Semiótica e psicanálise: pontos de
partida
por Lúcia Santaella
Resumo
Este ensaio está dividido em duas partes. A
primeira delas apresenta uma revisão crítica e a discussão dos vários tipos existentes
de conexão entre semiótica e psicanálise. Na segunda parte, são propostos os caminhos
para uma pesquisa que correlacione C.S Peirce e J. Lacan. Tal correlação enfatiza a
utilização da semiótica peirceana como uma teoria geral e formal de todos os tipos de
semiose possíveis. Sob esse ponto de vista, a psicanálise aparece como um tipo
específico e muito peculiar de semiose.
Abstract
This essay is divided into two parts. The first
one presents a critical review followed by the discussion of the several existent types of
connection between semiotics and psychoanalysis. In the second part, the issues for a
research which correlates C. S. Peirce and J. Lacan are proposed. Such correlation
emphasizes the use of Peircean semiotics as a general and formal doctrine of all kinds of
possible semiosis. From this point of view psychoanalisys appears as a specific and very
peculiar type of semiosis.
*
Antes de expor a possível relação da semiótica com a
psicanálise, que pretendo propor, cumpre discutir as diversas tendências existentes de
relação entre semiótica e psicanálise.
1. Tendências equivocadas
Em primeiro lugar, trata-se de discutir duas
tendências que considero equivocadas. A primeira delas está na identificação da
semiótica com a linguística, uma identificação que desconsidera as fronteiras e
distinções entre ambas. A segunda, até certo ponto ligada a essa primeira, está na
identificação da linguística com estruturalismo e, consequentemente, da semiótica com
o estruturalismo.
É fato notório que, na sua origem, a semiótica
européia, então chamada de semiologia, brotou dentro da obra de um linguísta, F. de
Saussure, inegável pai do estruturalismo linguístico. Contudo, deveria ser notório
também que Saussure (1971) apenas mencionou a necessidade do aparecimento de uma ciência
com a amplitude da semiologia, sem que a ela tenha dispensado mais do que um ou dois
parágrafos de sua obra. Desse modo, se a semiologia foi identificada à linguística
estrutural, esta façanha não se deve a Saussure, mas a Roland Barthes. Em 1964, nos seus
Eléments de sémiologie, Barthes expandiu os conceitos da linguística saussuriana
para uma aplicação em vários outros sistema semiológicos distintos da linguagem
articulada.
Ele abriu seu livro com as seguintes palavras:
"Os Elementos aqui apresentados não têm outro objetivo que não seja tirar da
Linguística os conceitos analíticos a respeito dos quais se pensa a priori serem
suficientemente gerais para permitir a preparação da pesquisa semiológica (1971: 13).
Nisso, Barthes estava certo. Os conceitos
linguísticos (língua-fala, significante-significado, sintagma-sistema e
denotação-conotação) de que se apropriou nos seus Elementos eram
suficientemente gerais e amplos (ou pelo menos foram por ele generalizados) para permitir
a intelecção de sistemas tais como a moda, culinária, mobiliário, arquitetura etc. Mas
é certo também que as generalizações barthesianas não bebiam apenas nas fontes de
Saussure.
Apareciam nos Elementos os frutos de uma
reelaboração ou maior precisão da linguística estrutural à luz de L. Hjelmslev, A.
Martinet e R. Jakobson. Além disso, neles também já se faziam sentir efeitos da
descoberta do fonema (que não foi realizada por Saussure, mas por Trubetskoy), assim como
da antropologia estrutural de Levi-Strauss, então no ápice de sua repercussão no
contexto europeu.
Pode-se dizer que os Elementos apareceram
num momento de inflexão. Meados da década de 1960 marcavam na França o clímax
alcançado pela divulgação dos conceitos saussurianos e início dos idílios, abalos e
atritos que o "método estruturalista" produziria nas diversas áreas das
ciências humanas e sociais. Foi nessa atmosfera que a semiologia começou a brotar. Nessa
medida, seu nascimento, em território francês, ficou marcado pela raiz linguística de
identidade estruturalista.
De meados de 1960 para a frente, contudo, os
destinos do estruturalismo tomaram rumos críticos bastante complexos que vieram
necessariamente trazer consequências para os caminhos da semiologia. Já em 1971, por
ocasião da tradução de seus Elementos para o português, na nota dirigida Ao
Leitor Brasileiro (p. 8), Barthes dizia:
"Faz dez anos que a Semiologia (francesa) se
movimenta consideravelmente: forçada a deslocar-se, a arriscar bastante em cada encontro,
manteve ela um diálogo constante e transformador com: o estruturalismo etnológico
(Levi-Strauss), a análise das formas literárias (os formalistas russos, Propp), a
Psicanálise (Lacan), a Filosofia (Derrida), o marxismo (Althusser), a teoria do texto
(Soller, Julia Kristeva).
É toda esta fulguração ardente, freqüente,
por vezes polêmica, arriscada, que se deve ler retrospectivamente na história da
Semiologia: sendo precisamente a linguagem que questiona continuamente a linguagem, ela
honra, por natureza, as duas tarefas que Brecht assinalava ao intelectual neste período
da História: liquidar (as antigas ideologias) e teorizar (o novo saber, o novo agente, a
nova relação social)".
Mas não foi sem repercurssões o abalo que, na
década de 1970, o pós-estruturalismo, especialmente de M. Foucault e J. Derrida, haveria
de produzir por todos os remanescentes do estruturalismo, assim como foi se tornando cada
vez mais penetrante a influência de J. Lacan sobre alguns intelectuais franceses
previamente engajados no desenvolvimento da semiologia.
É notório, por exemplo, o ocaso do
estruturalismo na obra de Barthes, que coincidiu com o fisgamento crescente de seu
pensamento pelos ensinamentos e escritos de Lacan. O mesmo viria a ocorrer, um pouco mais
tardiamente, com Julia Kristeva que, em 1979, declarou, no II Congresso Internacional de
Estudos Semiótico, em Viena, que a França estava sob o impacto da descoberta de Freud
(!). De fato, de lá para cá, Kristeva foi cada vez mais abandonando as trincheiras de
suas complicadas elucubrações batizadas de semiótica (ver especialmente Kristeva 1974)
para se entregar à atividade de psicanalista e à escritura de livros marcados pela
elaboração de uma psicanálise com cunho imaginário pregnante (cf., por exemplo, 1987a
e 1987b).
