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A mulher como enigma é o tema do artigo que abre a relação entre psicanálise & história em nossa revista, pelo pesquisador Clóvis Pereira dos Santos

Dúvidas podem ser tiradas pelo e-mail: psilacanise@pucsp.br



O que não querem as mulheres
            por Clóvis Pereira dos Santos

 

"Au théâtre les spectateurs veulent être surpris. Mais avec ce qu’ils attendent."
(Tristan Bernard, 1866 – 1947, Contos, Réplicas e Chistes)

 

História e o Retorno do Recalcado

Não constitui novidade alguma buscar respostas filosóficas a anseios contemporâneos em obras do clássico teatro grego. Muito sistematicamente peças da tragédia e da comédia gregas são reencenadas em palcos os mais variados e com adaptações as mais improváveis. Improváveis sim, haja vista os modernos recursos técnicos e as idiossincrasias de atores e diretores das novas escolas de interpretação; fatores alheios ao tempo original das obras. Ainda assim, freqüentemente, tais adaptações se vêm coroadas de êxito de público. De início, pensaríamos ser esse um aparente contra-senso, pois são histórias muitíssimo conhecidas. Repetitivas, mesmo. E, em contrapartida, os públicos das contemporâneas sociedades de consumo parecem, em princípio, desejar apenas o novo, o inédito. "Novo" não é mais que um imperativo do discurso neoliberal para justificar da lógica capitalista.

Foi este anseio pelo novo, sinônimo de melhor, que consolidou aquilo que alguns círculos acadêmicos (ansiosos pelo ineditismo) chamam de o sujeito pós-moderno. Todavia, a presença desse sujeito é também acusada por saberes não propriamente acadêmicos. Senão vejamos: "Seria este sujeito pós-moderno a conseqüência da ausência de sujeito, marca principal do novo materialismo, que podemos entender como tendo sido introduzido pela neurobiologia atual? Ou seria este sujeito pós-moderno um efeito da ausência de ideais o que aconteceria devido ao declínio da Função Paterna?" (Leite. M, In: Carta a Paulo, Boletim Informativo da EBP, nº 3, 2001). A questão do declínio da função paterna, metáfora para esse desconforto contemporâneo, é particularmente importante e retornaremos a ela.

As ações mundiais de 1968 (França, EUA, Brasil, China) anunciaram a conflituosa juventude da tal criatura pós-moderna, nascida no Baby Boom e cujo ingresso na maturidade se verificou nos anos 90, com a perda de identidade imposta pela crise do socialismo real e pela globalização.

No Brasil, essa euforia do novo não nasceu com esse milênio, senão que remonta aos anos do Populismo, anos de J.K. e à ansiedade salvacionista do Programa de Metas (50 anos em 5). Este sujeito suposto (antes, imposto) pós-moderno então vivenciava (vale dizer, consumia) a arquitetura da Novacap, o Cinema Novo, a Bossa Nova, as novas pedagogias. É o instante em que a televisão chega ao Brasil.

Com a globalização vieram as novas realidades econômicas, novas moedas, novas drogas (o LSD e a subjetividade psicodélica perdendo mercado para os estimulantes rápidos como o crack e o speedball), músicas eletrônicas, um novo processador Pentium X, a nova edição Windows Millenium, o novo Mac’lanche. O Novo deve ser rápido. Assim, surgem os programas de televisão com entrevistas "on line" e guerras em "real time". Diferentes planos na tela apresentam o circus da "Guerra ao Terror" enquanto a cotação do dólar, os índices Dow Jones, Ibovespa, e Nasdaq e o tempo no mundo passam em vinhetas rápidas e sempre atualizadas; é o padrão Bloomberg/ CNN/ Reuters que não distingue a TV de 33’, na sala da casa, da tela de 14’, do microcomputador no escritório. "Lofts" são desenvolvidos pela indústria imobiliária unindo quartos a escritórios: ganhar tempo é o imperativo legado pela ‘etica protestante e a lógica do capitalismo’, para evocar Weber e responsabilizar a cultura WASP.

