Uma escuta psicanalítica das vidas
secas [01].
por Miriam Debieux Rosa
[02]
Nesta etapa avançada da modernidade, observa-se,
junto com avanços tecnológicos, uma organização social que convive com a transgressão
de normas elementares, abusos e corrupção generalizados, assim como a promoção, para
muitos, da exclusão do acesso aos bens e aos modos de gozo próprios do modelo econômico
neoliberal. Parece estar havendo a quebra dos fundamentos do contrato social, com
conseqüente desproteção de uma parcela da população e, por vezes, total desamparo
social, impedindo seu acesso efetivo aos recursos institucionais organizadores da vida
social (saúde, educação, moradia, trabalho, segurança, etc.).
Afirma Mário Pujó [03] , que o modelo
econômico neoliberal gera uma sensação de desproteção aliada a um crescente desamparo
discursivo, caracterizado pela fragilização das estruturas discursivas que suportam
o vínculo social, no que rege a circulação dos valores, ideais, tradições de uma
cultura e resguardam o sujeito do real. Dizendo de outro modo, atualmente o ideário
iluminista igualitário e libertário mascara as regras e valores do modelo neoliberal,
pautado pela lógica do mercado e pelo privilégio do capital.
Este jogo discursivo expõe o sujeito ao risco de
confrontação com o traumático - aquilo que está fora de sentido. A exposição
traumática é dupla: por um lado, sua ocorrência é facilitada; por outro lado, os
recursos necessários à elaboração do trauma encontram-se diminuídos, promovendo
efeitos de desubjetivação.
É o caso, por exemplo, do que ocorre com os
"meninos de rua", assim chamados por não possuírem a proteção do discurso
familiar. Dentre os diversos aspectos que os caracterizam, esses meninos têm em comum o
fato de terem de contar com o próprio discurso para sobreviver no espaço da rua. Ou
seja, aliam-se aos inúmeros tipos de desamparo a falta de atribuição de um lugar no
ideal social e a perda de um discurso de pertinência para esses meninos [04].
Refletir sobre essas pessoas, que padecem de um
desamparo social e também discursivo, contribui para a elucidação dos chamados
processos de exclusão social.
As questões que levanto neste trabalho não
dizem respeito à elaboração de novas teorias, mas à construção de uma escuta
clínica que leve em conta a especificidade de tais pessoas e situações, e que trabalhe
a necessidade de uma qualificação que habilite psicólogos e psicanalistas a detectarem
as sutis malhas da dominação e a não confundirem seus efeitos com o que é próprio do
sujeito. Acredito que são justamente as vicissitudes da escuta psicanalítica que
permitem refletir sobre alguns dos efeitos subjetivos e intersubjetivos da pobreza extrema
e da exclusão social, situação em que se encontra expressiva parcela da população
brasileira. Exclusão que, como aponta Bader Sawaia, guarda dimensões materiais,
políticas, relacionais e subjetivas, envolvendo por inteiro o homem e suas relações com
os outros e é parte constitutiva da inclusão.
Assim, o processo de exclusão "não tem uma
única forma, não é uma falha do sistema, devendo ser combatida como algo que perturba a
ordem social, ao contrário, ele é produto do funcionamento do sistema" [05]. A
escuta desses sujeitos pode tanto lhes propiciar dar andamento à articulação
significante, rompendo com identificações imaginárias, como contribuir para elucidar
alguns dos efeitos subjetivos do "bom" funcionamento do sistema.
As dificuldades da escuta psicanalítica nas
instituições são conhecidas. Silvia Bolguese [06] analisou propostas institucionais que
tomam a psicanálise como referência, e constatou que as atuais práticas ambulatoriais
sustentam-se em modelos adaptativos e cronificadores, distorcendo a proposta
psicanalítica.
