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Estudar o comportamento humano não é tarefa
fácil. Inicialmente por tratar-se essencialmente de um estudo interdisciplinar que busca
apoiar-se em áreas como a Psicanálise, que procura entender os processos inconscientes,
a Sociologia que analisa os comportamentos coletivos e as influências dos grupos sociais,
a Antropologia, que estuda o homem na sua relação com a cultura e a Economia, que trata
da produção, dos recursos etc., e depois por ser difícil nos isolarmos do fenômeno sem
cair em referências estritamente pessoais e muitas vezes reducionistas. O objetivo deste
artigo é iniciar o estudo do comportamento humano, mais especificamente o desejo e
a busca da satisfação por meio do consumo. Para isto iniciamos com o conceito de
completude humana para logo depois nos debruçarmos, mais alongadamente, sobre o desejo
visto no ponto de vista do marketing, das ciências sociais e da psicanálise.
A incompletude
A Psicanálise de base lacaniana nos coloca que o
homem é um ser incompleto. Nós nascemos com a certeza de que vamos morrer. Somos
falíveis enquanto sistema biológico. Temos dentro de nós, portanto, uma pulsão de
morte. Vivemos em um contexto contraditório. Desejamos a completude e temos a certeza da
incompletude. Como atestado pelos autores Bairon & Petry (2000: 95) "A
incompletude presentifica-se na compreensão. Ela demonstra a diversidade da estranheza do
ser consigo mesmo daquela que é fruto do uso dos objetos que estão no mundo".
No conjunto desta complexidade fenomênica apresenta-se a estrutura do consumo humano numa
rede complexa de relações e trocas simbólicas (Strauss, 1948, Lacan, 1957-58, 1962-63).
Assim buscamos observar as estruturas do consumo,
em nossa sociedade, como uma das evidências materiais da incompletude humana presas às
estruturas que as constituem. É claro que não nos referimos aqui ao consumo de produtos
e serviços que nos garantam a sobrevivência e a dignidade de cidadãos, ainda que eles
estejam igualmente marcados pela complexa rede simbólica que os constituem como elementos
posicionais em uma rede social vital. Como nosso objeto de consideração particular,
refiro-me aqui, por exemplo, ao consumo de marcas e griffes, as quais igualmente supõe
uma base simbólica expressa na alienação do sujeito humano à cultura na qual está
imerso. Para darmos contas desse objeto evidentemente simbólico que se
oferece como objeto de consumo ratificado dentro da ordem e constituição imaginária da
sociedade (Castoriadis, XXXX), necessitaremos estabelecer um conceito contraponto aos usos
desse objeto. Trata-se do conceito de incompletude.
De um certo ponto de vista, pensar nossa própria
incompletude constituinte significa não recorrer a representações estandardizadas e
imaginárias da completude, como acontece, por exemplo, nas páginas da revista Caras,
citando apenas um exemplo no mercado de mídia impressa de massa. Tal perspectiva
significa poder abrir espaço para desejar a completude transitória de um encontro, de
uma realização, de um prazer, tendo presente a permanência avassaladora da
incompletude, não como um prejuízo ao sujeito, como um algo ruím ou desprezível, mas
como pano de fundo que permite o nosso ganho eventual no processo de construção. Assim,
é porque "o consumo se firma sobre uma falta que ele é irreprimível "
(Baudrillard, 1970: 42).
Dessa forma, na linha que segue o pensamento da
incompletude radical que atravessa nossa vida e, na qual as estruturas de consumo da
sociedade tecnológica são apenas um de seus casos de manifestação, a psicanálise
francesa apresenta inúmeros esclarecimentos quando descobre o caráter de
irredutibilidade do simbólico (Gaufey, 1991:186-189), no qual o desejo do homem se
apresenta como desejo de desejo. Esta perspectiva de alienação do desejo é definida
por Lacan em suas teses sobre o desejo humano, nas quais ele mostra que o desejo do homem
deve ser compreendido como o desejo do Outro, sendo este outro definido como o
simbólico estruturalmente incompleto (Lacan, 1958-59). Das trocas simbólicas que
garantem a continuidade material dos clãs às posições imaginárias organizadas pelas
griffes o elemento metodológico delimitador é encontrado no conceito psicanalítico de
incompletude do simbólico.