Sintomáticas as novas formas de ensino criadas pelo neoliberalismo. Capaz de impor faculdades com novos cursos de graduação em dois anos com aulas de segunda-feira a quinta feira e avaliações pela WEB. Isso para citar apenas exemplos que, embora aparentemente aleatórios não são menos que sintomáticas.

No entanto não tratemos como novidade o discurso crítico à sociedade contemporânea ocidental. Que seja esse o traço mais visível da suspeita globalização é algo antevisto por muitos pensadores. A Escola de Frankfurt com Adorno (em particular n’A crítica da Cultura e a Sociedade, 1970) já descrevia à exaustão os malefícios dessas novas formas de organização humana. Em igual força vêm Jean Baudrillard (A Sociedade de Consumo, 1991 e A Troca Simbólica e a Morte, 1976) e a eclética obra de Edgar Morin (destaquem-se as publicações Cultura de Massas no Século XX, 1977 e O Homem e a Morte, 1970) e também Maclluhan (A Galáxia de Gutemberg, 1972). Todos tecendo sólidas objeções a este "novo" como panacéia humana.

Carlo Ginsburg, historiador italiano, ironicamente evoca a slowfood em oposição ao fastfood e proclama, como possibilidade de leitura e estudo humanamente adequados, o slow read, em oposição à superficialidade e rapidez louvadas pelo padrão WEB. Também cineastas como Buñuel, Lars Von Trier e Ettore Scola já chamaram a atenção para esse particular da refeição como espaço para o relacionamento humano, em obras como: O Discreto Charme da Burguesia, Festa de Família e O Jantar; em todas é na mesa de jantar que os argumentos adquirem sentido. O sujeito pós-moderno prescinde dessa subjetividade ritualística e recarrega seu corpo/máquina com um lanche rápido pedido pelo número.

Por caminhos distintos, esses autores apontam para os problemas endêmicos das sociedades capitalistas. Problemas, aliás, antevistos já em Marx e Weber.

Ainda que publicitários, propagandistas e marketeiros – arautos preferenciais do neoliberalismo - queiram louvar em suas sedutoras campanhas publicitárias as qualidades desse ou daquele "novo" produto capaz de dar sentido à vida porque ‘lava mais branquinho’, ou é ‘mais econômico’, ou ‘anatômico’, ou vem em ‘novos e deliciosos sabores’ ou é o ‘preferido de nove entre dez estrelas de Hollywood’, sempre algo ficará faltando. O consumidor, efetuado o consumo, vai se perceber insatisfeito. E provavelmente endividado. Outro produto aparecerá com a promessa de aniquilar mais essa angústia. Será mais uma promessa. Transformar em mercadoria o objeto (pequeno) a, preconizado em 1960 por Lacan e negar a "falta-a-ser": eis o espírito do Capitalismo.

Estabelecido que ao sujeito pós-moderno apenas a novidade deveria interessar, temos que nos haver com o paradoxo que abre este estudo, qual seja: por que alguns setores da cultura, em oposição ao ineditismo globalizante, ainda insistem em buscar seus argumentos na história clássica?

Por que "velharias" são periodicamente evocadas em uma sociedade capitalista que parece ter execrado o antigo como sinônimo de ultrapassado?

Há, com certeza, algumas expectativas essenciais na vida humana que não estão sendo satisfeitas através do consumo do novo, do tecnologicamente avançado, e que nos remetem ao passado e às reflexões que nele parecem mais claras.

Com efeito, numa análise mais acurada, notaremos que não apenas o teatro, mas toda a cultura clássica é sistematicamente revisitada por inúmeros grupos que fazem uso dos valores do mundo antigo. Exemplo óbvio está na despudorada apropriação da psicanálise sobre o mito sofoclítico de Édipo Rei. Também nas polêmicas adaptações teatrais, como em As Bacantes (de Zé Celso Martinez), que tanta atenção despertaram recentemente. Não menos representativas são as produções de Bertold Brecht e Pier Paollo Pasolini: "Notas sobre a adaptação de Antígona" e o filme "Medéia", respectivamente.

Longe de questionar a competência ou a originalidade desses autores contemporâneos devemos analisar se foi gratuita a escolha que fizeram sobre as estruturas narrativas gregas. Por que não buscaram outras alegorias (mais recentes, mais próximas das sociedades em que viveram) para subsidiar ou exemplificar seus conceitos?