A autora (Bolguese) discute a necessidade de
criar soluções capazes de denunciar o obscurantismo, antiga e poderosa arma dos sistemas
que visam a perpetuar a dominação. Também Benilton Bezerra aponta o impressionante
poder de regeneração da cultura e prática manicomiais, mesmo em ambientes que têm o
objetivo explícito de superá-las, mostrando como as inovações criativas facilmente se
degeneram em técnicas a serem aplicadas de modo padronizado, as práticas se
burocratizam, os papéis se cristalizam e as teorias se tornam fetichizadas. Bezerra
reitera que a clínica é ensaio, experimentação, lugar da reinvenção, da renovação
da escuta e do olhar. Uma condição para sustentar esse lugar é, segundo o autor, a
busca pela superação das dicotomias indivíduo e sociedade, psíquico e social, mental e
físico, clínica e política, terapia e administração.
Nessa perspectiva, afirma que "toda clínica
é social e toda política diz respeito à vida subjetiva de cada indivíduo. A
singularidade [...] só pode surgir e ser experimentada no campo das relações com os
demais sujeitos, no campo de suas relações sociais. Estas, por sua vez, só ganham
significação, só se reproduzem ou se modificam pela apreensão que os sujeitos fazem
delas" [07].
Cabe-nos resgatar a radicalidade da proposta
psicanalítica e ressaltar o caráter ético e político dessa escuta, contribuição da
clínica que pode se estender às demais situações, dentro das quais se pretende
elucidar aspectos referentes ao sujeito sob desamparo social e discursivo e aos processos
de sua manutenção em tal condição, que promovem impasses nas propostas de políticas
de intervenção.
Efeitos da exclusão social
Para esta discussão, convoco Renato, Adalvan,
Zeca, Waldemar, Tiago... Dela fazem parte, ainda, a minha história, assim como a dos
alunos sob minha orientação em pesquisas e a dos sob minha supervisão na Clínica
Psicológica da USP e da PUC-SP, já que a escuta psicanalítica ocorre na transferência,
que envolve tanto o sujeito como o psicanalista.
Falo, em primeiro lugar, do que emerge nesse
campo intersubjetivo conceituado como campo transferencial. A escuta clínica
implica que o analista suporte a transferência, ou seja, ocupe o lugar de suposto-saber
sobre o sujeito - uma estratégia para que o sujeito, supondo que fala para quem sabe
sobre ele, fale e possa escutar-se e apropriar-se de seu discurso.
Esse campo permite uma relação que estrutura a
produção do saber do sujeito, desde que o psicanalista renuncie ao domínio da
situação e, pontuando e interpretando, possibilite a produção de efeitos de
significação no sujeito: sujeito do desejo, engendrado pela cultura, mas que, em sua
condição de dividido, pode transcender ao lugar em que é colocado e apontar na
direção de seu desejo.
Trato aqui de uma faceta dessa relação
transferencial : a da resistência que paralisa a escuta clínica, e a de algumas
estratégias para fazer deslizar o discurso, para produzir novas articulações que
permitam a escuta do sujeito e façam valer a ética da psicanálise. O tema é, portanto,
o impasse da resistência do analista com uma ética do sujeito; seu confronto com ela.
Resistência e transferência são facetas do
mesmo fenômeno. Em Freud, a resistência é egóica e ocorre quando o paciente está
próximo de elucidar alguns de seus conflitos centrais. Nesse momento, cessam as
associações livres e o paciente centra sua atenção na relação com o analista. Lacan
aborda outro aspecto da resistência, a do analista, e não a do paciente, ou seja, os
entraves que estão na escuta e não no sujeito que fala.
É este último aspecto que vou salientar nesta
discussão, em que vou radicalizar os termos, para destacar o jogo imaginário e
simbólico que se interpõe na escuta dessas pessoas, que vivem sob desamparo social e
discursivo. Assim, nesses casos, a situação inicial caracteriza-se pelo fato de que, na
relação analista-analisando, os sujeitos ocupam lugares opostos na estrutura social: a
inclusão e a exclusão, frente a frente.