Por volta do final dos anos 80, o que restava de
semiótica em sua obra era a oposição entre o registro da linguagem ou simbólico e o
registro semiótico que, para ela, "é o registro dos traços sonoros, visuais,
táteis, olfativos, anteriores ao corte linguístico, logo, anteriores ao sujeito
barrado" (Tenório da Motta 1987: A-42). Hoje, a notoriedade de Kristeva se firmou
entre as feministas norte-americanas e européias.
Em 1975, Philippe Sollers, então figura muito
influente à frente do grupo Tel Quel, em Paris, publicou "Psicanálise e
semiótica: algumas teses" (reeditado em espanhol em 1980). Envolvido na época com a
ideologia maoista, a principal tese de Sollers defendia a relação da psicanálise com o
marxismo, deixando muito vaga a relação entre a psicanálise e a semiótica. A sexta
tese é aquela que deixa mais explícito o teor do breve artigo:
"Um psicanalista que ignore hoje em dia o
materialismo histórico é tão anacrônico quanto um marxista que, por exemplo, não
tenha se dado conta do desaparecimento do `realismo socialista´. Tão anacrônico quanto
um lingüista que seguisse falando da língua como se Joyce e Artaud não tivessem
existido. Tão anacrônico quanto o papa lutando contra o divórcio: logo não terá outro
afazer senão o de benzer os corredores ciclistas".
No contexto parisiense daquele período, quem
ficou imune a Lacan e à psicanálise e que acabou criando escola (a chamada Escola de
Paris) no campo da semiótica foi A. J. Greimas. Embora suas primeiras obras (1966 e 1970)
tenham sido profundamente marcadas pela influência da linguística de L. Hjelmslev, e
mesmo da mitologia estrutural de Levi-Strauss, sua teoria foi gradativamente adquirindo um
perfil próprio e proliferando na produção de seus discípulos, que não são poucos. Na
sua evolução, sua teoria foi se constituindo numa semiótica de base semântica,
narratológica e discursiva.
Diante de tudo isso, além da vida curta, os Elementos
tiveram poucos seguidores, visto que, embora o grupo de investigações
semio-linguísticas, que se formou em Paris, também partisse de postulações similares
às dos Elementos, na busca de ampliação de conceitos lingüísticos e discursivos para
cobrir campos semióticos não-lingüísticos, as pesquisas semio-lingüísticas estão
mais conectadas à escola greimasiana do que às raízes da semiologia inspirada em
Barthes.
De todo modo, sob um olhar retrospectivo,
torna-se evidente que as propostas de uma semiologia de base estruturalista foram
historicamente atropeladas pelas críticas advindas do pós-estruturalismo, de um lado, e
abalroadas pela subversão psicanalítica, de outro. Além disso, foram cada vez mais
colocados em questão os limites dos conceitos linguísticos para a análise dos sistemas
de signos não-verbais. O caso da música, por exemplo, é típico. Os conceitos da
lingüística são capazes de evidenciar o que há de semelhante entre música e língua,
fala e discurso, mas falham na revelação do que difere.
Ora, o que difere é justo aquilo que faz da
música o que ela é: música e não verbo. Nessa medida, foi caindo cada vez mais no
descaso a proposta barthesiana, formulada nos Elementos (p. 13), de revirar a
proposição de Saussure de que a linguística seria uma parte da semiologia. Segundo
Barthes, "a Semiologia é que é uma parte da Linguística; mais precisamente, a
parte que se encarregaria das grandes unidades significantes do discurso. Daí surgiria a
unidade das pesquisas levadas a efeito atualmente em Antropologia, Sociologia,
Psicanálise e Estilística acerca do conceito de significação". Creio não ser
preciso pôr em discussão a exacerbação verbalista dessa formulação, visto que o
filtro do tempo já deu conta de colocá-la no olvido.
O breve retrospecto, acima traçado, já permite
demonstrar que a relação da linguística estrutural com a semiologia foi um fenômeno
mais propriamente parisiense (e, evidentemente, epigonal nos países sobre os quais Paris
exerce influência), o que não parece autorizar a generalizada confusão da
identificação da semiótica com a linguística de base estruturalista. Há outras
vertentes da semiótica, por exemplo, a alemã (cf., especialmente, os mais de 20 anos de
publicação da revista Zeitschrift für Semiotik, assim como as publicações
sobre semiótica cultural evolutiva do grupo de Bochum sob a liderança de Walter Koch).
Há ainda a vertente norte-americana, que não se restringe à extração peirceana, como
erroneamente se supõe.
Basta conferir, de um lado, a extensíssima obra
do legendário semioticista, biólogo e antropólogo Thomas A. Sebeok (1979, 1980, 1981,
1985, 1986, 1991, 1994 ,para só citar algumas de suas publicações) e, de outro lado, os
livros de J. Deely (1990, 1994). Essas vertentes diferem da francesa e nem longinquamente
podem ser confundidas com a linguística estrutural. Há ainda a vertente russa que, mesmo
trazendo as marcas do estruturalismo checo e do formalismo russo, essas marcas se
plasmaram num caldeamento de fontes e influências amplas que não podem ser reduzidas a
uma determinação meramente estruturalista [cf. Toledo org. (1975), Daniel P. Lucid org
(1977), Schnaiderman org. (1979), Lotman et al. (1979), Lotman et al. (1981), H. Broms and
R. Kaufmann, eds. (1987)].
2. O outro lado da moeda
Se as propostas de uma semiologia subjugada à
linguística não chegaram a vingar e deitar raízes mais fundas, o mesmo não se pode
dizer dos conceitos linguísticos formulados por Saussure. As oposições entre língua-
fala, significante-significado, diacronia-sincronia, sintagma-paradigma incorporam-se
indelevelmente em todos os campos das ciências humanas, tornando-se vocabulário
obrigatório inclusive das teorias que pretendiam criticá-las. Em Lacan, para citar o
caso que nos interessa neste ensaio, essas oposições são termos correntes.
