O Santo Remédio
por Mario Pujó
"A psiquiatria entra na medicina geral
sobre a base de que a medicina geral entra nela mesma inteiramente no dinamismo
farmacêutico". Jacques Lacan (10 de novembro de 1967)
Faz já vários anos a publicidade de um dos mais
conhecidos neurolépticos do mercado que incluía, no prospecto de apresentação, algumas
das mais belas pinturas da história da sublimação. Ao lado de seus típicos traços
impressionistas, uma legenda rezava em pálidos caracteres: Se Van Gogh tivesse conhecido
este medicamento não teria pintado estes quadros. O que não pode menos que deixar-nos
estupefatos. E se assim fosse?
Pouco tempo depois, os jornais de Londres faziam
eco do pagamento de uma fortuna várias vezes milionária por Os girassóis, precisamente
um daqueles quadros. Desproporção que introduz já uma ambigüidade em relação ao tema
do valor, e nos lembra que a obra de arte consegue capturar a presença de um objeto cuja
incomensurabilidade desborda a lógica do intercâmbio, e cuja apropriação se revela
como esquiva a toda tentativa sensata de contabilização. Em todos os casos, o olhar do
pintor atinge, na sociedade, critérios e parâmetros que lhe são particulares, e
reconhecem traços de exceção. Isto leva, então, a perguntar-nos: A valorização desse
olhar, para os laboratórios de especialidades medicinais, seria idêntica à dos
especialistas médicos?
Pergunta difícil, mas central, porque alude ao
núcleo da prática psiquiátrica atual, ao interrogar o sentido de sua função na
sociedade. Mas que introduz outra, necessariamente anterior: seria legítimo, sequer
possível, abordar a questão da medicação desde o ponto de vista instaurado pela
psicanálise?
Duas perspectivas se impõem de imediato. A
primeira é da ordem de uma constatação. Se o verbo medicar descreve, na atualidade, o
que se aceita como o desprendimento do próprio ato médico, - a ponto de que o
medicamento designa o objeto prescrito nesse ato -, a invenção do método psicanalítico
por parte de Freud supõe colocar em suspenso toda a intermediação com o paciente por
fora da liberdade conferida à sua palavra. O progressivo abandono das técnicas
hipnótica e catártica, cedendo seu lugar às associações espontâneas, reclama o
afastamento prévio de toda manobra ou prescrição sobre o corpo do doente, e a
supressão de qualquer mediação instrumental entre o "médico" e seu paciente.
O que funda, por si mesmo, uma extraterritorialidade da psicanálise a respeito da
medicação, como uma questão de princípios.
A segunda, muito mais complexa, alude à difícil
relação que mantém a psicanálise com a medicina, particularmente conflitiva para a
própria psicanálise. O estatuto da prática do psicanalista e o da sua identidade social
tendem a ser assimilados pelos representantes médicos como pertencendo ao terreno de sua
especialidade, introduzindo conseqüentemente a pergunta pela legalidade de seu
exercício. A tal ponto de incidir decisivamente na formação dos analistas, e situada na
origem de grande parte das fraturas de suas instituições. Não é por acaso que a figura
do "médico do espírito" predomina sobre a do "pastor leigo de
almas", mesmo quando Freud insistia reiteradamente em desenhar, entre ambas, o perfil
do psicanalista perante a sociedade. Sua razão deve ser encontrada em algo inerente a seu
próprio campo, à sua lógica e seu ordenamento, mais que à uma exigência de um papel
social que viria desde o exterior.
Se a relação do psicanalista com a letra dos
escritos dos mestres fundadores pode ter, às vezes, um caráter sagrado, e os conflitos
transferenciais que se aninham em seus agrupamentos e inclinam a balança de suas rupturas
tendem a resolver-se em termos de uma questão de fé, é necessário atravessar o aspecto
iniciatório que adquirem seus dogmas e os rituais que organizam seus reconhecimentos,
para perceber que não é a religião a que modela sua práxis, senão uma vocação de
formalização que, ao delimitar seu campo, reconhece a ciência como sua principal
referência. Exigência que, lembremos, acompanha também o trânsito da figura do médico
na modernidade.