Um porta vários dos emblemas que possibilitam
posições fálicas, sabe e domina os instrumentos da pertinência o psicanalista
é designado nessa função por ser, na estrutura social, o representante de um certo
saber que lhe confere um lugar de escuta e fala. O outro, o paciente está, digamos, fora
do acesso a essas posições, o que freqüentemente toma o peso imaginário de estar fora,
excluído da estrutura social. Além disso, o que caracteriza tal trabalho é que ele se
opera na vigência de situações de risco social ou mesmo risco de vida; opera-se nas
urgências de intervenção, na concretude e amplitude daquilo que falta e na grande
quantidade de pessoas que precisam de assistência.
A resistência à escuta do discurso de tais
pessoas manifesta-se, do lado do psicanalista, sob vários efeitos. Um deles é o de ficar
exclusivamente sob o peso da situação social.
A complexidade da situação social dificulta a
relação intersubjetiva necessária ao atendimento clínico. Nota-se mais ação do que
postura de descoberta; indicação de trabalhos rápidos e de grupo sem suporte teórico
ou técnico que sustente a indicação. Nos atendimentos, ressaltamos o risco dos
diagnósticos e encaminhamentos apressados, a partir de uma comunicação deficiente e
descrições superficiais, com o uso inadequado da teoria e da técnica psicanalítica.
Por exemplo, toma-se o dito apenas no seu enunciado explícito, tendo dificultada a
interpretação: o dinheiro é apenas dinheiro e não a representação de algo que falta.
A comunicação deficiente dá margem a estereótipos e preconceitos; a diferença
favorece relações de poder (nos moldes da relação patrão-empregado), a posse da
verdade ou a relação pedagógica sugestiva, de apoio ou orientação, sem levar em conta
a possibilidade de o sujeito construir suas próprias respostas.
O resultado é que essas pessoas são mais uma
vez excluídas, agora por parte daqueles que deveriam escutar não pessoas de uma classe
social determinada, mas o sujeito.
Vale ressaltar que um outro efeito, ainda, é
aderir à teoria e às formas usuais de trabalho e, sem atentar para outras formas de
expressão do sofrimento, interpretar as manifestações do sujeito como resistência ao
trabalho ou ausência de demanda em relação ao mesmo. Nesse caso, pode-se passar a
diagnosticar o sujeito por sua expressão, apontando pobreza intelectual ou emocional,
estrutura psicótica ou perversa, antes de escutá-lo. Detecta-se freqüentemente a
utilização defensiva da teoria para reafirmação narcísica do psicanalista/psicólogo
e seu gozo de "competência".
Assim, a pregnância imaginária da miséria e
uma suposta distância dos ideais da cultura podem ser um impeditivo para a escuta, para
reconhecer o desejo do sujeito na transferência, levando a interpretar como falta de
recursos do sujeito a sua negativa de falar, própria de quem precisa assegurar-se do
outro antes de levantar alguma pergunta sobre seu sofrimento. Os meninos que "comem
luz" desconfiam da estratégia da escuta clínica e podem tomá-la como mais uma
estratégia de poder e domínio sobre eles. E questionam, como Adalvan, que reage
angustiado com o que está dizendo: para que você quer saber? Ou como Tiago, que
desafia e, depois de um tempo, explica: eu não posso dizer estas coisas e continuar a
viver como eu tenho que viver. Na sua fala, uma questão: sem possibilidades de
transformar a realidade que vive, é possível viver fora da alienação a uma identidade
imaginária? Isso não o tornaria mais vulnerável? Pelo que tenho observado, adianto que
não.
Elena Nicoletti [08] indica outros dois riscos
nessa situação. Um deles é o de ficar em uma posição de desconhecimento quanto à
incidência das coordenadas que tocam a pobreza extrema, e sua conseqüência, na
abordagem clínica, é responsabilizar o sujeito pela mesma, supondo uma decisão ali onde
há uma lógica de mercado. Outro risco está na vitimização do sujeito, o que dificulta
o seu reconhecimento como desejante, capaz de reconhecer-se em suas determinações
inconscientes, em seu lugar no desejo do Outro. Cria-se um impasse que pode paralisar o
trabalho, gerando no psicanalista, pela identificação, reações de revolta ou, o que é
mais freqüente, o desânimo e o confronto com a impotência. Alega-se, então, que este
não é um campo para psicanalistas ou psicólogos, que, enquanto tal, não podem fazer
nada.
