O erro de Damásio
por Márcio Peter de Souza Leite
1. A tendência atual
A tendência da psiquiatria atual,
apropriadamente chamada de "biológica" caracteriza-se por ter seus fundamentos
determinados por contribuições de outras disciplinas científicas, principalmente a
neurociências.
Este novo modelo da psiquiatria critica os
anteriores em seus métodos, e os substituiu por critérios estatísticos, e desconsidera
a existência de um Sujeito na causação dos transtornos mentais.
O DSM-III foi conseqüência de uma revolução
lógica ocorrida nos anos 30 , que pretendeu fundar uma ciência da mente através do
formalismo lógico-matemático aplicado às ciências do cérebro, cuja proposta,
atribuída a Nobert Wiener e Warren Maculloch, seria a de mecanizar o psíquico
assemelhando-o a uma máquina lógica que pela naturalização da epistemologia, produziu
uma filosofia da mente conhecida como cognitivismo.
Dão suporte teórico a esta posição, entre
outros, A. Damásio, D. Dennet e J. P. Changeux autores que
valendo-se dos recentes avanços havidos no conhecimento do cérebro, afirmam que a
conduta humana pode ser explicada totalmente em termos biológicos.
Estes autores, ao propor uma causa neurobiológica
para os transtornos mentais, negam a causalidade psíquica em psicopatologia, o
que fez com que a psiquiatria atual tenha encontrado nas neurociências seus fundamentos
epistemológicos e metodológicos.
O principal argumento dos neurobiologistas,
consiste em dizer que o homem não possui nenhum elemento químico em seu corpo que não
esteja presente no animal, o que os leva a uma leitura do funcionamento do cérebro
fundada numa explicação genética, evolucionista, e materialista.
A este modelo , que valendo-se das
neurociências, vê o cérebro como uma máquina manipulável quimicamente, confronta-se a
experiência da psicanálise.
R. Mezan no artigo " Paradigmas e
modelos da psicanálise atual", cita R. Bernardi que propõe a
existência de três paradigmas na psicanálise contemporânea: o freudiano caracterizado
pelo paradigma pulsional, o kleiniano caracterizado pelo paradigma objeta, e o lacaniano
caracterizado pelo paradigma do Sujeito.
Utilizando-se da noção de Sujeito, pode-se
colocar nesta referência a causa da dificuldade na relação entre psicanálise e
neurociências, pois a psicanálise demonstra a existência de um Sujeito que não pode
ser reduzido ao funcionamento cerebral, mesmo entendendo o cérebro como uma
"máquina semântica" como faz Denett, ou "máquina
intencional" como é o cérebro para Changeux, ou fazendo-se referência a um
"Eu neuronal" como propõe Damásio.
O Sujeito da psicanálise não é definido como ser
individual, ou sinônimo de Eu. Tampouco é o Sujeito da fenomenologia que o
identifica à consciência. Freud não utilizou o termo Sujeito, mas não foi alheio à
questão, e a abordou com outra terminologia, podendo-se dizer que Freud usou o termo Das
Ich para se referir ao Sujeito da experiência. Segundo L. Boyer, o Sujeito em
Melanie Klein pode eqüivaler "aos modos de atribuir significado à experiência
(as posições)"
Lacan diferencia o Sujeito poético, gramatical,
do Sujeito anônimo e ambos do Sujeito cuja singularidade se define por um ato de
afirmação.
A este Sujeito, entendido como o que se define
por um ato de afirmação, Lacan o diferencia do Eu, entendido como a sensação de um
corpo unificado.
Em diferença do Eu, que para Lacan é
construído desde a imagem do outro, o Sujeito decorre do Outro, (com maiúscula) que é
referência à linguagem enquanto efeito da ordem simbólica. Por isso o Sujeito é
conseqüência do significante, e está regido pelas leis do simbólico. Para Lacan,
portanto, a causa do Sujeito é a estrutura do significante.
O Sujeito na psicanálise é explicitamente
diferente da consciência, portanto é um Sujeito não fenomenológico, não é uma
categoria normativa, ele é uma categoria clínica, e não remete a uma totalidade.
2. As neurociências excluem a existência de um sujeito?
M. Bunge no livro "O problema
mente-cérebro", sugere que as posições frente ao relacionamento mente-cérebro
podem ser divididas em dois grupos:
1 - Um primeiro no qual a mente é entendida como
uma entidade imaterial na qual se dão todos os processos mentais, havendo uma autonomia
da mente e negando-se a realidade dos corpos. Esta posição caracteriza o monismo
espiritualista.