A completude
No quadro imaginário do social estamos rodeados
de príncipes e princesas por todos os lados. Há todo o momento nos é apresentado o
modelo do homem perfeito, sem manchas, irrepreensível... completo. Se recuarmos
historicamente os exemplos são quase infinitos: de Adão e Eva à Elvis Presley, Beetles,
Frank Sinatra, Clinton e tantos outros. Aliás, Eva procurava a completude quando, por um
deslize cometeu o "pecado original". Das artes ao meio empresarial, atravessando
a política e as ciências, a idéia da completude e da perfeição é propagada nos meios
de comunicação e nas relações sociais. Descrito de maneira primorosa no Poema em
Linha Reta, Fernando Pessoa faz uma bela crítica à perfeição humana: "Toda
a gente que eu conheço e que fala comigo nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu um
enxovalho, nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida". O poeta
enxerga além o que o mercado tende a ocultar.
A publicidade é, sem dúvida, uma das áreas que
mais se utiliza do esteriótipo da completude humana, usando de imagens, sons, movimentos,
textos e cenários que remetam à perfeição, ao sucesso e à felicidade, como conquistas
possíveis por meio do consumo. A publicidade sustenta e media o desejo de consumo,
buscando imaginariamente aproximar o homem do objeto de seu desejo. Neste caso, do ponto
de vista da estrutura complexa do sistema do consumo no Século XX, a idéia da completude
diz respeito ao caráter do ser completo, do estar pronto e acabado, sem nenhuma
restrição e também sem nenhuma carência. Em suma, é a realização ampla, total e
irrestrita numa promessa imaginária da consecução de seus fins por meio da promessa de
seus objetos.
Assim, a sociedade atual tem privilegiado a
visualidade em detrimento de outras formas de apreensão do mundo e, neste contexto, a
publicidade não é diferente. Conforme é atestado pelo historiador Michel de Certeau
(1994:48-49) "Da televisão ao jornal, da publicidade a todas as epifanias
mercadológicas, a nossa sociedade canceriza à vista, mede todas a realidade por sua
capacidade de mostrar ou de se mostrar e transforma as comunicações em viagens do olhar.
É uma epopéia do olho e da pulsão de ler...O binômio produção-consumo poderia ser
substituído por seu equivalente geral: escritura-leitura. A leitura (da imagem ou do
texto) parece aliás constituir o ponto máximo da passividade que caracteriza o
consumidor, constituído em voyeur (troglodita ou nômade) em uma sociedade do
espetáculo". Aqui a publicidade promove um efeito de sentido de completude pela
leitura sígnica da sua produção visual. Procura gerar uma percepção de satisfação
na mente que recebe e interpreta a mensagem publicitária.
Não parece ser difícil concluir que essa
completude não é realmente possível. O desejo da completude se constitui numa procura
permanente do homem. Dado que inatingível plenamente, ficamos o tempo todo procurando,
submersos numa estrutura inconsciente de alienação do sujeito frente ao objeto do
desejo. A psicanálise bem poderia designar esta por meio de uma relação fantasmática,
na qual o sujeito do fantasma se encontraria numa posição de sujeição diante do objeto
imaginário do desejo. Do ponto de vista de seu matema essa estrutura se escreveria de
modo semelhante ao apaixonar-se: $ < a (+j ).
Por outro lado, a estrutura do desejo na esfera
do consumo consuetudinário recente é colocado em pé de igualdade com as demais
necessidades humanas. O desejo da completude é apresentado como a fome, com todos os seus
demais caracteres de oralidade devoradora: pode ser satisfeita por algum momento, mas logo
depois retorna reascendendo o fogo da necessidade e da demanda que escravizam o sujeito.