Quarenta anos separam os textos que Freud e Lacan
dedicam, sob o título de Psicanálise e medicina, à aproximação dos alcances de sua
mútua relação. Homonímia que permite verificar o giro e a transformação, o salto e a
continuidade, o efeito de substituição e a criação de sentido que institui a
associação do nome de Lacan ao de Freud. Em 1926 (1), argumentando em defesa de seu
amigo e discípulo Theodor Reik, Freud preferia preservar e incentivar a ampliação da
análise profana, sublinhando a inconveniência de reservar sua prática e restringir sua
doutrina a uma mera especialização médica. Estava em jogo a sorte da psicanálise, a
possibilidade de sua extinção, ou sua sobrevivência. Por sua parte, convidado a
participar de uma mesa redonda convocada pelo Colégio de Medicina em 1966 (2), Lacan
simplesmente inverteu os termos do problema.
Era sua proposta duplamente pessoal; a que se
desprende de sua própria história, posto que falava, nos lembra, como médico, -e como
um que nunca deixou de sê-lo verdadeiramente-, ao mesmo tempo que afirmava sua particular
posição entre os psicanalistas. Retomemos sucintamente o fio de sua argumentação. A
função do médico, sua figura, entanto forma parte inexorável de tal função, excede
em muito o tempo e o espaço do advento do discurso da ciência; emergência que manifesta
o que, no mínimo, se pode ser apontado como um atraso. A incorporação dos métodos
experimentais de observação e investigação não pode simplesmente conceber-se como o
resultado do próprio desenvolvimento do conhecimento médico, senão como uma resposta
forçada pelas exigências de um mundo em cuja escala planetária a ciência, pelos seus
efeitos, já estabeleceu como básico e universal o direito de cada cidadão à saúde.
Uma saúde que, ao devir objeto de uma
organização mundial, não escapa em seus parâmetros às normas utilitárias da
produtividade.
Não são seus estudos nem sua capacitação,
muito menos os instrumentos que a ciência põe ao alcance de suas mãos, o que configura
no médico a especificidade de sua posição; é a demanda que o doente lhe dirige -e por
esta demanda prévia como tal aos elementos de que dispõe para responder em um
determinado momento histórico-, a que lhe confere seu prestígio e sua autoridade. Mas,
ao decodificar o que se lhe pede, descuida talvez o que de essencial se aninha nessa
demanda. Deixa de lado as duas dimensões que constituem o fundamento do descobrimento
freudiano: a articulação do desejo, e a irredutibilidade do gozo.
Porque, por um lado, o que se pede não é em
absoluto idêntico ao que se deseja e, inclusive, pode chegar a ser diametralmente oposto;
por outro, o corpo não coincide só com a sua extensão. Além daquilo que se pode medir
e radiografar, o corpo é algo feito para gozar, para gozar de si mesmo. Como desconhecer
essa dimensão mortífera do gozo que não se limita à harmonia de algum equilíbrio,
senão que implica, pelo contrário, seu excesso e seu forçamento? A possibilidade de uma
satisfação na doença, e de um além do pedido de sua eliminação que poderia pretender
na realidade sua instalação definitiva, supera em muito o discurso de um certo ideal de
bem-estar.
Transcrevamos a surpreendente conclusão de
Lacan: Se o médico deve continuar sendo algo que já não poderia ser a herança de sua
antiga função, que era uma função sagrada, seria, para mim, continuar e manter em sua
própria vida o descobrimento de Freud, Sempre me considerei como missionário do médico:
a função do médico como a do sacerdote, e não se limita ao tempo que se lhe dedica.
(3)
Nota-se a diferença que há entre defender uma
causa, e expô-la já como ganha. A mesma distância que separa salvaguardar o desempenho
no médico da psicanálise, de questionar a possibilidade de um exercício não
psicanalítico da medicina.