Entre os que reconhecem um estado separado para a
mente, há os que reconhecem a existência do corpo junto a ela, e são denominados dualistas
psicofísicos e entre eles estão o paralelismo psicofísico, o epifenomenismo, o
animismo, e o interacionismo.
2 - Um segundo no qual sustenta-se que a
atividade psíquica é efeito unicamente de uma função corporal, e são os chamados monistas
psicofísicos: Dentre eles destacam-se o fenomenismo, o monismo neutral, o
materialismo eliminativo, o monismo fisicalista e o materialismo emergentista.
Para Bunge, Freud está incluído no
categoria do dualismo tipo paralelismo psicofísico, que aponta ao cérebro
e o psíquico como sincrônicos.
Damásio, representando o paradigma do
pensamento neurobiológico, no livro "O erro de Descartes", critica e
condena a noção de Sujeito, apontando-a como conseqüência do modelo cartesiano da
relação corpo-mente.
Damásio, situa o "erro" de
Descartes na divisão entre "psico" e "soma", e a moderna
neurobiologia, "monista" por vocação, corrigiria este erro.
A solução que Damásio propõe ao
criticar uma "mente desencarnada" sugerida por Descartes, é a de um
retorno a um monismo, como se deduz da proposta de que a "mente tem de
passar de um cogitum não físico para o domínio do tecido biológico..."
No entanto, como mostra P. L. Assoun
no livro "Introdução a epistemologia freudiana" Freud, ao situar a
relação mente-corpo, o fez dentro de um ponto de vista "monista.
Foi dentro desta postura científica que Freud
abordou os sintomas conversivos, relacionando-os à experiências traumáticas vividas, e
não às lesões somáticas, o que contrariava a psiquiatria da época, que considerava
que a causa dos sintomas histéricos seria uma alteração orgânica, conseqüência de
uma "degeneração nervosa".
No "Projeto para uma psicologia
científica", Freud, tentou a compreensão do funcionamento mental fundamentado
na existência de tipos diferentes de neurônios, que com suas vias de condução,
barreiras de contato, mecanismos de facilitação e critérios de energia livre e
vinculada, explicariam a causa dos sintomas. O modelo neurofisiológico deu lugar ao
"aparelho psíquico", que explicaria a causação dos sintomas, já que
eles não correspondiam a uma lesão no sistema nervoso, e sim à sua representação
psíquica. Em continuidade, Freud propôs o conceito de desamparo, que corresponde
ao fato do bebê depender de um outro para a sua subsistência por um longo período de
tempo, fato este que seria conformador da dependência do Sujeito a um outro,
caracterizando seu desejo.
Este observação de Freud, teria sido confirmada
pelas neurociências, com o que se chamou de "epigênese", que é o fato
de, durante o desenvolvimento do cérebro antes do nascimento, haver uma proliferação
dos neurônios e das sinapses, seguindo-se uma regressão e morte de grande parte destes
neurônios.
Observa-se ainda, depois do nascimento, o "fenômeno
de redundância difusa", momento em que os neurônios que restam ramificam-se, e
enviam um número exagerado de prolongamentos ligando-se a outros neurônios com mais de
uma ramificação.
Após o nascimento, seguindo-se a essa fase de
"redundância sináptica", ocorre uma etapa de regressão das
ramificações axiônicas e dendríticas, estimuladas pelo contato com o meio ambiente. A
demonstração deste fato foi feita por G. Edelman, quem com a sua "teoria
das categorizações", se refere à utilização dos circuitos neuronais em
conseqüência da satisfação de necessidades ligadas à preservação da vida, o que
introduz a constatação de que as experiências vividas pelo ser humano intervém
ativamente na modelação do tecido cerebral.
Ou seja, a investigação neurobológica
confirmaria a observação freudiana do desamparo, formalizando-o pelo processo de
"epigenêse das redes de neurônios", e pela "teoria da
categorizações" de Edelman.
Dentro da mesma linha de raciocínio, C. Pérsio,
em uma reportagem publicada na revista Palavra, ano I, numero 6, com o título
"A grandeza da simplicidade", referindo-se ao artigo "Divisão e
suicídio celular podem ser a chave do câncer", de autoria de P. Brown, da
revista inglesa "New Scientist", pretende que o conceito de
"apoptose" celular, ou suicídio celular, que é o fato de que células normais,
recebendo concomitantemente um comando para se multiplicarem e um comando para morrerem,
podem se inclinar para este último, seria a demonstração biológica da tese freudiana
da pulsão de morte.