Mas, a que serve a resistência?
O que observo nesses atendimentos é que a
resistência serve para evitar a escuta do sujeito, desse estrangeiro sem pátria de
origem. Isto porque essa escuta esbarra no horror do confronto com o estranho, tal como
tematizado por Freud, como o encontro com algo estranhamente familiar e conhecido do
próprio sujeito, que se alienou pela repressão [09]. O efeito de estranho é provocado
quando o reprimido retorna, e torna-se ansiedade. Confrontado com sua própria estrutura
fantasmática, sobrevem a resistência e o analista sai do lugar de escuta. Um outro
movimento se instala.
A escuta do discurso desses sujeitos fica
insuportável, não só pela situação em si ou pelos atos que cometeram, mas porque
tomar esse outro como um sujeito do desejo, atravessado pelo inconsciente e confrontado
com situações de extremo desamparo, dor e humilhação, situações geradas pela ordem
social da qual o psicanalista usufrui - é levantar o recalque que promove a distância
social e permite-nos conviver, alegres, surdos, indiferentes ou paranóicos, com o
outro miserável.
Nestas situações, a escuta supõe romper com
o pacto de silêncio do grupo social a que pertencemos e do qual usufruímos; usufruto
que supõe a inocência, a ignorância sobre as determinações da miséria do outro e a
reflexão sobre a igualdade entre os homens, quando, de fato, o que fazemos é
excluí-los.
Excluí-los e usufruir do gozo da posição
imaginária de estar do lado do bem, da lei. A escuta psicanalítica é, desde Freud,
transgressora em relação aos fundamentos da organização social; para se efetivar,
implica um rompimento do laço que evita o confronto entre o conhecimento da situação
social e o saber do outro como um sujeito desejante. Dessa escuta, principalmente quando o
sujeito se revela enquanto tal, como um dizer, não se sai isento - um posicionamento
ético e político é necessário.
Finalmente, o Sujeito!
Freud já apontava em "Mal Estar da
Civilização" [10] o que constatamos hoje: que a crueldade do homem seria
substituída pela crueldade das instituições e que o investimento narcísico
predominaria sobre o interesse da comunidade. A falta de gratificação narcísica aliada
à exclusão dos ideais e valores do grupo promove um efeito disruptivo na subjetividade.
Esse efeito disruptivo é descrito por Piera
Aulagnier como a quebra do contrato narcísico, que se estabelece graças ao
pré-investimento do infans pelo meio, que antecipa o investimento do grupo pela
criança, que nele ocupará um lugar independente do veredicto parental.
O discurso do meio oferece uma certeza sobre a
origem necessária para a dimensão histórica essencial na identificação. Assim, a
ruptura no contrato pode ter conseqüências diretas sobre o destino psíquico da
criança. Quando a realidade social é responsável pela ruptura, afirma a autora,
configurando situações de exploração e exclusão, reforça fantasias de rejeição,
ódio, despossessão: "no momento em que o Eu descobre o extra-familiar, em que seu
olhar procura dele um sinal que lhe confira direito de cidadania entre os seus
semelhantes, ele só pode encontrar um veredicto que lhe nega esse direito, propondo-lhe
um contrato inaceitável, uma vez que respeitá-lo implicaria a renúncia, na realidade de
seu tornar-se, a ser outra coisa que não uma mera engrenagem sem valor, a serviço de uma
máquina, a qual não esconde sua decisão de explorá-lo ou excluí-lo" [11].
Nesta direção, a conseqüência da ruptura dos
fundamentos do contrato social, aponta Pujó [12], é a irrupção do traumático,
tomado aqui como a desorganização subjetiva decorrente da emergência daquilo que está
fora do sentido e da significação. O traumático não designa a qualidade de um
acontecimento, mas a desestruturante incidência subjetiva daquilo que irrompe por fora de
uma trama de saber.