Naturalmente, argumentos existem que apontam para a resposta mais simplista, qual seja: os gregos criaram personagens e mitos muito complexos. Assim, recorrer a exemplos da cultura grega é um expediente meramente didático que objetiva atingir um maior número de pessoas.

Não que a assertiva acima esteja a priori incorreta, mas parece-nos improvável que intelectos como Freud, Brecht e Pasolini, entre tantos outros, tenham limitações narrativas que subtraiam o caráter inédito de suas obras. Por suposto, Freud não recebeu o Prêmio Goethe, em julho de 1930, pela reedição de mitos históricos, senão pelo ineditismo de sua jovem ciência capaz de se apropriar das estruturas históricas e mitológicas sem a elas se submeter. Esse mesmo ineditismo que, ao aproximá-lo da filosofia, da história e da literatura, o afastou do Nobel de Medicina.

De maneira mais óbvia diremos: esses pensadores não fizeram plágios da história. Pensar de outra forma é esquecer que suas produções não se limitaram à reedição dos valores culturais clássicos, mas antes se apropriaram de uma essência comum aos clássicos e a suas próprias criações

Reside possivelmente aí um fator causal do interesse recorrente sobre as peças, os textos, a filosofia e os mitos gregos. Acaso não estaríamos perante o retorno artisticamente sublimado do recalque imposto pela cultura?

Tal fato parece-nos sobremaneira plausível, haja vista que mesmo novelas de televisão, tradicionalmente superficiais em suas abordagens, recorrem aos mitos clássicos na caracterização de suas personagens. O herói jovem que, não obstante sua origem humilde supera, com muito esforço, os preconceitos da família rica cuja filha ele ama. A mãe que seleciona as mulheres com as quais seu amado filho pode ou não conviver. O pai poderoso que deve administrar as rivalidades entre seus herdeiros na disputa pelo controle das empresas da família. E assim se sucedem, sempre previsíveis, os enredos. Alguns autores de telenovela sequer recriam os nomes de suas personagens. Por exemplo, na novela Mandala (Rede Globo), Jocasta (Vera Fischer) tem um enlace amoroso com Felipe Camargo cuja óbvia personagem não é outra senão Édipo. Ainda assim a novela foi um sucesso. Como? O enredo era mais do que conhecido.

Também são assim as produções mexicanas: repetitivas à exaustão, pobres em recursos e medíocres em direção e interpretação a tal ponto que as personagens destacam-se apenas pela hilaridade de seus nomes duplos: Carlos Antônio, Cláudia Andréia, Rodolfo Augusto, Beatriz Helena.

Mas, sejam Pícara Sonhadora, Simplesmente Maria, Maria do Bairro, Beth a Feia, Joana a Virgem ou Maria Maria fazem sucesso. E muito.

Em fim, qual é, aludindo à citação de Tristan Bernard que abre esse trabalho, essa busca essencial feita por milhões de espectadores que vão ao teatro para serem surpreendidos, mas por aquilo que já conhecem?

Naturalmente, essa resposta – caso exista - não seria fornecida objetivamente sem um sistemático conjunto de análises e pesquisas acerca do tema. Também não é essa a proposta nem são essas as competências desse texto. Por outro lado, nada nos impede de observar a questão mais detidamente em um exemplo de questão contemporânea que, n-a-t-u-r-a-l-m-e-n-t-e, já foi alvo dos pensamentos na Grécia do século de Péricles.

 

Was Will das Weib?

Descentrado, o sujeito pós-moderno busca entender-se também a partir de suas diferenças, ou seja: da questão da mulher. Trabalho, participação política, direitos femininos têm estado em discussão com crescente freqüência no cotidiano e nos meios de comunicação de massa. Para alguns defensores dos direitos da mulher parece que a questão só tem existência desde os anos da Revolução Sexual, da pílula e das aparentes liberdades sexuais que ela materializou. É como se as mulheres dos anos anteriores a década de 60 não se questionassem jamais acerca de sua condição social. Como se a busca por definições de direitos femininos apenas tivesse surgido há pouco. Há aí uma generalização deste problema. Problema que é, conforme cremos, uma característica das relações humanas desde suas origens. Ademais, colocar o questionamento da sexualidade como um tema trazido ao debate pela sociedade capitalista subverte sua essência psíquica e reduz sua dimensão histórica.