Embora Freud tenho posto esperança na biologia,
Lacan, retomando a psicanálise desde o ponto de vista do Sujeito entendido como
decorrente de sua alienação ao simbólico, aponta que a biologia freudiana não é
biologia senso estrito e por isto a morte que se trata na pulsão de morte não é a morte
biológica, não é o retorno do corpo ao inanimado, é uma morte que aponta a uma além
da vida que é aberto ao ser falante pela linguagem. Porém contrastando com a teoria da
epigênese, muito antes da sua descoberta, Lacan já havia apontado as conseqüências na
constituição do psíquico de uma condição neurológica, própria ao ser humano,
chamada de neotenia, ou heterocronia, ou fetalização, ou ainda síndrome
de Bolk, e que se refere a prematuração especifica do bebê, que ao nascer, por não
ter a bainha dos neurônios da córtex cerebral mielinizadas, não tem a possibilidade de
ter coordenação motora.
Para Lacan, o fato do bebê não poder ter uma
unidade corporal mostraria a impossibilidade de existir um Eu fundado pelas funções
biológicas. Lacan retirou de Wallon a evidência de que antes que a coordenação
motora seja neurológicamente possível, a criança já se reconhece no espelho, o que
demonstraria a existência de um Eu, entendido como corpo unificado.
Por isso, o estádio do espelho mostra que há
uma antecipação das funções psicológicas em relação às biológicas, o que
contraria a hipótese da existência de um Eu sustentado somente por atividades cerebrais.
Posteriormente, em 1953, com a introdução da
ordem simbólica na teorização da psicanálise, Lacan reformulou o lugar do corpo em
relação ao psíquico demonstrando que o Sujeito (determinado pela ordem simbólica) nunca
terá mais que uma apreensão imaginária do corpo.
O lugar do corpo foi retomado por Lacan ainda
mais uma vez a partir da noção de gozo, noção que articula o significante com o corpo.
Os efeitos do dualismo na psicopatologia,
teve como conseqüência a divisão da causação dos transtornos mentais em causas
orgânicas e psíquicas.
A hipótese de uma causação orgânica para os
transtornos mentais, chamada de organogênese, na psiquiatria alemã da época de Freud,
foi sugerida por Kraepelin como oposta e excludente a uma causação psíquica para
estes transtornos, que foi chamada de psicogênese.
Para Lacan não há nem psicogênese nem
organogênese, há uma causação do sujeito, que se dá a partir da atualização de
marcas materiais ( letra enquanto suporte material do significante) que condicionam a
articulação significante, através da qual o sujeito busca sua satisfação.
Porém, atualmente não basta dizer que a
psicanálise é monista, pois existem vários tipos diferentes de monismo como
aponta Searles, ao indicar o behaviorismo lógico, a teoria da identidade tipo, a
teoria da identidade ocorrência, o funcionalismo caixa-preta, a IA forte (funcionalismo
máquina de Turing), o materialismo eliminativo e a naturalização da intencionalidade.
A neurobiologia se sustenta num monismo
fisicalista, que pode ser entendido como a expressão moderna do materialismo.
A questão portanto não estaria em acusar a
psicanálise de dualista, como sugerem os representantes da neurobiologia, pois a
psicanálise também é monista.
A questão estaria em contrapor o monismo
próprio à psicanálise ao monismo da psiquiatria estabelecido desde os parâmetros de um
monismo fisicalista.
3. Seriam as neurociências e a psicanálise, inconciliáveis?
Há entre os psicanalistas aqueles que apontam a
possibilidade desta interlocução fazendo conexões entre os recentes avanços das
neurociências, e as evidências demonstradas pela psicanálise.
Y. Soussumi no artigo "A psicanálise
hoje e freudiana? A psicanálise e algumas idéias neurobilógicas e imunoendócrinas",
publicado no livro "Corpo-mente, uma fronteira móvel" desenvolvendo o
conceito de "epigênese", cita a "teoria das categorizações" de Edelman,
como uma forma possível de se estabelecer a ponte das neurociências e a psicanálise.
Outra pesquisadora da possível relação da
psicanálise com a neurociência, Susan Vaughan, no livro " The talking
cure- The cience behind psychoterapy", publicado 1997 em Nova York, chega
a defender que há uma função cerebral a que ela chama de "sintetizador de
histórias" que estaria alojada na córtex cerebral.
