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A psicanálise
alcança o real da cultura ao afetar os saberes onde esta se sustenta e que a condicionam,
atingindo assim a subjetividade que deles se desprende (02). Porque, com efeito, o sujeito
contemporâneo não percebe a si mesmo, nem ao seu mundo, nem as suas motivações, de
mesmo jeito que antes, depois de Freud...
Dúvidas podem ser tiradas pelo e-mail:
psilacanise@pucsp.br
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1. O manifesto, o latente e o 11 de
setembro
No primeiro ano do terceiro milênio da
civilização ocidental, o fatídico 11 de setembro marcou, para o mundo todo, o futuro da
centúria. Antecipadamente?
O que aconteceu transformou a data numa
efeméride. Segundo Noam Chomsky, no livro que dedicara ao assunto (01), por ter sido a
primeira vez desde 1812 que o território norte-americano sofreu um ataque, para além dos
danos e das vítimas, este bárbaro acidente teria afetado o narcisismo do
Império. O significado da escolha do World Trade Center como alvo mirava sua
importância enquanto símbolo. Assim como o McDonalds, o jeans e a Coca-Cola, um dos mais
perfeitos ícones do american way of living.
Vê-se nesta colocação de Chomsky uma
referência não explícita ao que em psicanálise é chamado de conteúdo manifesto
e conteúdo latente. O primeiro designa o material submetido à análise que, no
caso citado, seriam os fatos como ocorreram. O segundo, por oposição, indicaria a
tradução verídica das razões que expressam o desejo em jogo em cada circunstância.
Por isso, ele interpretou o episódio como um questionamento radical do capitalismo e da
globalização. Ou, mais precisamente, como uma quebra da onipotência.
2. A realidade psíquica
O método analítico consiste em fazer
presente, a partir do conteúdo manifesto daquilo que se diz, a verdade do desejo de quem
fala. Uma verdade singular, que faz padecer e fruir, e viver a vida em risco, mesmo sem se
saber disto. Diferente de uma verdade lógica, reduzida ao manejo de letras e números.
Uma verdade que deve ser elucidada, para bem do próprio agente.
O psicanalista é uma das figuras que,
na sociedade, recolhe os gritos dessa verdade não formalizada, que se apresentam como
sintomas.
A clínica psicanalítica descortinou
um novo campo, chamado por Freud de realidade psíquica. Este aspecto do ser
humano, apesar de individual, tem uma incidência política, pois evidencia, aquém da
realidade comum que organiza nosso mundo, uma outra, particular para cada um, que não
pode ser coletivizada.
3. A invenção do sintoma
Endossemos uma frase de Lacan: O
sintoma constitui a ordem na qual se verifica nossa política, lá onde a
questão da polis poderia ser interpretada. Freud elaborou uma teoria da cultura
considerando que as características do psiquismo decorrem da passagem do humanóide,
visto evolutivamente enquanto animal, para o humano, entanto regulado por uma ordem
simbólica. Assim, para sempre humanizado, e eternamente desnaturado. A sexualidade da
nossa espécie, determinada por um sistema de permissões e proibições, nada tem a ver
com o reino selvagem dos bichos e dos insetos. Ser humano significa aceitar uma
série de renúncias pulsionais, como fundamento da coexistência social. Mas tudo tem seu
ônus.
A cultura se constrói na base de
abstenções e sublimações, de forma contraditória: quanto mais das primeiras, menos
das últimas. Este descompasso foi caracterizado por Freud como mal-estar na
civilização. E Lacan definiu este paradoxo da cultura como gozar com a renúncia ao
gozo.
Marx, entretanto, descreveu o sintoma
social por excelência, mostrando como cada indivíduo é, realmente, um proletário. No
consumo interminável de bens na contemporaneidade, é necessário trabalhar, cada vez
mais e sem parar, para poder pagar. Tudo tem preço. Mesmo acertando à vista, a dívida
só aumenta. A alienação na labuta é a forma consagrada da renúncia ao gozo. Nenhum
dinheiro restitui a libido empatada.
Convém diferenciar o sintoma
particular do sintoma social. Ambos são verídicos, embora não evidentes. O sofrimento
íntimo do sujeito não poderia ser alheio à perda de gozo que o cotidiano lhe exige,
sacrificando sua vida em prol de satisfações substitutivas. Ao mesmo tempo, os ideais de
felicidade, nesta época histórica, não parecem muito consistentes.