Seria então demasiado aventurado afirmar que o
impacto do discurso da ciência, seu advento histórico contemporâneo, produz sobre a
posição sagrada do médico uma degradação que, ao instituí-lo como agente
distribuidor de alguns de seus produtos, deixa um resto, herdeiro daquela posição onde
reconhecemos a figura do psicanalista?
Mas é no terreno em que o mental devém âmbito
apropriado à pergunta pela saúde onde se manifesta, de modo mais palpável, a brutal
incidência da farmacologia como instalação do discurso da ciência, sobre a vacilante
posição do médico. As grandes classificações nosográficas das primeiras décadas de
nosso século acusam seu impacto mais recente. Fundadas na agudeza da observação, as
descrições semiológicas se dissolvem progressivamente em benefício de uma clínica
edificada ao redor da resposta à medicação. Os quadros e entidades da psiquiatria
magistral dão lugar assim à síndrome como coleção dinâmica de signos, cujo
agrupamento descobre seus princípios mais sólidos nos prospectos dos laboratórios e na
propaganda dos seus visitadores. Não ficando, para a psiquiatria, outro guia mais seguro
que a inevitável referência a uma intangível "normalidade".
Trata-se de fazer entrar um doente mental numa
norma, o que de fato não significa simplesmente promover seu retorno à homeostase, à
redução limitada das tensões que governam o princípio do prazer; pelo contrário,
manifesta a miúdo um forçamento que recorre eventualmente a francas manifestações de
rudeza. Violência nunca gratuita, que toma regularmente uma direção bem precisa, sempre
de acordo com o discurso que atende ao imperativo de que as coisas funcionem bem.
É talvez esta a verdade exibida na psicose, sua
ostensível resistência à coerção do poder, o que suscita a fascinação do
anti-psiquiatra. A mesma que promove sua insurreição e o encaminha sem saída na
direção de uma identificação reivindicatória com o louco. (4)
A anti-psiquiatria lembra assim que a noção de
loucura repousa inequivocamente em um critério social de adaptação. Mas se esquece que
não se trata, na esquizofrenia -retomada como entidade privilegiada-, tão somente do
domínio do grupo e das normas sobre a contestação do indivíduo; nem se mitiga sequer
sua condição pela solidariedade romântica que desperta na sua marginalidade. A psicose
evidencia uma questão de estrutura que, além de uma provavelmente justificada rebelião
do sujeito contra o arbitrário da autoridade, supõe mais radicalmente a rejeição da
impostura paterna, aquela que pode dar suporte ao significante do outro como lugar da lei
no Outro como lugar do significante (5).
Além disso, ao desmascarar o apenas velado
estatuto da camisa de força química da medicação, e denunciar sua função social de
repressão, não alega menos que em favor de sua eficácia; à qual não é difícil
saudar como terapêutica, senão para o "doente", pelo menos para seu entorno.
Desconhece, então, uma articulação que
queríamos sublinhar como essencial: a medicação, habitualmente tolerada de bom grau
pelos doentes, é muitas vezes reclamada ou exigida; e que existe uma relação
transcultural com a droga que se remonta ao ancestral, onde o objeto terapêutico
participa, através das épocas, de um caráter sagrado e mágico.
Não é difícil reconhecer este aspecto ali onde
a inspiração esotérica é francamente confessada, ou veladamente admitida; em
particular, nas cerimônias ou rituais que envolvem algum personagem que, por seu
proceder, é considerado iniciado ou oficiante de alguma revelação, tenha a forma do
sacerdote, do adivinho ou do curandeiro. A apropriação de um objeto, a ingestão de uma
substância, a disposição de alguma manobra conjurada, formam parte dos seus
procedimentos habituais; os mesmos com os que se promete recobrar certo equilíbrio que,
por alguma forma de maldade ou ignorância, própria ou alheia, atual ou pretérita, se
considera ameaçado.