Esta autora chega a propor "que as
conexões biológicas entre os neurônios que constituem o sintetizador de histórias são
literalmente fortalecidas, moldadas, enfraquecidas ou destruídas- em última
análise refeitas- ao longo do processo de psicoterapia."
Mesmo entendendo o que a autora chama como
sintetizador de histórias, como uma metáfora para Sujeito, a demonstração das
alterações celulares causada por efeito de psicoterapia ainda estaria para ser feita.
O psicanálise, tomada pelo paradigma do Sujeito,
vê no outro, tanto na sua dimensão imaginária de semelhante, como na sua dimensão
simbólica de Outro, e mesmo na dimensão real de "Das Ding", a causa do
sujeito. Este fato aponta à uma alienação originária na constituição do Sujeito, e
faz com que, para ele, o saber esteja sempre no outro, o que faz diferença com as
ciências cognitivas, que coloca o funcionamento cerebral na origem do saber.
Daí a psicanálise incluir a presença do outro,
através da pessoa do analista, como condição do tratamento, e com isso, reproduz na
transferência a estrutura onde o Sujeito demanda a um outro uma resposta sobre o que lhe
falta.
Desde este prisma, a transferência é, em
primeiro lugar, relação com o saber. A relação de um sujeito com o outro se transforma
quando se introduz a linguagem. A linguagem é um terceiro, um nem um, nem outro, que se
constitui numa referência comum para os dois.
Este terceiro é este Outro, um Outro que não é
semelhante. Assim quando se fala dirige-se sempre a esse Outro.
A invenção de Freud foi a invenção do
analista como representando esse Outro. 0 analisante, pelo simples fato de aceitar a regra
fundamental, que o coloca na posição de não saber o que diz, cai na dependência desse
Outro.
No entanto, não se trata de uma dependência
real. Trata-se da dependência da relação desse sujeito com o saber (saber este que é o
que esse sujeito procura numa psicanálise).
Como explicar a transferência pela
neuroquímica? O que dar ao outro para completar o que lhe falta? Remédios ou o acesso a
uma verdade, causa de seu sofrimento?
Pergunta que aponta a uma ética, porém não uma
ética dos filósofos, mas uma ética da psicanálise. Esta ética foi sugerida por Lacan
como: "uma ética se anuncia, convertida ao silêncio pelo advento não do pavor,
mas do desejo"
Neste sentido, a ética da psicanálise, em
primeiro lugar, diz respeito à interpretação do desejo inconsciente que implica o
Sujeito na responsabilidade de uma escolha, evitada para não produzir angustia.
Ou cabe ao Sujeito
renunciar à sua responsabilidade e, como única saída, medicar-se, perpetuando sua
alienação num efeito químico determinante de sua felicidade, por mais ôca que seja
esta palavra?
A articulação entre corpo e psíquico foi
proposta por Lacan, abandonando as categorias do dualismo cartesiano de substância
pensante e material, com o que ele chamou de substância gozante. (substância
usada aqui na referência de Aristóteles a Ousia). O Sujeito em contrapartida é
um upokeimenon , ele é pura suposição significante e não é substancial.
Lacan não foi positivista, mas materialista, no
sentido da referência material da idade média, que atualmente se chama de formal. O
ponto que une esta posições é a efetividade. Dai Lacan ler o uso que Freud faz da
noção de "marcas", não com "engrama", mas como corte, e é isto que
Lacan chamou de moterialisme , que é um neologismo que condensa mot,
palavra em francês , com materialisme. Ou seja a psicanálise usando a palavra, o
significante, atinge o corpo, pela via do gozo.
Por isto Lacan, ao tratar a teoria dos afetos em
Freud, não recorreu à psicofisiologia. O afeto para Lacan pertence ao Sujeito, e implica
em que o Sujeito está afetado em suas relações com o Outro.
A orientação lacaniana implica portanto
distinguir as emoções, que são de registro animal, vital, dos afetos, que pertencem ao
Sujeito. Para Lacan a angústia é um afeto, não uma emoção, e para se compreender a
teoria dos afetos é necessário passar-se da psicofisiologia à ética.
É no Sujeito causado pelo significante, que
marca o corpo pelo gozo, e não no Eu, que a psicanálise atua. Daí Lacan ter afirmado:
"Somos sempre responsáveis da nossa posição de Sujeito. Que isto se chame, onde
quiserem, terrorismo...". Afirmação que aproxima a clínica analítica da
ética e a afasta da neurociência.
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