A percepção de que esse assunto já era debatido entre os gregos reforça sua importância e prova que a natureza do problema não está apontando apenas para a adoção de legislações não sexistas, mas antes, para a reflexão sobre valores culturais excludentes que vêm sendo reforçados geração após geração.

Na Polis ateniense a participação política era direito de todo cidadão, mas mulheres (bem como escravos e estrangeiros) não tinham direito à cidadania.

No Brasil, apenas na Constituição de 1934 as mulheres ganharam o direito de participar da vida política da República. Mas, o Golpe do Estado Novo, em 1937, adiou essa participação efetiva para 1946, quando G.V. - o sintomaticamente apelidado "Pai dos Pobres", ideal-do-eu nacional, equivalente ao pater-famílias grego - foi afastado do controle da nação/oikos por exigência do discurso democratizante dos EUA. O Pai dos Pobres foi assim deposto pelo discurso do capital, não obstante o desejo da população que queria a permanência de Vargas (Queremismo). Acaso não temos ai uma outra metáfora para a presentificação do declínio da função paterna?

No desenho animado então pedido aos Estúdios Disney (1937), Aurora Miranda dançava sedutora para Donald, o pato wasp-macho-americano ao som de "Você já foi à Bahia?".

A democracia populista (1946-64) implantada pelos EUA era tão artificial que não tardou a tornar-se ditadura militar (1964-85) para garantir a manutenção dos mesmos interesses do capital. Assim, também Aurora Miranda foi artificialmente tornada cidadã no desenho, quando, em verdade, não abandonara sua condição de objeto do gozo daquele pato específico. Mesmo porque, sua irmã (Carmem) era cara demais para o orçamento de um desenho que não venderia na América do Norte.

Donald aparece como descordenado e inferior a Aurora Miranda, bela e superior em trajes típicos. Esse recurso, em acordo com a Política da Boa Vizinhança de F.D. Roosevelt, busca ocultar a realidade inversa, qual fosse: ela duplamente inferiorizada por ser latina e mulher.

Negar tais dicotomias, tais diferenças, não faz mais que reforçá-las. Por isso, suspeitemos do desejo não declarado, talvez inconsciente, de quem exalta a beleza e o erotismo das mulatas brasileiras, pois é simplista a vinculação entre a subjetividade da beleza e a geografia e, ademais, mulata é termo derivado de mula, besta estéril de carga resultante do acasalamento de espécies diferentes: jumento com égua, branco com negra. Senhor com escrava, para erotizar o discurso de Hegel.

Recuperando a historicidade da questão, encontraremos em algumas visões mitológicas (Gênesis e Prometeu Acorrentado, por exemplo) a criação da mulher narrada como uma punição ou início de uma desgraça para o homem. No popular dicionário Aurélio a palavra homem ocupa quase meia lauda para mostrar sinônimos ligados ao termo. Quase todos remetem à noção de humanidade. No verbete mulher são inúmeras as analogias com inferioridade, prostituição, "a mulher considerada como ser frágil, dependente, fútil, superficial ou interesseiro" (Novo Dicionário Aurélio. Nova Fronteira 2ª ed. 18ª impressão). Se aparece no léxico, então o problema não pode ser recente, pois nos parece evidente que o tempo de formação da cultura de um povo está intimamente ligado à formação de sua língua.

Assim, não deveríamos nos surpreender com a leitura de, por exemplo, Lisístrata, de Aristófanes. Obra da comédia grega que traz a ação das mulheres como solução potencial para as guerras fratricidas das cidades-estados da Grécia. Mais ainda, se por um lado, o propósito aparente da peça é questionar a validade da guerra, por outro, ela coloca às claras as dificuldades enfrentadas pelas mulheres no cotidiano.

