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Neste primeiro número de "Psicanálise & Conexões", apresentamos uma entrevista com o psicanalista Jacques Lacan que faz parte do conjunto de materiais pouco conhecidos pelos seus leitores.

Dúvidas podem ser tiradas pelo e-mail: psilacanise@pucsp.br


 


Entrevista com Jacques Lacan

Apesar desta Entrevista com Lacan parecer ter sido realizada na década de 1790, ela foi publicada originalmente na Biblioteca Salvat sem data definda. Preservamos aqui sua estrutura intocada.

Jacques Lacan representa uma renovação da psicanálise, tanto no nível teórico como prático. Para ele, a psicanálise tem somente uma interpretação possível: a lingüística. No centro da teoria e prática psicanalíticas encontrar-se-ia o inconsciente, fonte dos fenômenos patológicos. Assim, a cura psicanalítica levar-se-ia a efeito mediante a manifestação do inconsciente através dos sintomas. Desse modo o grande problema, a grande tarefa a cumprir pela psicanálise reside em descobrir as leis através das quais se rege o inconsciente, leis que só podem descobrir-se pelo estudo das manifestações daquele.

Os sintomas psicanalíticos seriam as obsessões, as fobias, etc., linguagem cuja clarificação corresponde à psicanálise, já que a linguagem desses sintomas não é outra coisa senão a linguagem em que «falam» as enfermidades psíquicas. Se os sintomas não se articulam em palavras, permanecem obscuros. Por isso é necessário que os sintomas se manifestem em palavras.

A tarefa da psicanálise, segundo Lacan, será decifrar a linguagem para poder alcançar o inconsciente, no qual se elaboram e estruturam as realidades essenciais do indivíduo, e foco de que derivam por sua vez os fenômenos patológicos. Por outro lado, o sintoma não é um sinal lingüístico, capaz de dirigir a mente para uma realidade determinada. A natureza dos sintomas exige sua minuciosa análise e descoberta, tarefa para a qual a lingüística oferece os instrumentos que hão de permitir penetrar em sua investigação.

Em resumo, para Jacques Lacan, a quem entrevistamos abaixo sobre alguns complexos aspectos atuais da psicanálise, a interpretação lingüística é a autêntica interpretação de Freud. Como ele próprio afirma: «Mostraremos que não há palavras sem resposta, inclusive se não encontram senão silêncio, desde que tenham um ouvinte, e que este é o miolo de sua função na análise.» Sua contribuição foi e é o centro que ocupa a atenção de amplos setores culturais relacionados com a psicologia e a filosofia; porém, por outro lado, afastaram-no definitivamente da ortodoxia psicanalítica.

 

Tem-se falado de uma mitologia da psicanálise. Qual é sua opinião acerca disso?

Lacan: São muito fortes os mitos que os psicanalistas criam dever reverenciar para se fazer admitir na boa sociedade de há tempos atrás, na época em que eu comecei a tarefa de dissolver esses mitos.

Isto não significa que tais mitos não fossem vivos. A tradição o prova. Os mitos provêm de uma certa economia do prazer. Porém vão mais além. O que se chama universidade encarrega-se disso, seu papel é conservar esses mitos. Dir-me-ão que o próprio Freud parece sacrificar-se aos mitos. E certo, sacrificou-se a eles; não podia fazer outra coisa, se queria ser admitido.

 

O senhor é «porta-voz» de Freud? Sua escola é freudiana?

Lacan: Eu parti de Freud para me confrontar com aqueles que diziam assumir a psicanálise em nome de Freud e que extraíam proveito dessa prática.

Vi-me obrigado a dizer-lhes que sua prática psicanalítica ou era um engano ou se limitava a fundamentar-se num jogo de palavras com efeito momentâneo. Eu opinava que: «Se com vossos pacientes - dantes chamavam-lhes assim - a única coisa que podeis intercambiar são palavras, ao menos estabelecei vós próprios as regras.»

A função da palavra só pode explicar-se ao definir o campo da linguagem. Esses dois termos são o título de um discurso que pronunciei em Roma, em 1953, e do qual surge minha escola, depois de muitas dificuldades.

Minha escola é freudiana, e isso não deve estranhar, já que demonstrei claramente que os testemunhos fornecidos por Freud acerca da existência do inconsciente, dos sonhos, dos lapsos e ocorrências, só são interpretáveis sobre o texto do que se diz através da palavra do próprio interessado. Este é um fato patente nas três obras que Freud escreveu sobre cada um desses temas e que constituem o ponto de partida de seu «pensamento».

Minha escola deve, portanto, ser entendida como freudiana no sentido de baseada em Freud. Hoje, Paris é o único lugar em que há analistas que, sem desdenhar as práticas da medicina, sabem que esta não lhes serve de nada.

A fundação da minha escola tinha, entre outros, o objetivo de clarificar posições com a pretensa internacional psicanalítica, cujos problemas se debatem num ambiente sórdido.