Considero que há especificidades na escuta
clínica desses sujeitos. É preciso levar em conta que a exclusão do acesso aos bens, a
exclusão dos modos de gozo deste momento da cultura tem como conseqüência no sujeito um
efeito de resto [13]. É importante não confundir esse lugar de resto na estrutura social
com uma subjetivação da falta, que promove o desejo.
A identificação do sujeito a este lugar de
resto, de dejeto, é um dos fatores que dificulta o seu posicionamento na trama de saber e
que vai caracterizar o seu discurso, marcado, por vezes, pelo silenciamento.
A identificação ao lugar de dejeto na estrutura
social está presente no relato de Waldemar, por exemplo, quando relata que saíam à
noite, ele (dos 8 anos em diante) e o pai, para buscar no lixão a comida da família,
"aventura" marcada por seu medo de lá encontrar restos de pessoas. Na
descrição da mãe de Zeca, resta a secreção purulenta e mal cheirosa, resto de uma
doença que ele adquirira e que deixara seqüelas na sua fala e na sua audição. Disso
nada lhe fora dito ou explicado, nem tratado pelos médicos ou cuidado pela escola.
Uma mula-sem-cabeça, que come os restos deixados
pela família, é o que Zeca desenha, desesperançado e conformado, desdenhando também de
si mesmo. Sua mãe apresenta-se um tanto distante, dividida entre os cuidados com ele, com
os outros filhos, com o trabalho e, principalmente, angustiada com a perda da casa,
interditada pela prefeitura, já que se situava na região do esgoto da cidade.
Tais situações requerem prudência na
intervenção: abordar as dificuldades como sintoma supõe considerar também sua
relação com o real. É preciso ponderar se a carência de recursos biológicos,
econômicos, morais está impedindo a elaboração simbólica que poderia dar forma
sintomática ao real, e/ou se a simbolização está se operando com os recursos
discursivos daquele sujeito, como no desenho citado no exemplo acima.
A aposta em dar lugar ao sintoma deve atender às
formas pelas quais os sujeitos se apresentam e possibilitar a emergência do singular.
Nesta medida, até o terrível consegue ser inserido em um contexto que lhe confira
sentido e significação. A lógica do mercado, vale lembrar, é regida por um discurso
que inscreve o sujeito em uma determinada posição e a escuta clínica pode, promovendo a
articulação da cadeia significante, fazer circular esta posição.
Adalvan, que fugiu de casa, "não sabe
porque", e que perambulou pelas ruas durante toda a infância e adolescência, relata
uma experiência angustiante, da qual nem se lembrava mais: o incêndio do barraco.
Na ausência da mãe, que deixa os filhos trancados sob os cuidados da filha mais velha de
10 anos, um dia o barraco pega fogo e as crianças são salvas por vizinhos. A irmã
apanha da mãe, que chega nervosa.
Onde estava a mãe, quando ele precisava tanto
dela? Ele mesmo responde, aos poucos - trabalhando para sustentar os filhos e
pensar, assim, que foi assistido por ela, faz iluminar algo nele. Adalvan começa a sorrir
nunca sorrira antes, diz.
Assim, antes de pensar em diagnósticos ou
estruturas, é preciso escutar o sujeito, esse sujeito que ocupa o lugar de resto na
estrutura social, e que está sob condição traumática. Há diferentes formas de
evolução frente ao mesmo processo que tende a suprimir sua condição de sujeito,
processo de coisificação coletiva que pode, entre outras formas, induzir à submissão
cega ou ao fechamento autístico. Diante do impacto traumatizante de uma consciência
clara da impotência frente ao Outro consistente e insistente em barrar qualquer acesso à
condição de uma lógica fálica e desejante, o sujeito cala-se.
