O Amor na Canção
Uma Leitura Semiótico-Psicanalítica
por Deise Mirian
RossiO
presente trabalho consiste na articulação entre música e psicanálise. Capturamos, num
grupo de seis canções da música popular brasileira, os significantes verbais/sonoros
que constituem o amor nos três registros lacanianos o Imaginário, o Simbólico e
o Real. Partimos da hipótese de que eles estão aptos a produzirem determinados efeitos
de escuta: o gozo, dor nostálgica, o encontro com o objeto perdido, paralisia da
inteligência, felicidade e prazer. Estes efeitos foram possíveis devido à explosão da
nota-azul. Esta nota musical é um significante que foi descolada das canções a partir
de um sujeito ouvinte que se enganchou nessa estrutura.
Para aferir a nossa
hipótese, analisamos os significantes verbais e alguns significantes musicais que
participam da constituição do conceito do amor nos três registros. E concluímos que
são eles que podem capturar o sujeito transformando-o num sujeito ouvinte amoroso que
retorna, depois da explosão da nota-azul, de seu estado de desvanecimento. Ao retornar, o
sujeito ouvinte é convocado a responder e se dar conta de sua falta. E são esses
significantes que são co-responsáveis pelos efeitos de escuta. Sendo assim, a canção
de amor iconiza as agruras do amar porque possibilita uma experiência similar.
A partir desse
deslocamento do sujeito para um sujeito ouvinte, esses significantes verbais e sonoros se
transformam em signo do sujeito. Esse engate entre canção de amor e o sujeito ouvinte
fez nascer a possibilidade e a necessidade de pensarmos a pulsão da escuta. Nessas
coordenadas sinalizamos que, antes da constituição do eu, os sons prepararam o campo
para o desenvolvimento e o nascimento do sujeito. Chamamos este significante de som
primordial. Nosso ouvido foi erogenizado por ele. Algo dele se faz presente na escuta
musical.
*
Escrever sobre o amor é
duplamente difícil. Primeiramente, pela complexidade com que este tema se reveste.
Segundo porque escrever sobre ele implica uma impossibilidade: o limite do próprio
discurso; o signo está sempre na esteira do objeto. O signo fisga algo do objeto, mas
não é o objeto. Nosso desafio é ir um pouco mais além. Afinal de contas o amor nasceu
na literatura; portanto, é filho da linguagem. Nossa escrita quer capturar, num grupo de
canções da música popular brasileira, os signos amorosos. Para tanto, utilizamos alguns
conceitos da teoria psicanalítica para analisar o fenômeno amoroso nesse grupo de
canções.
Precisamente articulamos
os três registros o Simbólico, o Imaginário e o Real como operadores de
leitura e de escuta dessas canções. Pensar o amor através dos três registros é
construirmos um recorte. Esses registros foram articulados dentro do saber psicanalítico
desenvolvido pelo francês Jacques Lacan, que retomou a vasta teoria deixada por Sigmund
Freud. A música não é objeto de estudo da psicanálise, mas o prazer que ela
proporciona ao sujeito a coloca como um objeto possível de análise.
Porém, não partimos do
levantamento da teoria para aplicarmos aleatoriamente à música. É na estrutura da
letra/som da canção que se justifica a necessidade de usar a teoria psicanalítica. Não
é nosso intuito psicanalisar as canções. Se a canção produz um efeito de gozo ou
prazer da escuta e uma certa satisfação, isto significa que há um investimento
pulsional no que se ouve. Nessa esteira incluímos no nosso objeto um terceiro, ou seja, o
sujeito ouvinte.
A materialidade da
canção, enquanto um mosaico de configurações sonoras e verbais, desnuda o que a
psicanálise já vem operando há algum tempo na clínica, ou seja, a demanda afetiva
humana. A linhagem da linguagem das canções, através de sua performance, se la(n)ça
aos nossos sentidos porque fala justamente daquilo que o desejo humano mais procura: o
tenso arco da demanda amorosa dirigida ao Outro. Assim, a canção funciona como um signo
cujo objeto se encontra alhures. O som também participa dessas articulações. O campo
musical, articulado à letra da canção e ao intérprete, produz um efeito significante
que está para além da canção. Aferimos a hipótese de que essas canções, devido à
organização de seus significantes verbais e sonoros, estão aptas a produzirem efeitos
num sujeito ouvinte.
Sublinhar os
significantes verbais e sonoros das canções que constituem o amor nos três registros é
mostrar a via pelo qual o sujeito ouvinte pode ser engatado a partir dessa estrutura.
Nesse sentido a canção torna-se signo do sujeito. Estaremos utilizando o conceito de
signo de C. S. Peirce (1839-1914), semioticista e cientista americano.