"Muito bem. Antigamente, suportávamos a guerra, por muito tempo, com a nossa habitual resignação, fosse o que fosse que os homens fizessem. Não nos permitíeis abrir a boca, embora nada do que fazíeis nos conviesse. Mas nós vos observávamos muito bem e, embora presas dentro de casa, compreendíamos quanta coisa idiota praticáveis. Então, embora com uma dor no coração, sorríamos com toda a doçura e perguntávamos: O que se passou hoje na Assembléia a respeito do tratado? O que tens a ver com isso? Era a resposta de meu marido. Cala-te! E eu me calava".

"E assim eu ficava quietinha em casa. Depois, quando ouvíamos falar de um projeto pior que o primeiro, dizíamos: Meu marido, como pudeste aprovar uma proposta tão idiota? Ele ficava furioso e me ameaçava: Se não ficares cuidando do teu tear, vais ficar com a cabeça doendo durante semanas. A Guerra é assunto para os homens"

(Palavras de Lisístrata in: ARISTÓFANES. Lisístrata. Trad. David Jardim Jr. Rio de Janeiro: Ediouro, 1988. P 27).

Sintomaticamente, a saída achada para o enredo de Aristófanes passa pela questão sexual. Mais diretamente por uma greve de sexos. As oposições sociais entre homens e mulheres acham, na comédia acima, um denominador comum; raiz e solução das diferenças: a sexualidade. Não sem razão, ao final da peça, atenienses e espartanos comemoram o fim de sua guerra e, por extensão, da greve imposta pelas mulheres. A cena é rica em coros que louvam o amor e... a virgindade.

As mulheres lideradas por Lisístrata lograram êxito em pôr fim as guerras. Mas não puderam e não quiseram exigir absoluta igualdade de direitos. Afinal, as mulheres não louvam a pureza e a inexperiência de seus amantes. Mas o coro masculino que finaliza a obra exalta a virgindade feminina como uma inquestionável virtude; ignorando que a lição que haviam acabado de receber fora ministrada por mulheres não virgens!

As mulheres voltaram para seus maridos, a guerra acabara. Por que, então, o último canto traz as enigmáticas palavras em favor da virgindade?

"... De Esparta os cantos"
cheios de encantos
Que lembram as nossas
Castas donzelas
Com seus cantares,
Gentis e belas,
Hinos sagrados
Erguendo aos ares.
Assim alegres e inspirados
E dançando e cantando exaltemos
Atenéia, a donzela divina, moradora
Da morada de bronze, poderosa,
Casta e fecunda, varonil, formosa,
Em todos os combates vencedora."
(Palavras do Coro dos Espartanos in: ARISTÓFANES. Lisístrata. Trad. David Jardim Jr. Rio de Janeiro: Ediouro, 1988. p. 49).

A confraternização generalizada ao final da peça parece ocultar essa questão fulcral das relações entre homens e mulheres. Se todas as personagens admitem que as mulheres estavam corretas ao exigir o fim da guerra e ninguém, nem mesmo as mulheres, ignoravam os constrangimentos da privação sexual, por que permanece uma postura de distinção masculina? Por que há a aceitação da diferença?

Certamente, Aristófanes não reflete sobre essa questão. Pois não era esse o propósito de sua obra e porque os gregos, ao contrário do sujeito pós-moderno, não se viam perseguidos pela imposição artificial da igualdade. Freud, no entanto, discorreu acerca disso em seus estudos, oferecendo possibilidades bastante abrangentes, entre as quais um estudo, datado de 1917, onde se lê:

"Para nosotros, el hecho de que el hombre conceda un supremo valor a la integridad sexual de su pretendida es algo tan natural e indiscutible que, al intentar aducir las razones en que fundamos tal juicio, pasamos por un momento de perplejidad. Pero no tardamos en advertir que la demanda de que la mujer no lheve al matrimonio el recuerdo del comercio sexual com outro hombre no es sino una ampliación consecuente del derecho exclusivo de propriedad que constituye la esencia de la monogamia, una extensión de este monopolio al pretérito de la mujer."