Embora tenha se iniciado na psicanálise, já em
1936, pela porta do imaginário, com seu famoso ensaio sobre o "Estádio do
Espelho" (1971), o Lacan que, durante algum tempo, ficou mais conhecido foi o Lacan
do simbólico. Não há dúvida de que o simbólico é, nos seus escritos, uma noção
bastante complexa e multidimensional. A mais evidente dentre essas dimensões é aquela
formulada a partir da noção de significante. Ao fazer uso de conceitos de Jakobson, seu
mestre e amigo, o pensamento de Lacan foi dominado por oposições binárias. Do
estruturalismo, ele adotou dicotomias tais como significante e significado, língua e
fala, metáfora e metonímia como instrumentos para a sua releitura de Freud. Também
estruturalista foi sua adoção da teoria saussuriana da qualidade diferencial do signo e
de suas determinações pelas estruturas do sistema.
Reinterpretando o modelo saussuriano do signo,
Lacan argumentou que a fórmula seguinte
indica duas coisas: (a) a dominância do
significante sobre o significado e (b) a fronteira primordial entre os dois lados do signo
(indicada pela linha separando os dois níveis).
Para Lacan, essa barreira indica um hiato entre
os dois lados do signo, que proibe qualquer acesso de um lado para o outro. É uma ilusão
acreditar no significante como uma representação do significado, visto que nenhuma
significação pode ser mantida a não ser por referência a um outro significado. Assim,
Lacan concluiu que é na cadeia da fala que o significado insiste, sem que nenhum de seus
elementos consista na significação da qual ele é capaz num dado momento. Com isso,
Lacan corroborou as teorias freudianas sobre a função dos signos no sonho, pois o
significado dos sonhos na cadeia significante está na cadeia significante ela mesma e
não além de seus significantes (Noth 1990: 302-303).
É certo, portanto, que o significante lacaniano
subverteu a barra do algoritmo saussuriano. À correspondência par a par entre
significante-significado proposta por Saussure, Lacan (1966: 255-263) contrapôs a
insistência da cadeia significante em oposição ao deslizamento do significado. Além
disso, o termo significante adquiriu, na psicanálise lacaniana, uma potência que jamais
teve em Saussure, o que não deixou de ser enfatizado por Lacan (1985: 73):
"O que me importa não é esgotar uma
filosofia da condição humana; o que me importa definir de minha posição de analista, e
o que me parece para todos extremamente importante, é que esta posição particular
de onde parto e para onde retorno- destaca como valor fundamental certa relação
do homem com o significante. Creio que é isto que define o campo que descobrimos mediante
a análise e tudo que está verdadeiramente envolvido pela análise está nesse
campo".
Também fundamentalmente estruturalista e
importante para a compreensão das re-facções a que Lacan submeteu o conceito de
significante foi a revolucionária descoberta linguística do fonema como unidade (forma
abstrata) elementar da língua, feixe de traços distintivos que instaura a ordem
significante como repetição, diferença e negatividade (ver Jakobson 1967). De outro
lado, também fundamental para Lacan foi a oposição entre metáfora e metonímia, esta
extraída de Jakobson (1973: 34-72), mas apresentando uma correspondência perfeita com a
oposição saussuriana entre paradigma e sintagma, isto é, os dois eixos interdependentes
de estruturação dos elementos linguísticos.
O sintagma ou eixo metonímico se refere às
combinações das unidades linguísticas que compõem um contexto. Essas unidades vão
desde as unidades menores, os fonemas, até as unidades maiores, as frases ou contexto
ainda maiores do que a frase, o que faz do sintagma uma organização linear de elementos
dispostos uns após os outros. Na sentença "O menino caiu", por exemplo, cada
palavra é composta por unidades menores, como no caso de / m/, / e/, / n/, / i/, / n/, /
o/, que, por sua vez, como palavra se une a outras palavras formando uma sequência
significativa ou sentença.
Contudo, os elementos que se combinam em
sintagmas são elementos substituíveis, isto é, pertencem ao que podemos denominar um
elenco de elementos que a eles se assemelham ou a eles equivalem, podendo ocupar a mesma
posição no sintagma. Assim, na palavra /som/, o fonema /s/ do início poderia ser
substituído por /d/ e teríamos /dom/, por /t/ e teríamos /tom/, e assim por diante. O
contexto vai se modificando pela substituição dos elementos, o mesmo ocorrendo no nível
das frases, onde / menino/, na sentença "O menino caiu" poderia ser
substituído por /guri/, /caiu/, por /escorregou/ etc. Portanto, esses elementos são
substituíveis e equivalentes funcionalmente, sua função dependendo da posição que
ocupam no sintagma. É por isso que se diz que o paradigma ou eixo metafórico é o eixo
da seleção, dos elementos que se associam em ausência, enquanto o sintagma é o eixo da
combinação ou dos elementos que se combinam em presença, quer dizer, um depois do
outro.
Embora a linguística estrutural tenha tornado
famosa a dicotomia acima, pode-se afirmar que a descoberta dessa dicotomia é muito
anterior à linguística moderna. Na sua releitura dos empiristas ingleses, Peirce (CP
7.391-498) já dizia, no século passado, que as associações por contiguidade e
similaridade são as duas leis da mente. E são tão gerais que estão para a mente assim
como a lei da gravidade está para a natureza. De fato, em todo e qualquer sistema de
signos, verbais, não-verbais, e talvez até mesmo naturais, as mensagens se organizam de
acordo com esses dois eixos. E não foi outra coisa senão a operacionalidade deles, nos
processos de fragmentação, deslocamento, identificação e condensação que Freud
descobriu no funcionamento do sonho como linguagem.
Portanto, quando Lacan retomou de Jakobson as
noções de metonímia e metáfora, ele estava reinterpretando os eixos de estruturação
do sonho à luz das novas elaborações da linguística para as quais Freud, de maneira
indireta, também deu suas contribuições.
Frente a tudo isso, não se pode desprezar a
importância das descobertas da linguística para o pensamento lacaniano, especialmente o
Lacan do simbólico (cf. Miller 1984: 14-15). Muitas são as passagens em que Lacan, ele
mesmo, confessa seu débito para com a linguística, cujas descobertas lhe deram apoio
sólido (1979: 26) para o tratamento mais preciso de muitas das formulações freudianas
que, aliás, indiscutivelmente anteciparam a chegada da linguística.
