? Desde Freud sabemos que o riso é uma das
manifestações do inconsciente. Lá, isso sabe que é muito engraçado esse jogo de gato
e rato. O que pode ser mais risível do que as fantasias com as quais a mulher se traveste
mesmo quando se des-veste -- para dissimular para o outro e para si mesma que ela
não está lá onde ele pensa que ela está e, o que é pior ela nem sabe mesmo
onde está...
Nossa época retrata um
momento cultural sintomático. Depois da desconstrução efetuada pelas feministas, advém
uma geração que, tendo perdido o antigo referencial de mulher tradicional santa
ou puta -- não consegue encarnar a falta de uma identidade simbólica. Então, ela se
exibe nua, em todos os ângulos e posições, pois quem sabe talvez de algum olhar possa
vir uma definição desse real insuportável que não se fala porque não se sabe...
Mas, os homens acabam
engolindo crua aquela carne que não conseguem amaciar nem em suas fantasias mais
defumatórias. A antropofagia retorna triunfante na era de aquário. Quem diria?
O que salva a mulher não
vem do simbólico, quem disse isso? O símbolo é uma tentativa de restabelecer a
totalidade. Projeto fracassado, porém, porque tudo que ele consegue é instituir falhas,
fendas, equívocos por onde algo de outra ordem se entretém.
O que salva uma mulher é
o mesmo que salva as borboletas. Não a borboleta do Lacan que esta pertenceu ao
sonho de Lao Tzé. Estou falando do real, este real que é tão efêmero como a vida de
uma borboleta. Enquanto presa dentro do casulo, ela é ridícula. Um verme. Rastejante. É
preciso uma transmutação para que ela adquira asas, ganhe leveza, e se confunda com
esses seres celestiais que são as flores.
A psicanálise desvendou
o martírio do sujeito do significante; aquele que se institui somente enquanto herdeiro
de um nome de família, com tudo que isto representa. O sujeito da feminidade tem o
destino das borboletas. Num só dia ele terá de gozar por toda a eternidade. É assim com
a mulher: histérica ou masoquista, é num espasmo de dor e violência que irrompem suas
asas e ela conhece a liberdade absoluta do ser. Um segundo depois, e eis que ela retorna
ao seu papel de ridícula.
A Mulher é rara, disse
Girardoux. O que o homem desposa é a si mesmo porque há muito ele perdeu a sua
cara-metade. Houve um crime bem sucedido contra a raça fêmea. Houve uma catástrofe, e a
raça das mulheres descendentes do paleolítico e do neolítico desapareceram. A
civilização não seria o que é hoje se a raça fêmea não tivesse se misturado ao
humus da terra e sucumbido.
Lacan não estava
absolutamente errado quando disse que A Mulher não existe. O que chamamos de mulher,
hoje, é uma degenerescência, uma cópia. Sua essência não está aí. Não é o que a
histérica diz todo o tempo com suas "sufocações da matriz"?
Houve um homem que
afirmou categoricamente que a verdadeira mulher pertence a um universo completamente
estranho ao homem. É talvez a feiticeira branca de Michelet, a fada de olhos
transparentes que conhece os segredos das águas, das pedras, das plantas e dos animais.
Essa mulher é rara. Quando há uma, ela é o impasse do mundo. Sua ira é implacável.
Mas, quando ela se dá a um homem, ela reconstitui o paraíso terrestre. Por isto,
mergulhar em seu ventre devolve a castidade.
Um dia, esta mulher
existiu. Mas, quando os ídolos imemoriais foram derrubados, foi preciso destruir, junto
com eles, seu suporte: a mulher-mãe, a mulher-deusa, a mulher-fêmea, a verdadeira
mulher. A história de nossa civilização, de um ponto de vista antropológico, é a
história de um massacre contra uma cultura muito antiga, contra uma religião nativa
oriunda da noite dos tempos, onde Pã cantava e dançava nas planíces, e o povo exaltava
o princípio feminino que gerava a vida.
A Deusa-Mãe, a Grande
Ancestral, foi a primeira religião do ser humano e objeto de um culto generalizado. Do
vale do Indo à França, da Espanha às ilhas gregas, da Iugoslávia à Sibéria, da China
às Américas, existem testemunhos silenciosos e petrificados de uma religião que
cultuava a vida em todas as suas manifestações.
Qualquer teoria que não
leve em conta nossas raízes arquetípicas, será manca. A histérica sofre de
reminiscências, percebeu Freud. Porque não o perceberíamos nós? Porque continuamos a
julgar patológicas todas as manifestações de um recalque histórico da feminidade?
Dizem super-homem, não
dizem super-mulher, porque a mulher, a verdadeira mulher, é aquela que faz o homem mais
do que ele é. A ela basta-lhe existir para ser, plenamente. Assim se expressou Louis
Pawels numa certa conferência sobre o tema. E mais, diz ele, é ela quem semeia o homem:
volta a parí-lo, nele reintroduz a infância do mundo. Ela o devolve ao seu trabalho de
homem, que é elevar-se o máximo possível acima de si mesmo.
Eis porque falar do gozo
feminino é tocar no tabu de uma sexualidade identificatória. Isto fica claro na maneira
pela qual alguns discursos totalitários da ciência, da religião, da moral, da política
e mesmo da filosofia, lidam com a in-consistência do sujeito feminino: armados.
Também a poesia, quando
opera uma subversão da ordem simbólica, dá testemunho dessa outra economia pulsional
representada pela semiótica. Por isso, a poesia da língua é gozo, é pura perda do
sujeito-unário (Lacan) para sua reaparição triunfante enquanto sujeito-em-processo
(Kristeva).
"Sou nada... sou uma
ficção", diz o poeta. Dessa ficção, nós, mulheres, entendemos bem...
Maria Escolástica
Álvares da Silva
Doutora em Filosofia da Educação e Psicanalista
Autora do livro O Gozo Feminino
e-mail: mani@sigmabbs.com.br
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