Constrói uma barreira sólida e necessária, que
tem sua expressão no que chamo de emudecimento do sujeito e de apatia necessária,
rompida, por alguns, por reações violentas. Observo nessa suspensão temporária - às
vezes da vida inteira, mas temporária e não estrutural - um modo de resguardo do sujeito
ante a posição de resto na estrutura social. Uma proteção necessária para a
sobrevivência psíquica, uma espera, uma esperança. Penso assim pela facilidade com que,
muitas vezes, algumas situações de escuta fazem surgir ali, onde parecia haver apenas
vidas secas, o sujeito desejante, vivo.
A escuta que supõe romper barreiras e resgatar a
experiência compartilhada com o outro deve ser uma escuta como testemunho e resgate da
memória.
O relato em si não basta, dado que pode ser
apenas a repetição automática que se detém em atualizar o traumático. Também não me
refiro ao relato que parece feito para saciar a curiosidade do outro, que passa mais por
uma exposição do sofrimento para o deleite do outro, ou da exibição pelo grotesco -
como se vê, freqüentemente, na televisão. A escuta psicanalítica supõe, retomo aqui,
a presença do outro desejante, em tudo o que ela implica de resistência do analista,
usada agora como um contorno, uma borda organizadora do gozo sem limites. Nas histórias
de meninos infratores, por exemplo, não suporto ouvir o relato cru de crimes que
cometeram. O relato tem, na resistência do analista, o seu limite, o limite do fantasma
que suporta o analista e que o norteia para detectar quando o dizer pode ser compartilhado
em experiência de um sujeito na história ou quando é puro gozo no sofrimento, o seu
próprio ou o do outro.
Em suma, neste trabalho destaquei o jogo
imaginário e simbólico que se interpõe, como resistência, na escuta de sujeitos sob
desamparo social e discursivo. A pregnância imaginária da miséria e uma suposta
distância dos ideais da cultura podem ser um impeditivo para a escuta, para o
reconhecimento do desejo do sujeito na transferência, levando à equivocada
interpretação de sua forma de se apresentar ou mesmo da negativa de falar como falta de
demanda ou de recursos do sujeito. A escuta psicanalítica é transgressora em relação
aos fundamentos da organização social e implica um rompimento do laço que evita a
escuta do sujeito do desejo.
A especificidade na escuta clínica desse sujeito
é levar em consideração o lugar que ocupa na lógica discursiva do mercado, ou seja,
atentar para o lugar de resto que tal sujeito ocupa na estrutura social e a
suspensão do sentido deste lugar, que o sustenta sob condição traumática. É
importante não confundir esse lugar de resto na estrutura social com uma
subjetivação da falta, que promove o desejo. A identificação do sujeito a este lugar
de dejeto é um dos fatores que dificulta o seu posicionamento na trama de saber e que vai
caracterizar o seu discurso, marcado, por vezes, pelo silenciamento. A escuta desses
sujeitos pode tanto lhes propiciar dar andamento à articulação significantes, rompendo
com identificações imaginárias, como contribuir para elucidar alguns dos efeitos
subjetivos do "bom" funcionamento do sistema.
De Vidas secas a Eu, tu, eles.
Graciliano Ramos tematiza, em Vidas Secas,
como bem sabemos, o efeito arrasador da miséria. Trago, em contraponto, o recente filme Eu,
tu, eles [14], inspirado em outra família nordestina. O filme conta a vida de uma
mulher abandonada (eu), grávida, sem família, obrigada a abrir mão de seu filho
e a sujeitar-se a outro homem (tu), numa relação que teria sido, se ela tivesse
se "calado", de escravidão. No entanto, na trama do filme, busca outros meios (eles)
próprios de fazer valer a dimensão do desejo, melhor defesa contra o gozo do sofrimento.