Como já se enunciara, Freud recorre à interpretação de mitos e histórias de povos antigos para, então, reestruturar o problema segundo o discurso psicanalítico, como segue:

"Para la explicación de este tabú de la virgindade podemos acogernos a diversos factores que expondremos rápidamente. El defloramiento de las jóvenes provoca por general efusión de sangre. Una primera tentativa de explicación puede, pues, basarse en el horror de los primitivos a la sangre, considerada por ellos como esencia de la vida. Este tabú de la sangre aparece probado por múltiples preceptores ajenos a la sexualidad. Se enlaza evidentemente a la prohibición de matar y constituye una defensa contra la sed de sangre de los hombres primitivos y sus instintos homicidas. Esta interpretación enlaza el tabú de la virginidad al tabú de la menstruación, observado casí sin excepciones. Para el primitivo, el enigmático fenómeno del sangriento flujo mensual se une inevitablemente a representaciones sádicas. Interpreta la menstruación – sobre todo la primera – como la mordedura de un espíritu animal y quizá como signo del comercio sexual con él. Algunos relatos permiten reconocer en este espíritu el de un antepasado, lhevándonos a deducir, com ayuda de otros hechos, que las adollescentes son consideradas durante el período propriedad de dicho antepasado, recayendo así sobre ellas en tales diás un riguroso tabú."

(FREUD, Sigmund. El Tabú de la Virginidad. In: Obras Completas. Trad. para o espanhol Luís López-Ballesteros y Torres. 1ª edición. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 1996. V. 3 pp. 2444 e 2446).

Por suposto, não era do conhecimento de Freud que entre os autóctones do Alto Xingu, a menarca inaugura um período de um ano de claustro ao qual as jovens devem ser submetidas antes do casamento. Nessa fase exceto por algumas mulheres próximas, não há contato com outras pessoas da aldeia. A menina ficará com a tez branqueada pela ausência de sol e deformada por laços cerimoniais colocados nos tornozelos e punhos. O casamento acontece no mesmo dia em que termina o claustro.

Freud, cuja judeidade era antes sociológica, nunca ocultou seu ateísmo. Assim, certamente, sabia da intocabilidade de mulheres menstruadas entre determinados segmentos dos judeus ortodoxos. Por certo, também conhecia os grupos xiitas e as parcelas sunitas do mundo islâmico que privam suas mulheres de qualquer participação social para além de seus pais, irmãos ou maridos. Ou seja, ele reconhecia a presença desses tabus em seu tempo, mas recorria à história para ilustrar sua ontogênese em sociedades primevas. Isso não é diferente do que fora feito em Totem e Tabu (1912/3), quando uma horda original foi convencionada para ilustrar as polêmicas possibilidades antropológicas atribuídas ao Édipo.

Que povos marcados pela antigüidade de suas culturas dominem suas mulheres, pois estas são objetos poderosamente centralizadores da sexualidade, cujo acesso ou privação delimitam a cultura com seus recalques parece compreensível para o discurso pós-moderno. Afinal, se é próprio dos antigos, se não é novo, então não é próprio à pós-modernidade.

Mas Freud, embora comparasse seu métier ao do arqueólogo, não falava da história passada senão para melhor ilustrar o presente. Para ilustrar o retorno do recalque nas práticas do homem contemporâneo.

Assim, o homem contemporâneo de Freud é produto de sua história. Dos recalques impostos ao indivíduo pela cultura. E esta é, por seu turno, ‘o estilo do recalque de cada comunidade’.

Em sua essência, essa concepção freudiana é divergente do sujeito pós-moderno, pois este último nega sua historicidade com o culto ao novo e com a superação dos problemas antigos. Quando Freud analisa a virgindade nas sociedades primitivas é da essência permanente da sexualidade feminina que ele está falando. No discurso pós-moderno essa sexualidade deveria ser inteiramente nova, livre dos grilhões do passado.

Mas seria de fato possível um tal sujeito? Pensamos que não. Argumentemos, então, em favor disso na questão específica mulher.

 

A ficção do Pós-Moderno

No caderno Cotidiano da Folha de São Paulo (13 de novembro de 2001) lemos a seguinte manchete: "Mulheres: Homicídio já é a principal causa de mortes". Em sua abertura o texto afirma que "no ano passado, segundo dados da prefeitura, assassinato superou derrame e Aids entre paulistanas na idade fértil".

Perguntada pela reportagem sobre os motivos de tal crescimento estatístico, a professora e pesquisadora Eva Blay afirma que "são motivos fúteis, nos quais a cultura do domínio e da posse está sempre presente" e "o homem vê a mulher como uma propriedade. Se não age dentro de seus planos, ele se sente no direito de agredi-la".