Destaquemos sumariamente que assim como o
sacramento institui na incorporação do pão bendito na comunhão com Cristo, a
recuperação da harmonia com a lei de Deus, a natureza ou a ordem universal encontra, nos
ervanários e farmácias, uma manifestação mais pagã. A erva medicinal, as poções, os
filtros, as infusões ou os florais de Bach, participam desta mesma tentativa que a
ilusão unificadora da homeopatia eleva a seu grau mais elaborado. Esperança do encontro
de um objeto ou substância cujo contato ou assimilação restabeleceria uma completude
original desejada, e de que a sensação de eternidade ou o sentimento oceânico seriam
somente ressalvas. Sentimentos que, é bom lembrar, Freud discutia com Romain Rolland,
sobre sua pertinência como fundamentos de toda inclinação religiosa. (6)
O próprio percurso de Freud não é alheio a
esta busca. Seu apressado entusiasmo ante o encontro do que considerava uma verdadeira
panacéia situa o que sue biógrafo Ernst Jones soube denominar o episódio da cocaína. A
descoberta de suas propriedades nocivas não só acarretou uma tremenda desilusão, como
ameaçou envolver num escândalo sua figura e seu prestígio. Decepção auspiciosa, o
abandono do emprego da cocaína acabou constituindo o antecedente mais imediato da
progressiva invenção da psicanálise (7).
Num antigo trabalho dedicado precisamente ao
objeto médico, lido na Escola Freudiana de Paris, referindo-se a esta reviravolta
freudiana, Pierre Benoit concluia: Este -o procedimento analítico- se demonstrará com
rapidez como uma prática cujo processo se compromete precisamente na não resposta do
praticante à demanda inicial do paciente de ser curado, como havia sido sempre a regra,
por uma prescrição. Já que propõe a seus doentes renunciar, como ele mesmo poucos anos
antes, ao objeto imediato de suas demandas, não estou longe de pensar como o ato que,
frente ao sofrimento do homem, suspendeu pela primeira vez todo recurso ao objeto
terapêutico num consultório médico, teria sido o ato analítico originário. E acredito
que, este mesmo ato, sob formas diversas, retomamos desde o início e ao largo de uma
análise.
Graças ao que, tendo descartado o objeto
ancestral da transferência do doente com a medicina, a transferência analítica pode
produzir-se e conduzir ao desvelo de outro objeto, e logo outro, ainda até que os véus
últimos terminem por não recobrir mais que fantasmas, inclusive fantasmas ausentes. Até
a evidência última do fato de que o acme da busca infinita e sempre indefinível do
objeto não conduz a outra coisa mais que a seu eclipse, pois desta busca, o objeto é a
sua causa e não o seu fim. (8) Insinua-se assim que era pela via da suspensão dos
diversos modos de imaginação do objeto o que permitiria isolar, numa análise, seu
estatuto real como causa do desejo.
Mas é necessário sublinhar, ainda, que o
dispositivo analítico, ao ausentar todo outro instrumento de mediação, não deixa,
segundo uma antiga ironia de Lacan, ao analisado, senão um único objeto, se nos permitem
a expressão, para levar à boca, e é o analista. (9) Reside aí o verdadeiro alcance da
abstinência do analista, quem não oferece mais que o oco de seu desejo para que o desejo
do analisante se realize como desejo do Outro. (10)
São outras as limitações, as urgências que
urgem a prática do psiquiatra, organizada, pelo contrário, inteiramente ao redor da
prescrição de um remédio. Mas é a luz das estruturas elucidadas a partir da cura
analítica que aquela pode encontrar suas razões. Assinalaremos, em primeiro lugar, uma
evidência: a notável variabilidade de reações individuais ante os efeitos bioquímicos
de uma droga não se esgota nas meras diferenças de seu processamento metabólico. A
mesma medicação indicada por psiquiatras diferentes para um mesmo paciente, ou em
momentos diferentes por um mesmo psiquiatra, pode alcançar efeitos perfeitamente
distintos; assim como a ingestão de um produto quimicamente anódino costuma produzir
resultados inexplicáveis.