De acordo com França (1997:99), referindo-se ao pensamento freudiano "A
realização do desejo tem o estatuto de ser parcial, porque jamais é saciada,
tornando-se uma busca insistente e repetitiva". A autora conclui que o desejo e
seus efeitos são um movimento constante que nos anima e nos leva à conquistas. Mas esse
movimento circular do desejo, quando capturado pelo circuito do consumo em nossa sociedade
ocidental atual, impõem-se como uma estrutura de repetição infinita e jamais capaz de
ser interrompida.
O desejo
Antes de nos aprofundarmos na discussão, faz-se
necessário "um olhar" a respeito do conceito de desejo no horizonte da
discussão atual do marketing. Na literatura de marketing analisando autores como Kotler
(2000), Schimitt (2000), Ferrel (1999), Etzel, Walker & Staton (2001) e outros, o
desejo vem sendo trabalhado como uma carência por algo que não necessariamente
precisamos, mas queremos. Esta visão traz a conotação de que temos desejo por algo não
essencial, o que de imediato o diferenciaria da necessidade, sendo esta essencial à
condição humana. Por outro lado, a noção psicanalítica de carência, quando
considerada pela escola francesa nos leva a considerá-la a luz do mito, ou seja, como
algo incapaz de atingir seus fins: assim Prometeu acorrentado está condenado a sempre
retornar ao ponto final de seu sofrimento.
Em Sandhusen (1998:2) o desejo é a
corporificação das necessidades humanas de acordo com a cultura e a personalidade do
indivíduo e estas são definidas como um estado mental ou físico de privação, e mais,
os conceitos de desejo e necessidade são intercambiáveis, o que de imediato revela a
despreocupação no entendimento e aprofundamento do tema. Em muitos casos a necessidade
e, às vezes, até mesmo o desejo aparece na própria definição do marketing
"satisfazer necessidades desejos" têm sido uma tônica amplamente disseminada.
Mas, desse modo conferimos ao marketing uma potência imaginária inigualável. Não
queremos aqui trazer uma crítica severa ao conceito, mas acreditamos que o marketing deva
ser entendido como um caminho, um mídia, uma possibilidade de satisfação (dentro das
atuais conjunturas humanas).
O marketing permite, dentre outras coisas, a
aproximação possível da pessoa ao objeto eleito como o de seu desejo (de consumo). Não
é fim, é meio (instrumento se quisermos). O marketing pode habilmente detectar
situações de não satisfação, traduzir para empresa e devolver ao mercado e ao cliente
um valor que pode lhe permitir uma satisfação transitória. Assim penso na possível
relativização do conceito de marketing e não na sua simples negação. Dado que não é
possível o retorno a um estado romântico, cabe-nos a tarefa de pensarmos criticamente os
limites impostos à nossa atividade numa sociedade em constante transformação. Como meio
e/ou instrumento, o marketing tem em si um caráter ambíguo ou duplo, ao mesmo tempo que
aproxima o homem dos objetos tenda a ocultar sua real relação com eles.
Quando nos aprofundamos em Churchill & Peter
(2000:147-149) nos deparamos com uma classificação peculiar; os autores dividem as
necessidades em utilitárias e hedônicas: "Necessidades utilitárias
relacionam-se a funções básicas e benefícios materiais... se você está com sede, é
motivado a encontrar algo para beber. Quando as pessoas são motivadas a satisfazer
necessidades utilitárias, elas tendem a ser racionais em suas escolhas...". Já
as necessidades hedônicas "são relacionadas ao desejo de prazer a
auto-expressão. Muitas pessoas gostam de tomar banho com um sabonete de perfume
agradável ou de cantar e escutar músicas que as façam sentir-se bem. Decisões sobre a
satisfação de necessidades hedônicas tendem a ser relativamente emocionais".
