O
recurso à infância
por Germán Leopoldo García
O fim da infância (1)
A tendência atual a declarar por
"finalizadas" tantas coisas levou um amigo, Jorge Alemán, a estabelecer a
experiência do fim, sem esquecer a existência de um fim da experiência. De que
experiência se trata? Daquela que pode dar uma epopéia à estrutura, do relato
particular que oferece suas ressonâncias a um corpo cuja finitude está atravessada de
infinito.
O conceito de estrutura que, desde umas décadas,
se opunha ao acontecimento, marca o fim da infância como recurso épico. As palavras, o
livro de Sartre sobre sua infância, mostra essa idade como épica em si, como um
acontecimento, mesmo que não haja nenhum acontecimento digno de nota. O insuportável da
infância se esquece, e o recurso à infância se instala nesse esquecimento: não existem
lembranças da infância, sentenciava Freud, senão recordações referidas à infância.
O fim da infância é o fim desse recurso referencial que ordenava uma política -captura
da dispersão pelo Um da identidade-, e uma ética: a singularidade como reserva, a
particularidade como semblant, e a universalidade como horizonte.
Outra coisa é a infância de Heidegger, perdida
desde o começo, e recuperada como a suposta imediatez grega que se dissolve na
separação -a rima se impõe pela pressa- entre a nominação e a enunciação:
"Para os gregos, as coisas aparecem. Para Kant, as coisas se parecem."
(Seminário de Thor, 2/9/69).
O aparecimento histórico desse
"reflexivo" introduz o subjetivo como mediação -o que para Hegel era um
avanço, mas que Heidegger questionava: "A infância grega deixa passo a uma
adolescência cartesiana: Os gregos são a humanidade que vive imediatamente na abertura
dos fenômenos pela expressa capacidade ek/stática de deixar-se dirigir à palavra
pelos fenômenos (o homem moderno, o homem cartesiano, se solum alloquendo, só se dirige
a palavra a si mesmo)". (idem)
Heidegger esquece os terrores gregos, as
complexas figurações que latem em tantos documentos, para fazer da ausência do ser e da
existência -a ausência destes termos nos gregos- um excesso. No extremo oposto, diz,
está o astronauta que faz desaparecer a lua ao tocá-la, que a substitui até
convertê-la em "um parâmetro do empreendimento técnico do homem".
Este adolescente cartesiano faz do mundo exterior
o suporte de uma relação consigo mesmo, a extensão amorfa submetida às formas do seu
pensamento. O que acontece com a infância? Lester C. Throw, na linguagem implacável da
economia, diz que os filhos necessitam dos pais, mas os pais já não necessitam dos
filhos. Não projetam em eles, não projetam com eles, não têm projetos para eles.
Como conseqüência, a infância se dissolve e
seus topoi se apagam: a dor dos meninos e das meninas encontra uma figura radical na mudez
do autismo, que algumas vezes fala e relata as vozes que povoam um silencioso horror. O
corpo infantil, por seu lado, foi posto a circular no mercado como objeto apreciado. O
menino como "brinquedo erótico" -segundo a expressão freudiana- passa do
imaginário ao gozo real, sem nenhum atenuante simbólico.
Lembrança da infância
Na Antigüidade, para memorizar um conjunto de
temas afins, recorria-se a um prédio público como espaço virtual: em uma porta a
justiça, na outra o poder, e numa terceira a glória. Dessa maneira, para dispor do
referido a qualquer destes temas, era suficiente evocar a abertura correspondente. Elas
eram topoi, lugares onde se depositavam conjuntos de significação.
Aquilo que se designa na história como
romantismo, inventou um lugar utópico, um lugar sem lugar, chamado infância. Ali tão
longe e faz tanto tempo, na infância, ocorreram grandes coisas: mediante certos volteios
deícticos, um reservatório de figuras estava disponível para cada eu atual. Uma
literatura, uma moral, uma filosofia podia ordenar-se a partir deste recurso, desta esfera
autônoma, desta palavra chave: a infância.
De alguma maneira, a psicanálise herdou e
transformou este recurso: primeiro, pela recorrência ao trauma -referente problemático-
e depois, pela constituição do fantasma traumático que organiza a imanência da
significação, lhe outorga um corpo erógeno no qual as funções e suas aberturas -a
boca, o ânus, etc- são equivalente das janelas dos prédios públicos dos antigos.