Entretanto, se, de um lado, Lacan aderiu, até
certo ponto, ao estruturalismo, de outro lado, seu pensamento foi, cada vez mais
radicalizando esse paradigma, e, de uma certa forma, subvertendo-o. Quanto mais se
aproximava do real e dos seus conceitos, tais como exemplarmente o conceito de objeto
pequeno a, ou objeto faltante, causa do desejo, quanto mais radicalizava a noção de
letra, como significante fora do simbólico, mais as palavras "estrutura",
"linguagem" e mesmo "língua" foram sendo ressignificadas, nos seus
seminários, em prol de uma linguisteria irredutíval à linguística (cf. Souza Leite
1995: 360-42).
Daí decorre que, quanto mais Lacan se afastava
do paradigma da linguística, rumo à descoberta do impossível do real, daquilo que há
de impossível de ser simbolizado no real, quanto mais descobria as antinomias e
incompletudes do simbólico, tanto mais Lacan aproximava a psicanálise de um paradigma
mais propriamente semiótico, especialmente daquele conceituado por C.S Peirce, pois não
parece haver existido qualquer pensador que tenha levado a noção de incompletude do
signo a consequências lógicas tão radicais quanto Peirce.
Há, de todo modo, um ângulo eminentemente
linguístico na psicanálise lacaniana. Embora Lacan (1982: 25) tenha procedido à
transfiguração da linguística em lingüisteria, seu ponto de partida eminentemente
linguístico não pode ser desconsiderado, sob pena de só se compreender muito
metaforicamente o papel que o registro simbólico desempenha em sua teoria, assim como
fica difícil entender estruturalmente tanto o automatismo da repetição quanto a
célebre afirmação de que "o inconsciente está estruturado como uma
linguagem" junto ao postulado de que "a linguagem é a condição do
inconsciente". Neste ponto, contudo, cumpre pôr em evidência uma curiosa
conversão.
3. Entre a semiótica e a linguística
Se, de um lado, a linguística é um pressuposto
para a intelecção da complexidade do registro simbólico, a heterogeneidade dessa
noção em Lacan é tamanha que transcende, de longe, os limites das bases linguísticas,
passando a adquirir uma natureza mais propriamente semiótica. O postulado, por exemplo,
de que o "falo é um significante"(1978: 267), assim como a impossibilidade de
se pensar o significante sem seu resto, o objeto a, são articulações que estão
mais perto de indagações semióticas do que linguísticas.
Consequentemente, se entramos nos escritos
lacanianos pela porta da linguística, é pela casa da semiótica que precisamos caminhar
neles. O processamento analítico, por que passam os conceitos, converte-os em conceitos
semióticos, visto que não é a fala em si, sua estrutura e procedimentos apenas que
estão em jogo, mas também as condições, implicações e efeitos da fala no sujeito,
além da sobre-determinação como condição de toda formação do inconsciente. Se a
cena da fala é linguística, a "outra cena", que faz desfalecer a fala, para
fazer falar o sujeito do inconsciente, por ser lingüistérica, é necessariamente
semiótica.
Pelas razões acima esboçadas, grande parte dos
estudos que pretendem estabelecer a relação entre semiótica e psicanálise, quando
utilizam uma base conceitual advinda da linguística, acabam sendo (mesmo se não
reconhecem isto) estudos semióticos graças à própria psicanálise e não à
linguística. Isso evidentemente, quando mergulham, de fato, nos entreveros
psicanalíticos. Nesse caso, então, é a psicanálise que transforma os conceitos
linguísticos em semióticos, até o ponto de podermos afirmar que é na psicanálise,
especialmente a de Freud e Lacan, onde mais perfeitamente se realiza a semiótica do
verbal, isto é, daquilo que há de não-verbal no verbal.
Também psicanalítica é a semiótica que se
desenvolve através das interações da teoria analítica do sujeito com a semiótica
discursiva (cf. Tasca 1987, 1989). Uma tal interação é oportuna porque problematiza as
noções do sujeito do discurso, vigentes na semiótica discursiva: sujeito enunciante,
sujeito-actante, destinatário-sujeito, sujeito modalizado etc. todas elas noções de
sujeito que, em todas as suas variações, ainda permanecem dentro da tradição anterior
aos abalos sísmicos da subversão freudiana.
Há ainda uma outra tendência batizada de
semiótica e psicanálise que vale a pena ser discutida.
4. Intersemiose, interdisciplinaridade ou psicanálise aplicada
Trata-se das leituras de sistemas ou processos de
signos não-verbais, tais como cinema, pintura, teatro, música, arte (cf. Chnaiderman
1989, Cesarotto 1999) que utilizam, digamos, um filtro psicanalítico para suas
interpretações. Ainda dentro de uma tendência similar, aparecem as relações entre
poesia e psicanálise, literatura e psicanálise. Tais relações se processam em dois
níveis: (a) ou são realizadas simplesmente leituras psicanalíticas de obras
literárias, (b) ou então teorias e textos literários são chamados a colaborar no
entendimento de questões psicanalíticas e vice-versa.
Neste caso, há uma troca complementar, na qual
textos poéticos e a teoria da poesia podem iluminar a complexidade psicanalítica, por
exemplo, do real e da verdade (cf. Chalhub 1993, 1998), assim como a descrição dos
mecanismos, que operam nas formações do inconsciente, podem auxiliar na compreensão das
formações do inconsciente. Tanto no caso da aplicação da psicanálise a sistemas de
signos não-verbais, quanto no caso das relações da psicanálise com a poesia e
literatura, resta levantar uma pergunta: por que esses estudos recebem o nome de
semióticos?
Tornou-se voz corrente chamar semiótico todo e
qualquer estudo que envolva as linguagens não-verbais, o que equivale a tomar o
semiótico como oposto ao verbal, quer dizer o que não é lingüístico é, por
conseqüência, semiótico. Há aí um pequeno equívoco que precisa ser sanado. A
semiótica abrange todo e qualquer processo de signo, inclusive os verbais. Nessa medida,
não há entre a semiótica e a lingüística o drástico antagonismo que se costuma
pregar. A diferença reside, de um lado, na especificidade da lingüística como estrita
teoria do verbal e, de outro, no modo como a semiótica enxerga o próprio verbal, isto
é, como uma trama inextricável de traços verbais e não-verbais, ou melhor,
intersemióticos (pelo menos esta é a postulação da semiótica peirceana, sobre a qual
discorrei adiante).