Nos parece que os autores fogem da dicotomia
entre necessidade e desejo, transformando este último em necessidade hedônica, ou seja,
a busca do prazer. Os exemplos utilizados não correspondem aos conceitos formulados e a
divisão entre escolhas racionais e emocionais não são tão claras, e em muitas vezes
estão fundidas em um único momento, numa forma de ocultação que bem poderia ser
compreendida a partir do apresentado por Freud no seu ensaio O mal-estar na cultura, na
dialética entre busca do prazer e evitação do desprazer a serviço do
conflito interminável entre Eros e Thanatós.
Sheth, Mittal & Newman (2001:59-65) afirmam
que "só quando as necessidades são satisfeitas é que surgem os desejos" ou
ainda "os desejos dos clientes são determinados pelo contexto individual e pelo
contexto ambiental". Os autores colocam o desejo como posterior à necessidade o
que de imediato nos parece um equívoco. O desejo não prescinde à necessidade, não é
caudatário. Talvez a definição de contexto individual pudesse estar ligada à idéia de
essência humana e o contexto ambiental poderia ser a influência da comunicação
publicitária de maneira direta e também mediada pelos grupos de referência.
De acordo com Allérés (2000:37) "necessidade
e desejo são as duas entidades necessárias à passagem para o ato de consumo, uma
pertence ao campo do real, das necessidades, e a outra ao campo do imaginário e dos
símbolos". Em que pese não estar totalmente de acordo com a autora, pois esta
divisão entre real e simbólico não é tão clara no consumo, é válida em função de
trazer alguma reflexão mais aprofundada sobre o tema. Invariavelmente encontramos na
literatura mercadológica a pirâmide de Maslow como sendo o símbolo didático máximo
para o entendimento das necessidades do homem. Ora, desde logo nos parece lógico que sem
as necessidades fisiológicas atendidas não é realmente possível pensar em segurança
ou auto-estima, mas a partir das condições fisiológicas atendidas todas as demais
necessidades não se dão como um escada hierarquizada, burocraticamente uma após a
outra.
Em outras palavras, as necessidades de
segurança, sociais, estima, auto-realização e outras estão todas emboladas em um
emaranhado cada vez mais complexo. O suprir destas necessidades e a conquista da
satisfação está influenciada pelo campo de experiência da pessoa, sua condição
financeira, seus valores, suas pulsões e interdições, influências do ambiente etc.
Em outra direção reflexiva, o desejo pode ser
visto com maior profundidade e complexidade, como a seguir: "Nunca saberemos para
onde estamos indo. Nunca iremos para onde temos alguma consciência. Toda pulsão que nos
induz a querer algo está repleta de um voltar-se a si próprio. Todo sentido que busca
orfanizar o pulsar se transforma em algo que somente circunstancialmente conseguimos
agarrar". (Bairon & Petry, 2000: 101).
Para Bairon & Petry, o desejo se revela numa
falta, numa busca contínua de preenchimento. Assim, a grande força do marketing estaria
no momento em que se busca imaginariamente essa completude no plano material, nas coisas,
nos objetos. O auxílio na escolha e o incentivo à aquisição têm sido os pontos
centrais da atuação mercadológica. Embalagens atrativas, preços competitivos, pontos
de venda esteticamente perfeitos, conveniência, campanhas publicitárias agradáveis,
sedutoras e bem humoradas, promoções, premiações, etc., são mecanismos que facilitam
o encontro entre desejo e a satisfação imaginária do mesmo, ainda que relativa e
temporária.
Para Guattari & Rolnik (1999:216)
"o desejo é sempre o modo de produção de algo, o desejo é sempre o modo de
construção de algo". Os autores afirmam que o desejo permite que o homem
estabeleça uma relação produtora e criativa com o mundo. O desejo é produtivo porque
é movimento. Ou nas palavras de Bertrand Russell "toda a atividade humana
nasce do desejo". O desejo é força propulsora de crescimento e desenvolvimento
humano. Em alguns casos a busca da completude não se dá no plano material, no consumo de
objetos tangíveis e serviços. O plano espiritual é muitas vezes a possibilidade de
quietação e placidez almejada e de realização pessoal. Porém, no mundo ocidental, a
busca da completude por meio da aquisição material é profundamente mais presente e
intensa e também mais estimulada. Ir para o Tibet em busca de evasão espiritual e
realização não é uma opção freqüente em nosso meio.
