O uso de um psicofármaco na
transferência
introduz uma metáfora no real
por Daniel Paola
Em algum momento da prática, um analista pode
encontrar no fármaco algo inevitável de ser introduzido, com a finalidade de continuar
mantendo uma determinada transferência. O psicofármaco passa a ocupar, então, um lugar
que não é aquele da palavra (embora a palavra o nomeie), pois nem tudo é recoberto por
ela.
A questão seria perguntar porquê a estrutura
permite -às vezes sim, e outras não- que o simbólico possa não recobrir o real, sendo
necessária a presença do fármaco para possibilitar isto. Tem algo que faz corpo para
alguns, mas não para outros, e é neste lugar onde o psicofármaco marca sua presença
com a característica de transitar entre o medicamento e o veneno. (1) Será rejeitado
quando ocupa esta última vertente, e a clínica demonstrará que tal rechaço nem sempre
será produzido por aquele que o ingere.
Um exemplo talvez esclareça um pouco as coisas.
Trata-se de um paciente que foi internado por causa de um forte surto alucinatório
relacionado com seus vizinhos.
O fator desencadeante decorreu de uma inimizade
contra o pai após sua saída de casa para formar outra família, e a conseqüente
responsabilidade assumida por esta ausência, no tocante a ter de cuidar de sua mãe. A
briga com os vizinhos, deliberadamente acusados de participar de orgias sexuais, teria a
ver com a falta de dinheiro para pagar o condomínio, pois o que tinham apenas alcançava
para comer, embora o pai se queixasse argumentando que sua pensão possibilitava que o
paciente e sua mãe tivessem tudo o que quiserem.
Solucionadas algumas questões que permitiram a
volta do paciente ao lar, deixei de tomar contato com ele. Um tempo depois, o encontrei
por acaso, e me comentou que estava muito bem, tendo se liberado da medicação. Mais,
ainda: para ele, o chocolate teria propriedades curativas, e ficou espantado por eu não
saber disso. Alimentava-se apenas com tal guloseima, e não fazia outra coisa senão falar
dela.
Um mês mais tarde, foi novamente internado, logo
de sua mãe se queixar, na frente da família, da desnutrição que lhe acarretara
consumir chocolate de forma permanente. Uma chamada de atenção do pai a respeito de sua
conduta tinha provocado certa passagem ao ato, ao se ver privado daquele elemento central
que dava gosto a sua existência.
Para além de considerar o chocolate como um
alimento, é preciso ver ali algo atrelado à transferência e ao fármaco. Ë evidente
que este enfoque suspende por um momento a consideração bioquímica, não por
desconhecê-la, senão para privilegiar outro espaço surgido que não é o da palavra, e
que explicaria como não há psicofármaco fora da transferência, entanto o chocolate
curativo -localizado, por substituição, no lugar do fármaco- teria provocado um dizer
delirante.
Alimento ou veneno, estas são as duas qualidades
que vinculam toda a problemática com o corpo.
O psicofármaco traz inevitavelmente o corpo à
baila como aquilo situado aquém da palavra, que não pode ser obviado por ser do
discurso, em aqueles casos onde a estrutura não sustenta o somático por um excesso ou
por uma carência extremada: insônia, alucinação, risco corporal. É freqüente
observar como o efeito que silencia a distonía derivado tanto pelo excesso como pela
ausência não invocada no dizer, põe em evidência o que não se poderia enunciar pela
palavra.
O psicofármaco na transferência introduz a
questão do corpo como aquilo que deveria ser produzido como ausência de palavra, sem por
isso se perder na não existência. Porque, se dizemos corpo ou psicofármaco, já estamos
metaforizando, como também o fazemos ao nomear algo, por exemplo, cigarro (2).
Ao nomear o fármaco, aludimos ao corpo que o
recebe da mesma maneira que, ao dizer cigarro, o estamos nomeando, sob um efeito de perda
sobre o objeto nomeado.
A introdução de uma metáfora no real deveria
ser levada em conta como uma circunstância possível no uso dos psicofármacos, desde que
consideremos o problema do ponto de vista da transferência. Essa metáfora no real advém
da substituição do fármaco no lugar do corpo, e situa o próprio corpo numa dimensão
de metáfora, para ser então possível a aparição de um dizer.
De certa forma, sugiro que a introdução de um
psicofármaco na transferência produz um efeito que vá além da ação química, ou o
incalculável de um efeito placebo: o consentimento de um sujeito a ser medicado nos
coloca no artifício de ser suporte de uma metáfora no real. E se existe pelo menos uma,
porquê não outras, num efeito metonímico inevitável?
Há pouco observei como um paciente de quem havia
poucas dúvidas de sua estrutura psicótica, melhorava na transferência com a
introdução de um tranqüilizante menor. Não se tratava de um quadro psicótico já
desencadeado, senão do começo de um automatismo mental que o impulsionava perigosamente
à passagem ao ato suicida.
Desapareceu a aceleração do pensamento e a
perplexidade enquanto aceitava a medicação, e iniciava o relato de sua penosa
situação, enquanto -nos bastidores- a psicóloga e o psiquiatra que cuidavam dele
disputavam uma pertinência, pondo em jogo o que se encontrava por trás: uma adoção,
onde agora a mãe, ciente das linhas de disputa, voltava a proteger o filho.
Se considerarmos que a aceitação de um
psicofármaco introduz a questão do corpo na transferência como aquilo que não é da
ordem da palavra, mas que ao mesmo tempo é metáfora no real, podemos sustentar o
critério da menor dosagem possível, já que o fato mesmo de aceitar é um ato para quem
é medicado e, embora mínima, a introdução do fármaco aposta tudo ou nada no que diz
respeito à substituição referida.
Resulta evidente que não se trata do conceito da
dosagem mínima que sustentam os psicofarmacologistas, senão daquilo derivado da
instalação da transferência. Em se tratando das psicoses, é certo que isto tenderia ao
fracasso, porque haveria um ponto em que o fármaco vira aquilo que envenena, onde o soma
volta a aparecer num sofrimento inevitável. Porém, muito bem sabemos que, se aparecer,
tal sofrimento poderia ser atenuado, e o suporte transferencial, se fosse possível
fazê-lo funcionar, traria sem dúvidas a melhora do padecimento.
Referências:
Sylvie Le Poulichet Toxicomanias y
psicoanálisis. Amorrortu, Buenos Aires.
Jacques Lacan Seminário XVIII De um
discurso que no seria de la apariencia. Inédito.
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