Disso se pode concluir que o fato de se estar
trabalhando com signos não-verbais não caracteriza, por si só, um trabalho como
semiótico, Há leituras estritamente verbalistas e eminentemente lingüísticas do
universo não-verbal, como é, muitas vezes, o caso das análises do discurso. Assim,
também, quando se trata de leituras psicanalíticas de linguagens não-verbais, se o
substrato teórico, que informa as interpretações, vem apenas da psicanálise, não é
ponto pacifico que se tem aí um estudo semiótico. O julgamento, porém, deve ser feito
caso a caso, levando-se em consideração o relevo que é dado ou não à linguagem. Isto,
para que não se confunda com semiótica toda e qualquer modalidade de psicanálise
aplicada.
Do mesmo modo, as relações entre psicanálise e
literatura caracterizam-se, em primeira instância, como interdisciplinares e não
necessariamente semióticas. Novamente aqui, as fronteiras devem ser observadas caso a
caso. Se a relação interdisciplinar é de natureza intersemiótica, isto é, de
confronto complementar das questões de linguagem entre um campo e outro, então o estudo
é nitidamente intersemiótico. Isto também para que não se confunda toda e qualquer
aproximação interdisciplinar com semiótica. Evidentemente, o deslinde dos limites entre
essas áreas nunca é tácito. Na maior parte das vezes, há misturas, desequilíbrios,
pretensões de fazer semiótica que não saem do terreno da psicanálise e vice-versa. De
todo modo, vale o alerta para que semiótica não se veja convertida em saco de gatos
pardos e indefinidos.
5. Por que Freud e Lacan?
Durante este ensaio, só fiz menções à
psicanálise em nome de Freud e Lacan. É isto casual? Ou tendencioso?
Dentre todos os campos do saber relacionados às
humanidades, com exceção da linguística que, evidentemente trabalha com e sobre a
linguagem verbal, a psicanálise é aquela que não pode, de modo algum, dispensar de suas
indagações as questões da linguagem e dos processos sígnicos. Não importa qual seja a
linha adotada pela psicanálise, o problema da linguagem acaba sempre tendo de ser levado
em conta. Mas uma vez que é na psicanálise freudiana e na lacaniana onde as questões da
linguagem são enfrentadas frontalmente, são essas linhas da teoria psicanalítica que
estão sendo aqui favorecidas.
De fato, não há psicanálise sem linguagem. No
seu nível mais superficial, isso já é verdadeiro porque a clínica psicanalítica não
pode prescindir da linguagem. A regra fundamental do tratamento psicanalítico - que o
paciente fale, simplesmente fale, o que lhe vem à cabeça - é evidência cabal da
posição fundante ocupada pela linguagem na clínica. Num nível menos superficial, à
luz de Freud e Lacan, todas as formações do inconsciente, através das quais ele
aparece, dependem da linguagem para seus aparecimentos. Ficou conhecida a afirmação
lacaniana de que "a linguagem é condição do inconsciente". (Lacan
1993). Num nível de maior complexidade, além das formações do inconsciente serem
precondicionadas pela linguagem, sob um ponto de vista semiótico, elas são, nelas
mesmas, formações sígnicas que apresentam um estatuto próprio. Por isso mesmo, ganhou
celebridade o axioma, enunciado por Lacan em 1953, de que "o inconsciente está
estruturado como uma linguagem" (cf. Miller 1987: 15).
Para corroborar nossa propensão para Freud e
Lacan, há duas passagens de N. Tasca (1987: 82-83), que são bastante oportunas. No
tocante a Freud:
"Se existe uma prática psicanalítica que
extrai o sujeito da linguagem, dela o dissociando, esvaziando assim o seu lugar para
aprendê-lo na sua in-existência através de significações apriorísticas, que nutrem,
aliás, as certezas de certos lingüistas e mesmo semioticistas, a verdade é que, para a
psicanálise freudiana, se impõe a consideração do sujeito na e a partir da linguagem,
o seu discurso dela procedendo, sendo, para o analista, o único documento onde fundar a
análise da transferência, dele dependendo a investigação do inconsciente".
No tocante a Lacan, a autora continua:
"Foi partindo da matriz freudiana que é Die
Traumdeutung, texto reconhecido pelo semioticista como um notável trabalho de
análise semiótica avant la lettre (Greimas e Courtes 1979: 302), que J. Lacan
postulou a linguagem como primordial para a constituição e estruturação do ser
falante, encontrando neste sentido as proposições de E. Benveniste, ele próprio não
indiferente à psicanálise, e as do semioticista. Afirmar que, para além do domínio
circunstancial da fala, a prática analítica localiza no inconsciente a estrutura da
linguagem (Lacan 1966), não significava somente advogar a reabilitação desta prática,
convidando o psicanalista a uma travessia do puramente contingente, para ouvir na e apesar
da fala a mensagem inconsciente ou verdade subjetiva."
"De fato, a tese que a partir daí se
explica o inconsciente é estruturado como uma linguagem diz respeito à
divisão inaugural do sujeito (Spaltung), que o torna dependente de dois registros
heterogêneos (o consciente e o inconsciente)".
Essas passagens de Tasca nos revelam que a
primazia, que é dada a linguagem tanto em Freud quanto, e mais pronunciadamente, em
Lacan, cria um pólo de atração natural desses autores com a semiótica. Embora possam
existir cruzamentos da semiótica com outras correntes da psicanálise, nunca serão
cruzamentos viscerais, visto que a exclusão ou negligência da linguagem, em qualquer
área que seja, psicanalítica ou não, só pode permitir intercâmbios temáticos e
conteudistas, que muito pouco oxigenam o centro cardíaco da semiótica, que se localiza
muito justamente nas questões de linguagem.
Isto posto, creio que é chegada a hora de
formular, num traçado geral, a veia especifica da semiótica e psicanálise que pretendo
propor: a relação Peirce-Lacan.
6. Para introduzir Peirce
Alguns esclarecimentos prévios sobre o caráter sui-generis
da semiótica peirceana são aqui necessários. Peirce é o criador de um sistema
filosófico concebido como ciência. Sua aproximação da filosofia se deu a partir das
ciências e através da lógica, mais particularmente da lógica da ciência. Trata-se,
pois, de um cientista e lógico que levou o espírito da investigação científica para
dentro da filosofia, postulando que as disciplinas filosóficas são ou podem se tornar
ciências. Propunha, assim, aplicar, dentro da filosofia com as modificações
necessárias os métodos de observação, hipótese e experimento que são
praticados nas ciências.