A aquisição de objetos, expressão das
necessidades e desejos dos indivíduos, é fortemente incentivada nas sociedades de
consumo desenvolvidas, em que todo o esquema do consumo se desenvolve, se faz cada vez
mais complexo e se aprimora. E neste aspecto a tecnologia amplia todas as possibilidades
de escolha e aquisição de produtos e serviços de forma muito rápida, segura e eficaz e
em alguns casos, mais barata. A publicidade, cada vez mais refinada, tem incitado o
hiperconsumo por meio da revelação da possibilidade de se atingir o auge da satisfação
pela aquisição de algo material, um objeto, uma coisa.
O objeto de desejo
Como sabemos e experimentamos, os objetos
manifestam, simultaneamente, um certo grau de prazer individual e de satisfação social.
Os objetos são sentidos e percebidos de maneira distinta em função da relação que
estabelecemos com ele e com o meio social no qual estamos inseridos. Tomando aqui a linha
crítica de Freud, quando analisa a atitude geral da humanidade diante das coisas
verdadeiramente importantes, numa referência a uma correspondência sua com Romain
Rolland, observamos que às portas de um novo milênio, as pessoas se definem muito
mais por meio de suas relações com os objetos do que por valores mais profundos.
Assim, Baudrillard (1972:20) atesta que
"através dos objetos, quem fala é uma sociedade estratificada", ou ainda
(Baudrillard, 1995:19) "é certo que os objetos são portadores de significações
sociais indexadas, portadores de um a hierarquia cultural e social..." Nos
trechos acima percebemos que o autor reafirma o caráter de distintividade social
proporcionado pelo uso e consumo dos objetos. A hierarquia cultural e social de que fala o
autor é composta desde os elementos mais essenciais dos objetos: material, forma, cor,
disposição etc. até o discurso publicitário, imagem organizacional, posicionamento
político etc. Todo esse contexto constitui-se em um código. Nesse sentido, os objetos
devem ser construídos e analisados não apenas na perspectiva de uma teoria da
satisfação das necessidades mas em uma teoria da significação, o que envolve as
funções estética e simbólica.
Com base nisso podemos classificar os objetos
tendo em conta as relações e situações que estabelecemos com ele. Assim, o
objeto-prazer ou hedonista, representa certa atração do indivíduo e essa gama de
produtos, pode tornar-se objeto mágico ou objeto fetiche, como por exemplo, as peças de
coleção que normalmente nos remetem a um passado invisível por mediação do visível -
o próprio objeto - uma lasca de cerâmica do Império Romano nos leva à construção de
todo um passado histórico de dominação e conquistas. Contrariamente a isso, um
indivíduo apaixonado pelos comportamentos de moda, não se liga aos objetos adquiridos e
não lhes concede senão um pequeno valor sentimental. Pessoas mais desejosas de mudança,
são ávidas pela obtenção do último objeto novo e da moda. A relação com o objeto é
fugaz, aqui poderíamos enquadrar boa parte dos produtos de tecnologia e seus consumidores
mais marcantes que inúmeras vezes imprimem grandes esforços para conseguir o último
"grito" de inovação.
O produto da moda, a que podemos chamar de
objeto-signo, exprime mais um nível de satisfação social imaginário-coletiva do que
uma satisfação individual ou um prazer pessoal. O uso de produtos de moda se configura
em uma forma de auto-expressão para si e para o outro .Esses objetos não são mais do
que "expositores de classe" (Alléres, 2001:56). Objetos incessantemente
desejados, depois de depostos e substituídos, são significativos de necessidades, de
desejos e satisfações efêmeras. Antes de traduzir uma procura permanente de objetos,
signo de um ideal, o ideal da completude, esses comportamentos mostram mais o
comportamento de uma classe dirigente privilegiada e mandatória, sempre em busca de
diferenças e sempre procurando atualizar perpetuamente seu privilégio, garantindo sua
continuidade.