Pensemos em favor da pós-modernidade. Esse problema da violência e, mais genericamente, da submissão objetal da mulher, poderia estar restrito às periferias, onde os benefícios do neoliberalismo parecem relutantes em chegar. Para cidadãs consumidoras, pós-modernas, a realidade apontaria para o respeito e para a igualdade. Será mesmo?

A atriz Luma de Oliveira, famosa pela ostentação fálica de suas formas, desfilou em recente carnaval como musa sedutora em uma das grandes escolas de samba do país. Nenhuma novidade se considerarmos a catarse associada a esse evento e a quantidade de belas mulheres e homens, corpos expostos à satisfação da pulsão escópica do populacho pobre e do turista rico. Porém, num detalhe sintomático, Luma ostentava uma coleira com o nome do marido, um poderoso empresário famoso pelos negócios obsessivamente conduzidos e pelo ciúme constrangedoramente exaltado. Um sádico-anal, ou em termos pós-modernos: um empresário de sucesso, um self-made-man.

A polêmica não se estabeleceu sob uma perspectiva intelectual. Muito antes, Luma, ideal de beleza feminina, imitada por outras fêmeas da espécie que procuram industrialmente copiar aquelas medidas, apressou-se em defender seu "papel de esposa". Convidada a posar nua em revista masculina, não obstante seu explicitado interesse inicial, rejeitou obediente, curvando-se a um falo maior que o seu: aquele que indica no marido a confluência do capital e da agressão, os valores pelos quais uma mulher é tornada objeto. A rejeição ao convite da revista pornográfica não foi uma decisão da atriz, o que diz respeito ao sujeito e seu desejo, senão uma ordem do marido/patrão.

Há algo genuinamente pós-moderno aqui? Nada, exceto o discurso, que desconstruindo a historicidade do sujeito nega-lhe a atuação em sua própria vida. Luma, tomemos por certo, não leu Aristófanes e tampouco Freud. E por que leria? É bela, rica e tem um marido que a ama. Isso, que parece dar sentido a sua vida, não pode, no entanto, ser confrontado com o tempo. Caso fosse, mostraria que sua beleza é provisória, tem o tempo que a mídia der a ela; sua riqueza se constrói à custa da exclusão capitalista gerada pelas empresas do marido e que o amor dele por ela apenas se presentifica enquanto outros homens o admirarem pelo objeto jovem e belo que ele ostenta. Mas, ela, entorpecida em seus quinze minutos de fama do carpe diem pós-moderno, pode ignorar o tempo. Todavia, o tempo não faz concessão à ignorância, a quem o ignora.

Luma, assim como as muitas mulheres vitimadas pela violência explícita, é formada na ilusão da igualdade neoliberal reforçada em falas que, como para Aurora Miranda, não fazem senão ocultar o imperativo da diferença.

Essa diferença essencial, definidora da feminilidade, não se permite contemplar sem o instrumental da psicanálise, capaz de apresentar ao sujeito a complexa subjetividade de seu desejo. E também da história, capaz de atentar para os recalques da cultura passada que condicionam a sociedade presente. Mas, ambos os saberes, psicanálise e história estão para além do discurso pós-moderno. Afinal a pós-modernidade tem histericamente alardeado o fim da história (Francis Fukuyama), causado pelo "wellfare state", e a superação do inconsciente pela neurobiologia.

A prevalecer esse consenso, Luma, embora bela, será sempre objeto, não será mulher exceto no imaginário onanista. O objeto pode se acreditar pleno, a mulher, por outro lado, é não-toda. E a incompletude é o que permitiria ao ser humano transcender, superar-se a si próprio. A condição de objeto, embora cômoda, é triste.

Desdobrado a partir dai, o declínio da função paterna, engendrado pelo discurso do capital, aponta para algo além da impossibilidade de definir um papel social ao homem. Também a mulher fica dissociada de um sentido na cultura para além do valor objetal.

Estaria, pois, de acordo com os novos tempos, falar em declínio da função humana.

Clóvis Pereira dos Santos


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