No entanto, sua concepção de ciência, batizada
de falibilismo. ou seja, a teoria de que nosso conhecimento nunca é absoluto, mas sempre
navega num continuum de incerteza e indeterminação (cf. Santaella 1988 67-75) em
nada se assemelha a quaisquer versões positivistas, neo-positivistas ou pós-positivistas
de ciência. Não é função deste ensaio demonstrar essas diferenças. Chamo atenção
para elas para evitar malentendidos desnecessários. A semiótica é, assim, uma entre as
disciplinas filosóficas, que se incrustam no gigantesco sistema filosófico peirceano,
este entendido mais propriamente como sistema de pensamento científico que é, por sua
vez, entendido de modo rigoroso, mas inelutavelmente falível.
Peirce, ele mesmo, estava perfeitamente
consciente do caráter intensamente diferencial de sua obra que, segundo ele, "tinha
pouco em comum com as doutrinas das escolas modernas" (apud Ketner 1983 69). Essa
declaração, que já era verdadeira no início do século XX, hoje, um século depois,
continua tão ou mais verdadeira. É isso que levou Ketner (1983 81) a afirmar:
"Creio que ainda temos dificuldade para
interpretar Peirce corretamente porque freqüentemente achamos que sua obra está, de
algum modo, em sintonia com o estilo de pensamento de nossa era, mas ela não está.
Podemos facilmente (e com recompensas consideráveis) começar a construir uma
compreensão correta da obra peirceana (algo que ainda nos falta) se procedermos de uma
maneira científica".
Evidentemente essa afirmação tem de ser lida
com alguns adendos. Primeiro, ela não significa que não há atualidade no pensamento de
Peirce. Se devotamos aos seus escritos o tempo que eles exigem, sem a ansiedade das
finalidades imediatas, se conseguimos entendê-lo nos termos que ele propõe, sem
asfixiá-lo num círculo de analogias, mais aparentes do que verdadeiras, com outros
possíveis autores e obras, as recompensas que advêm não são poucas.
Uma delas está no poder que seu sistema de
pensamento científico tem para nos ajudar a detectar formas emergentes de pensamento e
questões complexas com que o mundo contemporâneo nos desafia. Peirce não estava
brincando, nem blefando quando, castigado pela solidão e miséria, numa carta de 1911, em
tom desolado, mas ainda irônico, dizia a L. Welby:
"Para lhe dizer a pura verdade, sei que
tenho pensamentos que seriam de grande utilidade para o mundo e que, por um longo tempo,
ninguém tem probalidade de alcançar as mesmas verdades. Mas assim mesmo, devido à minha
obscuridade a falta de informação, seria bem melhor eu procurar meu túmulo tão
depressa quanto possível" (Hardwick, ed. 1977: 147).
Para, de certa forma, justificar essa certeza de
Peirce, é preciso, no entanto e este é o segundo adendo à afirmação de Ketner,
citada acima levar em consideração o fato de que o sistema peirceano de
pensamento é arquitetônico, funcionando como uma Gestalt. Desligados do conjunto,
seus conceitos perdem seu sentido e poder heurístico. Conhecer e entender Peirce, nessa
medida, não significa gravar na memória uma somatória de definições, ou isolar uma
pequena parcela de sua teoria como se essa parcela tivesse auto-suficiência. Peirce é um
antídoto contra as formas de especialização que são cegas à Gestalt do
universo e da vida.
É claro que a cartografia do sistema peirceano
não é algo que possa ser apreendido sem a demorada convivência e intimidade com seus
escritos. Mas o caminho para apreender sua gestalt está se tornando cada vez menos
obstruído. A Brief Intellectual Auto Biography by Charles Sanders Peirce, por
exemplo, nas palavras de seu editor (Ketner 1983: 61) funciona como "um breve,
mas confiável guia para o pensamento peirceano, que apresenta sua estrutural geral e como
a semiótica se encaixa nela". Mais longo, mas não menos iluminador é
também MS L75, que se constitui em precioso documento que Peirce nos fornece das misturas
inseparáveis entre sua vida e obra. Nesse MS, a sequência de suas descobertas é
claramente apresentada, ao mesmo tempo em que as partes de sua obra vão gradativamente se
integrando numa vasta topografia. Outra obra fundamental são os dois volumes de Essential
Peirce (Houser ed. 1992, 1998).
7. Semiótica geral e semióticas especiais
Embora a questão sobre "Just how general is
Peirce's general theory of signs" já tenha sido discutida por Fisch (1983: 55-60) e
retomada por Colapietro (1989: 1-25), esse assunto merece ser enfatizado. Não é apenas a
semiótica ou a formal e quase necessária doutrina dos signos que é abstrata e geral. De
acordo com a concepção arquitetônica das ciências, só a matemática seria mais geral
do que seu sistema de pensamento científico. Então, dentro deste, as hierarquias também
não podem ser desprezadas. Assim como a fenomenologia é uma fundação para as ciências
normativas, estas são uma fundação para a metafísica. Dentro das ciências normativas,
a lógica ou semiótica tem seu alicerce na ética e esta na estética (para mais detalhes
ver Santaella 1992).
Ao se referir ao seu pragmastismo, Peirce dizia:
"Parece-me que sou, no presente, o único
repositório do sistema (pragmatismo) completamente desenvolvido, que só funciona com
todas as suas partes e não pode ser apresentado em fragmentos. A minha visão de 1877 era
grosseira. Mesmo quando fiz as conferências de Cambrigde não tinha chegado ao fundo ou
visto a essência da coisa toda. Foi só depois que a prova de que a lógica deve estar
fundada na ética, da qual é um desenvolvimento mais elevado. Mesmo então, fiquei
estupidamente sem ver que a ética assenta no alicerce da estética, com o que, não
preciso dizer, não me refiro a leite, água e açucar. Essas três ciências normativas
correspondem às minhas três categorias (...). A verdadeira essência do pragmatismo não
pode ser entendida sem elas" (CP 8255-256).