A mais-valia nos faz gozar quando
abrimos mão dos nossos prazeres essenciais, e acreditamos preencher nossos desejos com
pouca coisa em troca. O resultado é a insatisfação, de qualquer um e de quase todos.
4. Clínica da cultura
Se não há um tratamento para o
mal-estar, para que serve interpretar a cultura? O psicanalista não tem como instrumentar
uma cura para este sintoma estrutural, nem poderia propor um laço social mais adequado.
Tampouco promete a satisfação; no máximo, incide ali onde o bem-estar não é bom, para
apontar as causas a partir dos efeitos.
Não dá como negar que existe uma
pressão social, identificada como uma demanda terapêutica, que é a de reduzir o
sintoma, aquele específico de cada pessoa. No entanto, o analista trabalharia para a
adaptação do analisante ao império do consumo, ou para o encontro de sua verdade
exclusiva, enquanto único responsável por si próprio?
Para o analista, sendo ele também um
objeto no mercado, uma ética sustenta o ato terapêutico. Então, como não poderia
deixar de levar em conta o pedido de alívio dos sintomas personalizados, seu compromisso
com a causa do inconsciente o leva a se contrapor aos tratamentos massificados, por
considerar a verdade de cada paciente de forma particular, e não no atacado, na maneira
certa para se sobrepor ao mal-estar.
Que estilo de psicanálise seria o mais
politicamente correto para esta época da globalização? Uma clínica contemporânea não
mais centrada nas identificações, nem nas fantasias, e sim nas perturbações da
subjetividade e nos infortúnios do gozo. Mais, ainda: para a cultura, a superestrutura
que afeta a todos, colocada há tempo em questão, uma leitura sagaz dos seus interesses
latentes, descolada das distorções manifestas.
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A psicanálise alcança o real da cultura
ao afetar os saberes onde esta se sustenta e que a condicionam, atingindo assim a
subjetividade que deles se desprende (02). Porque, com efeito, o sujeito contemporâneo
não percebe a si mesmo, nem ao seu mundo, nem as suas motivações, de mesmo jeito que
antes, depois de Freud...
Os Editores
Notas:
1. Chomsky, Noam 11 de setembro.
2.Pujó, Mario La crisis argentina Carta a los italianos.
Psicanálise & Conexões:
Uma revista digital da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, ligada ao CesPUC (Centro de Estudos em Semiótica e Psicanálise)
do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica e ao NuPH (Núcleo de
Pesquisas em Hipermídia) do Centro de Ciências Exatas e Tecnologia da PUC-SP.
O portal "psilacálise" e a revista
"Psicanálise & Conexões" foram desenvolvidos em linguagem hipermídia com
o apoio do Curso de Tecnologia e Mídias Digitais do Centro de Ciências Exatas e
Tecnologia da PUC-SP.
Editores:
Oscar Angel Cesarotto, Sérgio Bairon,
Luís Carlos Petry e Márcio Peter de Souza Leite.
WebMaster:
Victor Emanuel J.S. Vicente
Agradecimentos:
Aos professores Rogério Cardoso dos Santos e
Victor Emanuel J.S. Vicente pelo apoio técnico e conceitual durante os processos de
trabalho.
A Arnaldo Antunes, Lúcia Santaella e Olgária
Mattos, por terem gravado em estúdio trechos conceituais para o NuPH que fazem parte do
projeto da "Casa Filosófica" e estão presentes na versão interativa, em
hipermídia, da revista "Psicanálise & Conexões".
Trabalho de imagens:
Sérgio Bairon e Luís Carlos Petry.
Concepção digital e desenvolvimento
hipermídia:
Sérgio Bairon, Luís Carlos Petry e Rogério
Cardoso dos Santos.
Nesta edição, Sérgio Bairon realiza um
ensaio estético-conceitual com base em imagens de trabalhos de Lucien Freud.
Contatos com os editores podem ser encaminhados
para o email:
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Conselho Editorial em ordem alfabética:
Daniel Paola
Fani Hisgail
Geraldino Alves Ferreira Netto
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Luís Carlos Petry
Márcio Peter de Souza Leite
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Sérgio Bairon
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