 

Segundo o senhor, «a psicanálise assegura-nos que existe sob o termo "inconsciente" algo qualificável, acessível e capaz de ser objetivado». Que é, pois, o inconsciente?

Lacan: Antes de mais, convém esclarecer que o inconsciente não é uma aspiração da alma, nem uma recordação da infância, nem uma regressão do «desenvolvimento psíquico». Considerá-lo assim seria o mesmo que reduzi-lo aos mitos clássicos de que se nutre a psicologia uni a versitária.

À primeira vista, o nome parece não estar mal escolhido. O inconsciente é o não-sabido de um saber, quer dizer, um saber que não tem sujeito, um sujeito que saiba.

A partir daí podemos clarificar seu nome : o instinto. É com este nome que desde sempre se designa um conhecimento cuja evidência choca com a realidade animal. Um animal que sabe picar sua presa num lugar exato do corpo, para a paralisar, conhece a anatomia da presa? Não nos atrevemos a crê-lo. Por quê? Por quê não pode ele conhecer a anatomia do adversário? Por quê os animais sabem ocultar uma cria de que não podem cuidar para a proteger o tempo necessário para que se desenvolva?

É aí que se baseia a interpretação do instinto que os psicanalistas falseiam em todas as línguas, ao traduzir o que Freud designou com a palavra Trieb (impulso, pulsão), que em inglês se traduz bastante bem por drive (coisa que se evita), e em francês por dérive, o que é uma solução transitória e desesperada até que se consiga dar à palavra seu cunho ideal.

Prefiro deixar que o descubram os que me lêem. Em certas ocasiões designo-a como alíngua, e note-se que reuno as duas partes numa. Essa maneira de a escrever é uma chave pessoal para designar o que é o objeto da lingüística. Um entre muitos.

O conhecimento do que há no inconsciente é um conhecimento que se articula de um ou vários alíngua. É um saber que o existe ao indivíduo, quer dizer, que o concerne.

O conceito «inconsciente» (Freud duvidou de seu nome) está longe de exprimir a verdade. O inconsciente é apenas saber, saber articulado numa forma lingüística.

O ser falante embrutece-se com a idéia do instinto ao atribuí-lo aos seres que não sabem falar, aos animais, segundo ele.

Que foi que Freud não captou em sua tarefa de análise? Não abusemos do gênio de Freud. Inclusive o gênio necessita do favor do céu para aparecer.

A ciência desceu do céu, isso é tangível na história. É essa inclusive a única objeção que se lhe pode fazer. A besta humana é da Terra, como observava Pascal, e essas maravilhas que agora deve à ciência e que reverencia - muito em breve se dará conta de que não lhe são mais do que estorvo. Sem embargo, terá de acostumar-se.

O que talvez Freud não tenha considerado é que a ciência tem seus limites: essa é sua principal debilidade. Sua esperança na «sexologia» é cômica, quando precisamente sua experiência lhe demonstrava que o saber do inconsciente é o que o ser falante inventa... para satisfazer os «deveres» de sua reprodução, talvez.

Era-lhe necessário inventar esse inconsciente, para responder ao mal-estar de sua cultura, provocado pelo advento da neurose como tal.

Antes, nunca se falara de nada parecido. Todos se banhavam na «verdade» do pecado original. O amor, o verdadeiro amor, tinha de estar em outra parte, fora do sexo. Poderia dizer-se que se escondia algures. Só se falava de uma «divina comédia», porém na condição de as mulheres estarem o mais longe possível.

Tudo isso evidencia o fato de que se não queria saber nada do inconsciente, que era coisa temida. Apriorismo justo, já que o inconsciente nada tinha a fazer nesse colóquio do amor louco.

E esse é nosso destino, ter de inventar o inconsciente! E sublinho: nós inventá-mo-lo. Aquilo que «descobrimos» (não inventamos) é unicamente seu lugar, e que está ali desde sempre, disso não há dúvida, porém por explorar.

 

Qual é o fruto de seus cursos sobre o sujeito e que contribuição traz às teorias freudianas?

Lacan: Indubitavelmente, não se pode dizer que Freud tenha esgotado o tema, porém completá-lo é difícil. De momento, os cursos que tenho dado sobre o tema limitam-se a desvelar o problema, porém só para que o sonho prossiga melhor, concretamente o sonho dos que queriam revolucionar o mundo, já que nele crêem. De fato, meu discurso é a única oportunidade para que a psicanálise volte a funcionar.

Quero dizer que só à força de testemunhar a verdade, tal como se apresenta na confissão que a cada um se oferece pela experiência analítica, o analista logra fazer sair de seu discurso uma invenção de saber, capaz de proporcionar um resultado, um fruto que seja um prazer para todos e também para essas não-todas que são as mulheres em seu acesso ao fato patente de que o ser falante é o único a autorizar-se na escolha de seu sexo.

Foi daí que partiu Freud ao escutar as histéricas: cada uma delas queria que o homem ex-sista, a título de «pelo-menos-um».


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