Aí está, em poucas palavras, a relação do
pragmatismo com o todo do sistema, assim como aí estão configuradas as mais amplas
hierarquias internas do sistema (há outras menores dentro destas maiores). Creio que a
apreensão dessas hierarquias é o beabá para quem quiser começar a compreender
Peirce. Estudar a semiótica, por exemplo, ignorando sua fenomenologia, é tão fora de
mão quanto estudar sua metafísica ignorando a semiótica, assim como só pode gerar
confusões desnecessárias querer compreender seu pragmatismo sem ter passado antes ou
simultaneamente pela compreensão do sistema como um todo.
As hierarquias ainda não param aí. Para Peirce,
o todo do sistema filosófico cientificamente concebido, tal como ele pretendia
devolvê-lo, deveria funcionar como fundação para todas as outras espécies de
possíveis ciências (ver Eisele, ed 1976: vol. IV, 185-199). Como uma teoria sígnica do
conhecimento (ver Oehler 1979), o sistema peirceano não se propunha, portanto, apenas
como um sistema de pensamento científico, mas também como um sistema para o pensamento
científico. Esse foi o sonho de Peirce:
"...delinear uma teoria tão compreensiva
que, por um longo tempo, o trabalho inteiro da razão humana, na filosofia de todas as
escolas e espécies, na matemática, na psicologia, na ciência física, na sociologia, e
em qualquer outro departamento que possa haver, deverá aparecer como o preenchimento de
seus detalhes. O primeiro passo para isso é encontrar conceitos simples aplicáveis a
qualquer assunto". (Peirce, Prefácio aos CP, vol. I)
A interação do seu sistema com qualquer
ciência especial deve ser feita, portanto, levando-se em conta a diferença de graus de
abstração entre ambos e o caráter de fundação epistemológica que Peirce dá ao
signo. Se não estivermos alertas a esses fatores, qualquer comparação entre os
conceitos peirceanos e os conceitos de qualquer ciência ou teoria mais especializada não
tem o rendimento que deveria ter e fica certamente em dívida com o potencial dos
conceitos peirceanos. Interessante notar que, quando comparações dessa ordem são
feitas, é sempre Peirce quem sai perdendo. A abstração de seus conceitos é abaixada
até atingir o grau de abstração menos genérico dos conceitos das outras ciências ou
teorias que são chamadas à comparação.
Não estou querendo insinuar que, por ser mais
abstrata, a teoria peirceana é superior a qualquer outra. Não se trata disso. A questão
real é, isto sim, levar em consideração aquilo que uma teoria visa atingir, a que
finalidades ela se presta. A teoria peirceana é tão ampla a geral a ponto de ser capaz
de servir de fundação para qualquer outra teoria de qualquer espécie. Sob esse aspecto,
o sistema peirceano funciona muito mais como uma infra teoria do que como meta teoria. É
por isso que a semiótica geral pode nos fornecer subsídios para analisar quaisquer
semioses especiais, sejam elas vegetais, animais, humanas, psíquicas, sociais, celulares,
neuronais e provavelmente estelares.
Sendo geral, a semiótica peirceana é feita de
definições abstratas e vazias de conteúdos materiais específicos. São as teorias
especiais (ciências idioscópicas) com suas semioses específicas que funcionam como
preenchimento dos detalhes, trazendo estofo material para os diagramas lógico-formais do
sistema peirceano, ao mesmo tempo que esses diagramas ajudam a mapear e compreender o modo
como cada ciência delimita e configura seu campo de conhecimento. Nessa medida, o
dialogismo está no cerne não apenas da noção de signo, mas da própria concepção do
sistema peirceano (Santaella 1986a). Seu sistema é proposto para a intelecção dos
fundamentos epistemológicos e configurações conceituais das ciências especiais, quer
elas se considerem ou sejam consideradas ciências ou não, como é o caso da psicanálise
(questão, aliás, que seria motivo para uma longa discussão que, infelizmente, não cabe
nos limites deste ensaio).
8. Peirce e Lacan: uma investigação em progresso
A primeira coisa a lembrar, antes de propor a
relação Peirce-Lacan, é o fato de que o diálogo entre o sistema peirceano e qualquer
outra ciência especial não produz grandes rendimentos se as comparações forem feitas a
nível de fragmentos de ambas as partes. Sob este aspecto a teoria lacaniana é exemplar,
visto que ela se estrutura notadamente dentro de uma rede conceitual topológica que não
pode ser fragmentada, sob pena de se perder a função que cada conceito desempenha no
conjunto.
Se enfatizei a importância da integridade do
todo do sistema peirceano, assim como estou agora enfatizando a importância da visão do
conjunto da teoria lacaniana, isso significa que o diálogo entre ambas se estabelece de
par a par, no mesmo nível? Não, visto que cumpre evidenciar que a teoria lacaniana
trabalha sobre um campo bem específico: o do funcionamento do aparelho psíquico humano,
tal como ele se estrutura sob as determinações e sobre-determinações da realidade
sexual inconsciente.
À primeira vista, não parece haver nada em
comum entre a arquitetura filosófica de Peirce e a teoria lacaniana. Na superfície, de
fato, nada as aproxima. Contudo, devemos ponderar: o sistema peirceano, na sua alta
generalidade, propõe fornecer subsídios lógicos para o exame de quaisquer semioses
especiais. Por que, então, não forneceria esses subsídios para o exame da semiose
psíquica tal como esta se estrutura sob as determinações do inconsciente? Aliás,
reconhecer que a teoria lacaniana trata de um tipo de semiose, a psíquica, e, dentro
desta, reconhecer um subtipo, aquela semiose que se estrutura sob as determinações do
inconsciente, já são modos de reconhecimento de caráter semiótico.
Ou seja, é o sistema peirceano que nos permite
perceber o mapeamento e delimitação desse campo de conhecimento como um tipo especial de
semiose, assim como nos permitirá, caso seja necessário, perceber as interfaces
complementares ou conflituosas que o mapeamento desse tipo especial de semiose mantém com
outras semioses especiais, que se limitam com a semiose psíquica, tal como a psicologia
cognitiva ou a etologia, por exemplo. Não tenho a intenção, nem caberia aqui aprofundar
a discussão dessas interfaces, na maior parte das vezes bem conflituosas. Pretendo apenas
indicar, de modo breve, através de exemplos, como as propostas de dialogismo, que
teoricamente o sistema peirceano permite, podem se concretizar.