As colunas mestras do novo prédio encarnado são
chamadas por Sigmund Freud de protofantasias: a castração, que responde a pergunta pela
diferença sexual, a sedução, que responde pelo desejo, e a cena primária, que responde
pela origem do sujeito, e se soma como conclusão o chamado romance familiar.
Mas acontece que, como qualquer ficcionista sabe,
algumas vezes as coisas se saem mal: os capítulos não encaixam, o material entra num
redemoinho, a incerteza se converte em angústia. Outras vezes, a linguagem com a qual se
escreve tem um efeito patógeno sobre o romancista e os personagens se apoderam da cena,
se conduzem à sua maneira, e subvertem a relação entre o criador e sua criatura.
Segundo algumas heresias, até Deus ficou preso de sua invenção -o que explicaria a
insensatez do mundo.
Freud, que era algo menos que Deus, foi do
romance familiar ao romance histórico de Moisés, seguindo o motivo -pictórico, musical,
inconsciente- da morte do pai: antes havia passado pelo poema originário (Urdchtung), a
inquietante familiaridade (Umheimliche), e diversas figuras e caracteres.
Kinderspiele
Os jogos de infância (Kinderspiele) se
"traduzem" para o adulto em sonhos diurnos que revelam seu complexo de Édipo,
alimentam seu romance familiar e seus modos de fantasiar. A partir disso, a cisão do ego
torna possíveis dois caminhos: o primeiro, conduz à formação de sintomas, ao relato
neurótico que conhecemos mediante os casos clínicos. O outro, mais de acordo com a
auto-estima do sujeito, está a serviço de seu prazer preliminar, de seus afetos, e de
sua eventual capacidade criadora. São os caminhos divergentes da idealização neurótica
e da sublimação propiciatória. O Fort-Da, verdadeiro jogo com a linguagem, é
convertido por Jacques Lacan em paradigma inicial da entrada de cada um na dimensão
simbólica.
Na engenhosa classificação de Roger Caillois
-competição, azar, simulacro e vertigem- os jogos estão separados da infância,
acompanham a vida e, para cada um, se organizam segundo certas disposições. Se, na
competição, prima a responsabilidade pessoal, no jogo de azar a vontade se abandona ao
destino.
No simulacro, por seu lado, entram todas as
características do jogo: liberdade, convenção, suspensão do real, do espaço e do
tempo delimitado. Por último, a vertigem dilui a percepção da realidade, suas
coordenadas de tempo e espaço.
Qualquer criança conhece bem, dando voltas sobre
si mesma, a forma de aceder a um estado centrífugo de fuga e desaparição, trás o qual
o corpo só lentamente volta a encontrar sua posição, e a percepção, sua nitidez. No
adulto, a embriaguez, para além dos seus muitos esportes, provoca um estado similar. Mas,
assim como os jogos de palavras têm um limite na clínica, parece ser que a técnica do
jogo não fez avançar muito a psicanálise. Melanie Klein a usou como mediação perante
as palavras que, segundo ela, produziriam angústia nas crianças. Ao passar, sublinhemos
que, para Freud, a criança obtém prazer do disparatar. Seja angústia e/ou prazer, o
jogo entra sempre em conexão com a linguagem.
Existe alguma relação entre o recurso à
infância do adulto e os primeiros anos da vida? Nada parece indicar que o jogo, como o
postula Freud, seja o mais indicado para responder a esta pergunta.
Concepções da infância
Paul-Laurent Assoun inventariou as referências
freudianas à literatura: por ordem de importância, primeiro estão Shakespeare e Goethe,
depois Sófocles, Schiller, Cervantes, e Flaubert.
Os relatos de histeria de Freud são posteriores
a Madame Bovary, seus relatos de obsessões vêm depois de A tentação de Santo Antônio,
ambas, obras de Flaubert. Entre seus prediletos seguiam alguns mais próximos, como Heine,
Milton, Jacobsen, Ibsen, Anatole France, Schnitzler, Lichtenberg, etc.
Nossa literatura é outra, e um filósofo atento
à psicanálise como J. F. Lyotard fala da infância em termos muito diferentes: como
retorno em Joyce, como prescrição em Kafka, como desordem em Valéry, e como vozes em
Freud. Separo, de maneira deliberada, a sobrevivência em Arendt e as palavras em Sartre.