Os objetos-signo se traduzem como marcas de status
social e, como tais, estão na base de uma estrutura imaginária de identificação
que organiza seus sujeitos de acordo com suas modalidades objetais e de classe.
Quanto mais se acelera o consumo de objetos, mais
se esmorece o apego que se lhes tem (mais a estrutura imaginária deve ser invocada). Em
vez de objetos de culto, eles se tornam ferramentas da moda, meios desencantados e
efêmeros de se satisfazer. E tantos poderiam ser os exemplos desse fenômeno. Estar
vivificando esta aceleração é estar ocupando, em todos os seus momentos constituintes,
o lugar privilegiado no fantasma imaginário que ele promete.
Assim, independentemente da tipologia utilizada,
os objetos se constituem em materialização da busca imaginária da completude. O objeto
de desejo é perseguido incansavelmente, a procura não acaba. Quando adquirimos uma
caneta da marca Mont Blanc modelo Ramsés, por exemplo, somos afirmados pela
estrutura de consumo como seres satisfeitos e completos - por algum tempo enfim,
conseguimos o objeto do desejo! O que é, na verdade, pura ilusão porque o objeto de
desejo verdadeiramente nunca é atingido. Aqui reside a necessidade de criarmos a cada
momento novos e novos objetos para desejarmos e nos movermos adiante, sempre.
As opções, as escolhas, a aquisição e posse
de objetos envolvem um conjunto de significados complexos, e às vezes, absolutamente
anti-econômicos e até irracionais, ou como nos diz Certeau (1994:38) "cada
individualidade é o lugar onde atua uma pluralidade incoerente e muitas vezes
contraditória de suas determinações relacionais". Não é fácil explicar
porque um indivíduo que possui um salário mensal de US$ 100, produto de 160 horas de
trabalho, compra um tênis da marca Nike, pelos mesmos US$ 100, divididos em 18
prestações mensais. Onde está a racionalidade do consumo? Nesse sentido, a distinção
entre os objetos úteis, adquiridos racionalmente, que preenchem funções vitais, e os
objetos inúteis, adquiridos por motivações subjetivas, para satisfazer um desejo, é
utópica.
A esse respeito, Baudrillar (1970: 12), afirma
que: "Os objetos conduzem um jogo perpétuo, que resulta, de fato, de um conflito
moral, de uma disparidade de imperativos sociais, o objeto funcional faz de conta que é
decorativo, se cobre de inutilidade ou dos disfarces da moda. O objeto fútil e ocioso se
carrega da razão prática". Outro pensador, agora "distante" do mundo
do consumo, Voltaire afirma que o supérfluo é essencial: "Supérfluo, coisa
muito necessária ... Gosto do luxo e mesmo da languidez..." O que Baudrillard
nos apresenta é que existem apenas poucos objetos puramente utilitários, neutros, de
modo algum carregados de significados sociais. Quase todos são dissimuladores, tem um
papel duplo, servem de "simulacro" funcional, atrás do qual os objetos
continuariam a desempenhar seu papel essencial de discriminadores sociais.
Em verdade, mesmo que seja muito útil, menos
necessário ou totalmente fútil, qualquer objeto parece encerrar em si um potencial de
significações. Até porque a base do design de produtos está no atendimento das
funções prática, estética e simbólica. Todo produto de consumo não deve se contentar
em funcionar bem e adequadamente, as dimensões de admiração, beleza, elegância e ao
que estes aspectos remetem - símbolos - são fundamentais na sociedade pós-moderna em
que vivemos, onde a matéria se esvaece e o símbolo é fortalecido.