A noção de efeito placebo com a qual se
pretende circunscrever seus mistérios não deixa de constituir um enigma. Nunca ignorado
pelos laboratórios em seus testes estatísticos de validação, não basta referir sua
existência a uma não menos indecifrável capacidade de sugestão generalizada. Seria
tentador demarcar sua operatória às vicissitudes da relação do médico com seu
paciente; o problema se reduziria, então a uma questão de rapport. No entanto, nos
parece mais certo levar em consideração um rapport na realidade muito mais amplo, como o
que liga o sujeito ao contexto simbólico no qual se constitui, e que sua história
familiar veicula. Porque nossa cultura não saberia escapar à dinâmica de uma eficácia
simbólica do mito, tal como Lévi-Strauss a articula ao esclarecer as operações bem
sucedidas das práticas shamânicas (11).
A mesma que procedimentos imemoriais como a
acupuntura demonstram, ainda que por fora dos limites de uma crença claramente
compartida.
Se uma prática não necessita ser esclarecida
para ser eficaz, devemos admitir que é no campo delimitado pela instalação do mito
científico, recuperado como próprio pela psiquiatria, onde se situa a eficácia do
psicofármaco; é ali onde seus resultados são medidos e contabilizados. Vale dizer, ali
onde o cientista opera muito mais por sua autoridade que pelo saber que é capaz de
explicitar; e onde o ignorado, por imprevisível, só é ponderado como margem de erro.
Dupla perspectiva da busca secular do objeto
perdido e da eficácia simbólica do mito, que delimitam um território inelutável ao
desdobramento de toda reflexão sobre o caráter terapêutico do remédio. Coordenadas
que, no final das contas, a relação do médico com o paciente não faz mais que
atualizar em cada oportunidade. Mas a simpática figura do bruxo diplomado pela ciência
-que caricatura de bom grau ao psiquiatra no inconsiderado de sua própria posição- não
tarda em encontrar suas limitações. Tropeça rápido com um fato real que reconhece como
fundamento o ensaio e o erro de sua aprendizagem: o imediatismo químico de certas
substâncias, cujos efeitos são verificáveis com notável regularidade nos organismos
superiores.
Ao que não é difícil objetar que uma repentina
sedação -descrita como uma situação de insensibilização psíquica-, uma variação
súbita de humor, ou uma indução precipitada do sono, não impõem, por si mesmas,
benefício terapêutico algum. Assinalam sem dúvida uma mudança de estado, um limite,
uma fronteira, que um sem número de situações extremas podem, inclusive, recomendar
como imprescindíveis. Mas não constituem mais que pegadas, marcas, desprovidas como tais
de sentido, e chamam por isso a ser significadas. Poderão devir um castigo ou uma
benção, a confirmação da doença ou o primeiro passo em direção a seu
restabelecimento, segundo uma seqüência precisa onde a relação com quem a introduz
não é um ingrediente menor.
Contudo, trata-se de uma oportunidade; a
possibilidade de intervir num momento em que o sofrimento, sob forma de queixa, faz seu
chamado ao Outro. Demanda que, subjetivada ou não, veiculada às vezes pelo próprio
sujeito, seu entorno familiar, o vizinho ou a polícia, se encarrega sempre de se fazer
ouvir. E abre assim a via possível para uma reformulação da posição do sujeito em
relação ao contexto simbólico do qual participa como agente e como vítima; a
possibilidade de sua recolocação frente a uma satisfação que se demonstra assaz
intolerável. Só que, ao antecipar a medicação como resposta, costuma-se fechar
temporária ou definitivamente a porta ao desdobramento de uma pergunta que, perante o
desespero, busque encontrar um suporte.
A habitual duplicidade de atenção de certos
pacientes, entre aquele que ministra e controla a medicação e aquele que conduz a
psicoterapia, parece reconhecer efetivamente algum aspecto desta dificuldade. Mas não a
resolve, e introduz talvez outras novas, entre as quais a dualidade da autoridade não
constitui um obstáculo menor. Indiquemos, de todos modos, como linha de demarcação que,
assim como uma psicanálise não poderia prescrever-se, só o psicanalista permanece em
posição de sugerir ao psiquiatra, o benefício, a oportunidade, e o sentido de sua
prescrição.