Essas infâncias, no que têm de políticas, se encontram em limites advertidos e
trabalhados por uma decisão posterior.
Não só a literatura mostra outra infância,
senão que é necessário contar com o recurso à infância da psicologia: as discussões
sobre a primeira infância, em particular, dizem mais sobre o mundo dos observadores que
sobre o mundo das crianças.
Os observadores isto já foi dito-
descuidam as experiências negativas da infância, e também idealizam a vida das mulheres
que têm filhos.
Charles Darwin, durante a década de 1870,
publicou duas importantes análises das expressões da criança pequena. As observações
de Darwin deram lugar a duas teorias sobre a dinâmica mental: na primeira, as crianças
nascem com faculdades mentais ou "instintos" inatos e, na segunda, as
características mentais seriam hábitos construídos sobre a associação entre
acontecimentos e reações que ocorreram simultaneamente no passado (Bem S. Bradley,
1989). A segunda destas teorias está na raiz do associacionismo e do condutismo. O
associacionismo, surgido na Inglaterra no século XVIII, teve incidência tanto em Darwin
como em Freud.
Os cientistas que estudam as crianças -escreve
Bradley- não se limitam a medir e calcular, são partícipes do debate sobre a condição
moral da vida humana, condição que retroage no tempo através de séculos de poesia e de
ensino religioso.
A imagem da primeira infância como paraíso que
acompanha a "maldição do sexo" reaparece nas diferentes vertentes da
psicologia: "Desde a publicação de A origem das espécies até o final do século
XIX, a muitos pensadores -escreve Clarke Stewart- lhes intrigava a possibilidade de
desenhar paralelismos entre a criança e o animal, entre o humano primitivo e a criança,
entre as primeiras fases da história da humanidade e o desenvolvimento infantil.
Considerava-se o ser humano em desenvolvimento como um museu natural da história humana.
Deste modo, pensava-se que o desenvolvimento da
criança revelava o desenvolvimento da espécie."
Freud estilizou esta herança em seu conceito de
repetição e, mediante a introdução das identificações, converteu o ego em um
cemitério povoado de restos de objetos perdidos (modelo, melancolia) e reforçou o
asserto com um id que era o resultante de egos anteriores.
O ego como imagem do corpo se deve a isso -os
antepassados- que, mediante o superego, impõem os desígnios da espécie ao indivíduo.
Ao invés, Darwin se interessava pela
transmissão de hábitos, sentimentos e condutas, de uma geração para outra. Leu, para
isto, seu avô Erasmus Darwin (1731-1802), que tinha escrito sobre a mudança nas
espécies. Também investigou ações inconscientes, fez referência aos sonhos, e
descreveu fenômenos mentais como a "dupla consciência" e outros transtornos
ilustrados pelos estudos de seu pai, que era médico. Em sua Autobiografia, registrou as
primeiras lembranças de sua infância e outros dados introspectivos. Darwin estudou a
diferença entre seu filho e os macacos na frente da imagem no espelho: aos quatro meses e
meio, seu filho sorria, desfrutava de sua imagem; enquanto que os macacos -experimentou
com vários- descobriam que era uma imagem, se chateavam e não queriam olhar de novo.
Poderia continuar por ai, mas deixaremos Darwin para outra ocasião.
A estampagem associacionista ultrapassa Darwin, e
seus postulados seriam compartidos por Pavlov, Watson e Skinner, com a diferença de que
os "processos mentais" se converteram em condutas. No entanto, assim como os
associacionistas, explicavam estas condutas por uma história anterior de prêmios e
castigos.
"A demonstração -escreve Bradley- de que a
conduta infantil se podia moldar pela experiência de um modo simples e radical,
proporcionava uma parábola muito clara das modificações radicais na sociedade que
acreditavam possíveis como resultados de mudanças educativas desenhadas
cientificamente..."
Os estados da infância e suas transformações
recapitulam a história da humanidade, mas também fazem uma alegoria da sociedade.
Do jogo à linguagem
A primeira infância ilustrava, para os
associacionistas, a certeza de que na consciência se produziam conexões como
conseqüência de coisas que ocorriam simultaneamente no tempo e no espaço. Suas
campanhas de reforma social eram uma extensão, mediante a educação, desta assertiva.