Seguindo mais um passo na consideração da
relação Peirce-Lacan, veremos que uma compreensão da globalidade da teoria lacaniana
evidencia que sua estrutura está alicerçada na divisão do campo psíquico em três
grandes registros. Esses registros, que Lacan (1953: 2) chamou de categorias essenciais da
realidade humana, são o registro do Imaginário, Simbólico e Real. Numa das
apresentações desses três registros, Lacan (apud Ballat 1986b) faz referência
explicíta à lógica triádica de Peirce, na qual seus registros estão baseados:
"Alguém chamado Charles Sanders Peirce construiu sobre isto a sua própria lógica
que, dada a ênfase que ele coloca sobre a relação, o conduz a fazer uma lógica
ternária. É exatamente essa mesma via que eu sigo, com a diferença de que eu nomeio as
coisas em questão pelo nome- simbólico, imaginário, real".
Essa é evidentemente uma relação explícita,
que permite uma comparação imediata entre Peirce e Lacan. Mas uma tríade similar já
estava em Freud (id, ego e super-ego), e Freud nunca chegou a conhecer Peirce. Aponto para
este fato para evidenciar que a correlação entre Peirce e Lacan já seria possível,
mesmo que Lacan não tivesse se baseado em Peirce na divisão dos seus três registros.
Tanto ela seria possível que outras comparações de tópicos que não foram baseados em
Peirce também são possíveis.
Desse modo, além da correlação entre
Imaginário e a categoria fenomenológica peirceana da Primeiridade, Real e a categoria da
Secundidade, Simbólico e a categoria da Terceiridade, que é uma correlação ampla, e,
por isso mesmo, vaga, pode-se avançar no confronto, quando os conceitos lacanianos são
incrustados na configuração semiótica compreensivamente articulada. Uma vez que essas
articulações foram explicitadas em Santaella (1999), limito-me a seguir a apresentar um
breve panorama delas.
Como se sabe, para Peirce, o signo é uma
relação triádica entre um primeiro, o signo, que representa, indica ou sugere um
segundo, seu objeto, para um terceiro, ou seja, produz algum tipo de efeito em uma mente
atual ou pontencial, que vem a ser o interpretante do signo. Tomando-se essa lógica
relacional como parâmetro, tem-se que a pulsão, sob a dominância do Real, localiza-se
na posição lógica do Objeto, a demanda de amor, que está sob a dominância do
Imaginário, situa-se na posição do Signo, e o desejo, sob a dominância do Simbólico,
situa-se na posição do Interpretante. Essas posições lógicas ajudam a compreender as
intrincadas e indissolúveis interações entre os três registros lacanianos (com seus
conteúdos específicos: pulsão, amor e desejo), assim como plantam esses registros no
mapa lógico da estrutura semiótica.
Essa análise pode ganhar grandemente em
precisão e detalhes se as articulações semióticas forem microscopicamente aprofundadas
pela consideração dos tipos de objetos. Segundo Peirce, há dois tipos de objetos: o
Dinâmico, aquilo que está fora do signo e que o signo representa, indica ou sugere, e o
objeto Imediato, que está dentro do signo e que apresenta algum tipo de correspondência
com o objeto Dinâmico. Justamente por apresentar, dentro de si, algum tipo de
correspondência com o objeto Dinâmico é que o signo pode representar, indicar ou
sugerir este último. Há três sub-tipos de objeto Dinâmico e três sub-tipos de objeto
Imediato.
O mapeamento lógico, baseado nas três
categorias, em que esses sub-tipos se organizam nos permitiriam perceber, no polo Real da
pulsão, a recursividade do Imaginário e do Simbólico, no polo Imaginário do objeto de
amor, a recursividade do Real e do Simbólico, no polo Simbólico do desejo, a
recursividade do Real e do Imaginário. Isto nos possibilita apreender com rigor e
propriedade pelo menos duas questões fundamentais: (a) a dominância dos registros em
seus respectivos campos (Real-pulsão, Imaginário-amor, Simbólico-desejo) e (b) os
diferentes valores lógicos que os registros adquirem nas suas recursividades em cada um
dos campos em que eles necessariamente fazem presença, quer dizer, o Real da pulsão, por
exemplo, tem propriedades lógicas diferentes do Real do objeto de amor, do mesmo modo que
o Simbólico do desejo tem propriedades diferentes do Simbólico da pulsão, e assim por
diante.
O aprofundamento dessas considerações só pode
ser objeto de um longo estudo a ser desenvolvido no futuro. A intenção deste ensaio foi
aquela de cartografar o campo, evidenciando as perspectivas que nele se abrem. Passo a
indicar abaixo um esboço dessas perspectivas.
9. Peirce- Freud- Lacan: vigas mestras
Cada um dos itens, que serão focalizados abaixo,
deverão ser, com o tempo, objetos de estudos aprofundados. Eles aqui comparecem a título
de sugestões de pesquisas possíveis e necessárias para se evidenciar que as relações
entre Peirce, Freud e Lacan são conseqüentes.
9.1 Os três pólos semióticos da
OBJETIVAÇÃO (relação do signo com seus objetos), SIGNIFICAÇÃO (relações do signo
consigo mesmo) e INTERPRETAÇÃO (relações do signo com seus interpretantes) e os três
registros lacanianos. Um início de caminho para esse trabalho foi desenvolvido em
Santaella (1999).
9.2 As sintonias entre o anti-cartesianismo
peirceano e a subversão do sujeito psicanalítico. As primeiras fundações para o
encaminhamento dessa pesquisa já se encontram em Santaella (no prelo).
9.3 Do Real e da verdade em Peirce como via de
acesso ao real e à verdade em psicanálise. Um breve texto introdutório a essa
questão pode ser encontrado em Santaella (1992: 190-192).
9.4 Sobre a ética semiótica e
psicanalítica. Esta questão encontra-se em fase embrionária, não passando ainda de
um pressentimento de que algumas conseqüências podem ser extraídas dela tanto no campo
da psicanálise quanto da semiótica.
Do que foi aqui exposto e proposto, em especial
no caráter acentuadamente conceitual com que se reveste, concluo com uma afirmação
lacaniana que vem bem a propósito: "Não há empirismo possível sem uma
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