Assim é também com Adalvan, que, depois que
sorriu, logo se apaixonou. Do telhado da Febem, onde vai fazer um conserto, vê, nas
frestas de uma janela do presídio feminino vizinho, a sua amada, que lhe acena. Trocam
cartas. Boa moça, diz ele. Logo vai sair e vem visitá-lo. O que seria do sujeito
se não fossem as frestas? Zeca sempre traz coisas no bolso. Antes objeto de gozação dos
vizinhos, o bobo, agora faz pulseiras para eles e passa a ir ao atendimento com os bolsos
cheios. Depois da bolinha de gude, o estilingue o que faz com isto? Treinamos na
sala. Devagar, meio sem graça, vai me deixando saber. Vem no ônibus, duas horas de
viagem, buscando o alvo. Quase não atira... porque que o ônibus balança. O alvo? Bem,
as mulheres! Como assim? Ora! Precisa de "alvos" grandes. E vai mencionando
sobre o que prefere observar nas mulheres. Aí está Zeca, um menino.
Mesmo nas situações mais adversas, é possível
vislumbrar o efeito estruturante e organizador da escuta psicanalítica. Se o sujeito pode
resistir, se ele encontra brechas na estrutura social para se manifestar, isso,
entretanto, não basta. Para além da constatação dos efeitos subjetivos devastadores da
exclusão está a ética e ética implica promoção de modificações nas estruturas
sociais e políticas que sustentam essa situação social.
Notas:
1. Trabalho apresentado na mesa redonda Formas de Exclusão
Social, no XI Encontro Nacional da Associação Brasileira de Psicologia Social, na
UFSC, Florianópolis, Novembro de 2001. Publicado na Revista de Psicanálise TEXTURA, n
2,ano 2002, sidgold@zaz.com.br.
2. Coordenadora do
Laboratório Psicanálise e Sociedade do IPUSP e do Núcleo Psicanálise e
Sociedade da PUC-SP. E-mail: debieux@mt2net.com.br
3. Pujó, Mário (2000)
"Trauma e desamparo". In Clínica do Desamparo. Buenos Aires: Revista
Psicoanálisis y el hospital, vol. 17, p.29. (este texto norteia-se também por outros
textos do mesmo volume, inteiramente dedicado à temática em discussão).
4. Rosa, M. Debieux. "O
discurso e o laço social nos meninos de rua". In Revista Psicologia USP,
volume 10, n.2, 1999.
5. Sawaia, Bader.
"Introdução: exclusão ou inclusão perversa?" In Sawaia, B. (org.). As
artimanhas da exclusão. Rio de Janeiro: Vozes, p. 9, 1999.
6. Bolguese, Silvia. O
progresso da Psicanálise: os limites da Clínica. (Dissertação de Mestrado). São
Paulo: PUC-SP, 1999.
7. Bezerra, Benilton.
"Prefácio: Tecendo a rede". In Tecendo a rede: trajetórias da saúde mental
em São Paulo. S. Paulo: Cabral Universitária, p. 18, 1999.
8. Nicoletti, Elena.
"Alojar o desamparo". In Clínica do Desamparo. Buenos Aires: Revista
Psicoanálisis y el hospital, vol. 17, 2000.
9. O horror do estranho
é a sua condição de estranhamente familiar, conhecida do próprio sujeito, ou seja,
"o estranho não é nada novo ou alheio porém algo que é familiar à mente, algo
que somente se alienou desta através do processo da repressão" Freud, S. (1919)
"O estranho". In Edição Standard Brasileira das Obras Completas de S. Freud.
Rio de Janeiro: Imago, Vol. VII , p. 301, 1972.
10. Freud, S. (1924).
"Mal Estar da Civilização. In Edição Standard Brasileira das Obras Completas
de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. VII, 1972.
11. Aulagnier, Piera. A
violência da interpretação. Rio de Janeiro: Imago, p. 153, 1979.
12. Pujó, Mario.
"Trauma e desamparo". In Clínica do Desamparo. Buenos Aires: Revista
Psicoanálisis y el hospital, vol. 17, 2000.
13. Nicoletti, Elena.
"Alojar o desamparo". In Clínica do Desamparo. Buenos Aires: Revista
Psicoanálisis y el hospital, vol. 17, 2000.
14. Direção de Andrucha Waddington. Rio
de Janeiro, 2000.
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