Os condutistas se valeram de observações da
primeira infância para postular a aprendizagem como o fator decisivo na constituição do
caráter adulto.
Conduta verbal, de Skinner, propõe que a
linguagem é um produto que mostra como pode moldar-se a conduta mediante prêmios e
castigos. A conduta verbal se consegue "através da mediação das necessidades de
outras pessoas."
A recensão de Chomsky ao livro de Skinner é
terminante: "O que se esperava do psicólogo era alguma indicação sobre como se
pode explicar ou clarificar em termos das noções desenvolvidas pela experimentação e
observação cuidadosas, a descrição superficial e informal do comportamento diário
próprio da linguagem coloquial ou talvez substituí-la em termos de um esquema melhor.
Uma simples revisão terminológica, na qual um termo tomado do laboratório se usa com a
total imprecisão da linguagem corrente, não tem nenhum interesse."
O retorno da discussão ao campo da linguagem
propõe refutações na psicologia:
1. Não se pode entender algo das crianças
mediante a observação de suas condutas, sem recorrer a suas próprias experiências, sem
valer-se da linguagem com que modalizam suas respostas.
2. Isto implica em deixar de lado a linguagem
como instrumento, e privilegiar o que revela do ser que fala.
3. Abandonar a pretensão de que certas condutas,
como o olhar e o choro, possuem um valor isolado da enunciação subjetiva em que se
inserem.
4. Abandonar a crença de que podemos entender,
mediante algum mecanismo cerebral, ou mediante qualquer tipo de empatia.
5. Atender ao fato de que os "relatos"
sobre a infância possuem a impressão das circunstâncias históricas de quem os realizam
(de Darwin a Chomsky, passando por Piaget, os investigadores valeram-se de seus filhos
para extrair conclusões).
A dimensão do parlêtre -do ser que é porque
fala-introduz o que o poeta Oliverio Girondo disse numa palavra inventada com a troca de
uma só letra: a gociferação.
Essa gociferação determina que a avaliação
"empírica" da infância leve a marca ética que não poderia apagar o método
(diferentes técnicas produzem diferentes descobrimentos). As conseqüências políticas
-redução da diversidade de crianças a uma única infância- são imediatas, e
repercutem no âmbito jurídico e social. Por algo se compara o trabalho dos psicólogos
-deixo de lado a psicanálise, desde onde estou falando- com o dos advogados. O psicólogo
argumenta com uma infância que foi inventada como um recurso teórico, nem sempre dando
atenção ao desejo da criança que gostaria de superar essa etapa da sua vida, que
imagina ser grande, que tem terrores noturnos, e se angustia com fantasias que não
controla.
Inferno e/ou paraíso
A infância com seus traços infernais e seu
reverso paradisíaco não "traduz" a experiência das crianças, senão o
recurso adulto ao passado histórico e pessoal. A psicanálise, em seu recorrer à
infância, voltou a dar força a figura de séculos, mediante a estratégia do simbolismo
-inclusive, na mesma discussão sobre o conceito de símbolo. O paraíso originário de
Freud, o inferno primário de Klein, a oscilação entre um e outro (corpo despedaçado,
jubilo) do espelho de Lacan, organizam essa persistência.
A reversão do tempo, típica dos contos de fada,
encontra-se na versão comum da regressão. O tempo irreversível de qualquer relato
adquire o nome de "castração", etc.
Uma meninice sem infância é o fim desses topoi,
mas -como aquele homem que não teve infância das histórias em quadrinhos- pode ser o
começo de um novo saber, de um novo amor com outros recursos.
Esta ausência de infância, de neurose infantil
no adulto, anuncia-se nos relatos de alguns psicóticos, que vão do presente absoluto da
certeza ao presságio de uma destruição futura, na qual o adulto hegeliano parece deixar
atrás a infância grega de Heidegger e a adolescência reflexiva de Descartes. Mas uma
meninice sem infância poderá inventar recursos que não podemos imaginar agora.
O homem sem infância tampouco é adulto.
Notas:
1. O valor científico da observação dos bebês
é retórico. Permite aos cientistas tirar conclusões que não seriam capazes de tirar de
outra maneira. - Ben S.Bradley -1989.