A publicidade e a venda da completude humana
A publicidade é uma técnica de comunicação
que objetiva difundir produtos, serviços, empresas, marcas e idéias. Procura criar um
clima favorável de simpatia e adesão na mente dos consumidores. Ela atualiza as
necessidades presentes, traduz, exacerba e confere valor aos produtos, tornando-os
"mais desejáveis". A publicidade nos convida a consumir, é um chamamento como
no consagrado slogan "venha para o mundo de Marlboro". Nas palavras de
Carvalho (1998) "Publicidade é a linguagem da sedução". A sedução na
publicidade é apresentada como um conjunto de qualidades e características que despertam
simpatia, desejo, amor, interesse, afetividade etc.. A publicidade tem a intenção de
atrair, magnetizar e fascinar as pessoas e, como estrutura, do ponto de vista da
psicanálise, se coloca dentro da formação imaginária de fantasmas.
E neste sentido, a sedução, assim como a
provocação e a tentação, além de outras formas de utilização manipulatória da
linguagem, podem contribuir para a externar e comprovar a capacidade persuasiva da
publicidade. Por meio da publicidade as empresas procuram criar na mente das pessoas,
potenciais compradores ou não, um inventário perceptual de imagens, sensações, sons e
rituais que possibilitem associações positivas com as marcas e os produtos que pretendem
estimular a compra. Segundo Keller (2001:317) afirma que "assim como ocorre com as
narrativas da televisão, pode-se dizer que a publicidade também põe à disposição
alguns equivalentes funcionais do mito".
Keller afirma que do mesmo modo que os mitos a
propaganda freqüentemente soluciona contradições sociais, fornece modelos de identidade
e enaltece a ordem social vigente. Concordando com ele Barthes (1972) percebe que a
propaganda fornece um repertório de "mitologias contemporâneas".
A mística do sucesso dos objetos de consumo
parece estar no encontro entre as pulsões desejantes das pessoas e a possibilidade de
entrega, inicialmente por meio da publicidade e depois pela aquisição, de um valor para
sua satisfação.
A mensagem publicitária deposita valores, mitos,
ideais e idéias em um entorno simbólico significante, utilizando-se para isso dos
recursos das artes e da própria língua, que lhe presta como veículo. Esses recursos
podem ser semânticos, como a construção e desconstrução de palavras, morfológicos,
como as sintaxes não-lineares, fonéticos como a utilização de ruídos e ressonâncias,
e imagéticos e muitas vezes a potencialização da imbricaçãode todos estes recursos.
A publicidade para se expressar se utiliza de
caminhos e conceitos da Arte e das Ciências. Como nos diz Ramos (1987:10-11) "se
apropria das artes plásticas e literárias, tanto no desenho, na pintura ou fotografia da
ilustração, quanto no fundamental do texto. Para um comercial de rádio ou televisão,
usa o teatral da fala e do gesto, a música, a dança, a mímica, as linguagens do cinema
ou da ficção e da poesia".
Também faz uso da ciência, como vimos a
complexidade da imbricação teórica do comportamento humano, da biologia, da anatomia,
da ergonomia, da psicanálise com o estudo do inconsciente e outras. Todas essas
ciências, e aqui não discutiremos a problemática do que é ou não ciência, estão
presentes na publicidade em maior ou menor intensidade, e também as ciências exatas, a
matemática e os controles.
Usada de maneira criativa e estratégica a
publicidade pode se configurar em um potente elemento de construção simbólica,
estética e cultural, principalmente neste momento de grande proliferação dos meios de
comunicação eletrônicos, que plastifica os mercados, ampliando-os e pela facilidade e
rapidez de acesso às mais diferentes culturas e distâncias geográficas.
Possibilitada pelo seu caráter interdisciplinar,
como vimos anteriormente, a publicidade tem trabalhado no sentido de despertar em nós a
ilusão de que a completude é possível por meio do consumo. Maciçamente nos é
apresentado a imagem de que as pessoas podem atingir a completude com extrema facilidade.
Veiga (1997:59) citando um artigo do jornalista e cineasta Arnaldo Jabor, diz: "A
revista Caras é uma revista argentina cuja edição brasileira é dedicada a nos mostrar
quão completos e perfeitos são, ou aparentam ser, os ricos e famosos". Aqui
Jabor faz uma severa crítica ao culto, principalmente da classe média alta brasileira,
ao perfil arrumadinho, absolutamente simétrico e pronto dos indivíduos. Os ricos e
famosos são completos, e o são porque consomem tais e tais produtos de tais e tais
marcas. O que está por trás disso: você que lê Caras pode ser como eles - ricos,
famosos, bonitos, inteligentes, satisfeitos, felizes... enfim, completos.