No primeiro capítulo
estaremos desenvolvendo o tema amoroso a partir da teoria psicanalítica através dos
três registros. No registro do Imaginário o amor pode ser capturado como uma
experiência especular e narcísica, uma imagem que vem para tentar assegurar uma falta a
ser. No amor narcísico, temos também a experiência da confusão entre as partes e a
busca de unidade. Nesse registro, observaremos uma relação binária e mortífera, pois
quando o eu prevalece, o objeto amado tende a desaparecer; quando é o objeto amado que se
torna preponderante, o eu se desvanece. Resgatamos nesse momento as primeiras relações
objetais do infans.
No Simbólico temos o
plano da linguagem e a constituição do sujeito. Para dar conta desta engrenagem
retomamos o conceito de pulsão e o desenvolvimento do conceito de objeto do desejo e o
objeto do amor. Nessas coordenadas temos o movimento amoroso tentando ordenar a diferença
entre os sexos; de dois busca-se fazer Um. Também é o lugar onde o amor vem fazer
suplência à relação sexual. Ser aquilo que preencheria o que falta ao Outro está na
dependência da articulação do falo e suas primeiras relações objetais. Por estar
estruturado como linguagem, essas canções possuem muitas metáforas. Nesse sentido
estaremos pontuando algumas considerações sobre os processos metafóricos e
metonímicos.
No registro do Real está
aquilo que a imagem não consegue fazer, ou seja, dar consistência ao eu. A perda do
objeto remete a uma perda do eu e ao que está por trás do espelho: uma moldura vazia,
denunciando a estrutura evanescente do eu. Também detectamos a presença real do outro.
Nesse sentido, Lacan diz que o amor faz signo porque depende do signo do outro. Os três
registros se amarram através do nó borromeano. Observaremos que nos três registros o
amor visa o Outro. Assim, sinalizaremos que o amor se dirige ao vazio do signo porque o
que ele quer é dar consistência de ser ao outro. Nesse sentido, o amor evoca o encontro
com uma ausência, o objeto perdido. Como se trata de uma canção, observaremos que o
sujeito ouvinte coloca seu corpo nesse lugar de ausência.
No segundo capítulo,
desenvolveremos questões referentes à música e psicanálise. Nisso queremos pontuar a
questão do sujeito ouvinte. Assim sendo, é a canção que ouve no sujeito questões que
o habitam. Estaremos utilizando algumas reflexões de Alain Didier-Weill, como aquela
referente à nota-azul. A nota azul é o significante responsável pelo efeito de gozo da
escuta musical. Ela também pode provocar uma dor nostálgica, o encontro com o objeto
perdido, paralisia da inteligência, felicidade e prazer. Isso porque o sujeito ouvinte se
identifica com os significantes verbais/sonoros dessas canções. Houve aqui deslocamento
do sujeito para um Outro. Sendo Outro, ele é convocado a responder as essas questões que
o habitam. Assim, ele retorna como sujeito que (su)porta sua Falta. Para darmos conta
dessas questões, retomaremos as primeiras relações que o sujeito estabeleceu com o
mundo, ou seja, aquele momento anterior à constituição do eu e ao advento da linguagem.
Sinalizaremos que o que
existiu antes do advento da linguagem era um mundo em sua manifestação sonora e
rítmica. A partir daí, um som primordial preparou o campo psíquico para o
desenvolvimento do sujeito. Em outro momento iremos nos aproximar da complexidade do som.
Sua ressonância e sua inscrição psíquica faz desse objeto um corpo e um campo sonoro
que embala e abala esse infans. Nesse sentido, estaremos colocando em relevo certas
propriedades sonoras a partir dos três registros.
No terceiro capítulo,
estaremos analisando os significantes verbais e sonoros que constituem o amor nos três
registros e pelos quais é possível o sujeito ouvinte se enganchar. Selecionamos seis
canções nas quais podemos aferir a nossa hipótese, ou seja, que na organização desses
sons e palavras é formado um mosaico de signos. Esses signos representam o sujeito
ouvinte. Portando, é nessa estrutura musical que o sujeito ouvinte é engatado. Por isso
a canção está apta a produzir efeitos num sujeito desejante.
Com base nas questões
discutidas no primeiro e segundo capítulos, analisarão as seguintes canções:
"Doce Presença", composição de Ivan Lins e Víctor Martins interpretada por
Ivan Lins; "Todo Sentimento", canção de Chico Buarque e Cristóvão Bastos
interpretada por Chico Buarque; "Eu te amo", canção de Tom Jobim e Chico
Buarque interpretada por Zizi Possi; "Nuvem Negra", canção e interpretação
de Djavan; "Porto", canção e interpretação de Adylson Godoy;
"Metades" canção e interpretação de Adriana Calcanhoto. Trechos de outras
canções foram utilizadas como exemplos no decorrer dos capítulos: "Faltando um
Pedaço", canção e interpretação de Djavan, "Esquinas", canção e
interpretação de Djavan, "Pétala", canção e interpretação de Djavan.
Deise Mirian Rossi
Deiseros@terra.com.br
Resumo e introdução da
Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade Católica de São Paulo (PUC) em
Comunicação e Semiótica. |