É inegável que um enorme leque de
circunstâncias aconselham o emprego de psicofármacos como um recurso imediato e efetivo,
e inocultável seu valor em situações onde pode contribuir para criar as condições em
que uma palavra seja dita e escutada. Questão de graus, não se escapa aqui ao rigor de
uma lógica singular do caso por caso. Mas é este o critério que guia o cotidiano do
psiquiatra? É em direção a isso que se encaminha sua formação?
Se Bion pode afirmar que o médico, ao
prescrever, se prescreve a si mesmo, dando toda relevância à relação com o doente, as
invocáveis razões de risco, de urgência, os limites da humana tolerância favorecem,
para o psiquiatra, sua consentida obrigação de prescrever para poder subtrair-se.
Poderia ser exigida a extrema renúncia que supõe pospor sua missão de curar, para
propor sua presença e oferecer sua escuta à demanda que lhe é dirigida? Seria, por
acaso, legítimo reclamar do médico a entrega que supõe não dar nada, não dar senão o
que não tem, quer dizer, o que lhe falta? É de acordo com tal disponibilidade a medida
de entrega que regula o bom sentido do exercício liberal de uma profissão? Concluiremos
que sim, se é um médico verdadeiro, isto é, alguém capaz de integrar, manter e
continuar em sua própria vida o descobrimento freudiano.
Referências bibliográficas:
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In Obras Completas - Madrid, 1968.
02. Lacan - Psychanalyse et médecine.
Lettres de l´école Nº 1, Paris. Versão castelhana: J. Lacan. Intervenciones y textos -
Manantial, Buenos Aires, 1985.
03. Ronald Laing. Questionamento da
família. Paidós, Bs. As. Ver igualmente R.Laing e D.Cooper. Razão e violência.
D.Cooper. A morte da família. D. Cooper. Psiquiatria e Anti-psiquiatria.
04. Jacques Lacan. De uma questão
preliminar a todo tratamento possível da psicose. Escritos II. S.XXI. México, 1971.
05. S.Freud. O mal-estar na civilização.
O . C.T.III. B.N., Madri, 1968.
06. M. Pujó; E.Kasimierski; O.
Cesarotto; L.Palumbo; R.Scavino. Um affaire freudiano. Em S.Freud.
Escritos inéditos - Escritos sobre a cocaína -. Bs. As., 1977.
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Thérapeutique-Psychanalyse-Objet. Lettres de lécole Nº 6 e P.Benoit. De la
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Lettres de l´école Nº 9.
08. Jacques Lacan. La dirección de la
cura y los princípios de su poder. In Leitura estruturalista de Freud Siglo XXI,
México, 1971
09. Jacques Lacan. Séminaire. Livre VIII.
Le transfert. Seuil, Paris, 1991.
10. Lévi-Strauss - A eficácia
simbólica. In Antropologia estrutural. Eudeba, Buenos Aires, 1970.
(*) Os mais interessantes preventivos do
sofrimento são os que tratam de influir sobre nosso próprio organismo porque, em última
instância, todo sofrimento não é mais que uma sensação, só existe enquanto o
sentimos, e unicamente o sentimos em virtude de certas disposições de nosso organismo. O
mais cru, mas também o mais efetivo dos métodos destinados a produzir tal modificação
é o químico, a intoxicação. Não espanta que ninguém haja compreendido seu mecanismo,
mas é evidente que existem certas substâncias estranhas ao organismo cuja presença no
sangue e nos tecidos nos proporcionam diretamente sensações prazerosas, modificando,
para além disto, as condições de nossa sensibilidade, de maneira tal que nos impedem de
perceber estímulos desagradáveis. Sigmund Freud - Mal-estar na civilização.
(**) A psicanálise é o reino da palavra, não há outros
remédios. Jacques Lacan - Roma, 1975.