Muitas vezes, principalmente quando está se
comunicando um objeto de luxo, que envolve características como beleza, elegância,
refinamento, sedução, estética e distinção, a publicidade procura trazer a
conotação de afetividade entre o objeto e uma personalidade da mídia, ligada à grandes
emissoras de televisão ou ao cinema. Exemplos como as campanhas publicitárias de Lux
Luxo, Unilever, protagonizadas pelas atrizes Catherine Deneuve e Michele Pfifer ou
Elisabeth Taylor para Lancôme ou ainda as campanhas publicitárias da Rolex, com a atriz
Cindy Crawford, reforçam esta prática. Estas personalidades são a iconicidade maior da
completude, possuem um envolvimento mítico, belo e sedutor sempre desejável, afinal a
beleza pode ser um prenúncio de felicidade. São ícones porque se revelam e se mostram
como a expressão máxima de semelhança entre objeto e personalidade: Michele Pfifer é
Lux Luxo.
As imagens simbólicas utilizadas na propaganda
tentam criar uma associação entre os produtos oferecidos e certas características
socialmente desejáveis e significativa, a fim de produzir a impressão de que é
possível vir a ser certo tipo de pessoa (por exemplo, um homem de verdade) comprando
aquele produto (cigarros Marlboro). A publicidade forma sistemas textuais com componentes
básicos inter-relacionados de tal maneira que apresentem o produto sob luzes positivas. O
papel da publicidade é, principalmente, o de sitiar as proibições e interdições
(tabus, culpabilidade, timidez, interdições de classe social, falta de dinheiro etc.) e
fixar as pulsões, até então retidas, sobre objetos cuja aquisição será a tradução
e realização de um desejo. E neste exemplo da capa da revista Caras estas funções da
publicidade estão absolutamente atendidas. Em outras palavras, a publicidade encarrega-se
de suscitar o desejo para ampliá-lo, mostrá-lo e também, generalizá-lo.
Ninguém pára de consumir, pois o desejo remete
sempre para algo além do objeto de consumo, para uma negação da necessidade: ele remete
para a falta, para a insatisfação, para a não-saciedade. Explicitamente bem colocado
por Richard (1980:50) "ninguém pára de consumir, como ninguém pára de
desejar". E aí está a potencialidade da força publicitária.
Mas a publicidade não está condenada ao
contrário. Nas palavras de Carlos Drummond de Andrade: "Confesso que um de meus
prazeres é saborear os bons anúncios jornalísticos de coisas que não pretendo, não
preciso ou não posso comprar, mas que me atraem pela novidade da concepção, utilizando
´macetes` psicológicos sutis e muito refinamento de arte. É admirável a criatividade
presente nessas obras de consumo rápido, logo substituídas por outras. São anúncios
que muitas vezes nos prestam serviço, pela imaginação e pelo bom humor que contém. E
se nos ´vendem` pelo menos um sorriso, ajudam a construir um dia saudável de
trabalho". Mais do que um comentário despretensioso, o poeta rende uma homenagem
à criação publicitária.
Assim é fundamental que os profissionais de
marketing das organizações, os publicitários e os pesquisadores da comunicação,
ampliem e aprofundem seus entendimentos sobre a complexidade do comportamento humano,
especificamente no que se refere ao desejo, não se satisfazendo com as definições
reducionistas e tentadoras de vincularem o desejo ao consumo de objetos e produtos
supérfluos, mas, sim entendendo o caráter vivo, dinâmico e transitório da relação
desejo/satisfação, das relações inconscientes e muita vezes, pouco racionais dos
consumidores e do papel central da publicidade como alimento essencial da manutenção e
desenvolvimento deste processo complexo.
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