O perverso processo histórico que produzia o escravizado e inventava o africano, deitava raízes no outro lado do Atlântico, mas desenvolvia-se nas colônias. Juliana Barreto Farias, Carlos Eugênio Líbano Soares e Flávio dos Santos Gomes, em No labirinto das nações: africanos e identidades no Rio de Janeiro[1], acolhem o desafio de responder a questão: “quem eram estes indivíduos transformados em africanos”? Uma segunda questão pode sintetizar bem este projeto desafiador: que identidades forjaram, recriaram e inventaram esses africanos? Os autores, com uma diuturna prática de pesquisas em arquivos, conseguiram amealhar uma vasta documentação colhida em registros policiais, anúncios de jornal e registros da Casa de Detenção, entre outros, para “reconstruir em detalhes estas vidas [de africanos] em grande medida esquecidas, naquela que foi , no século XIX, a maior cidade africana transatlântica.(APRESENTAÇÃO, 2005:10)
Nos seis capítulos do livro, “produzidos individualmente, mas com intenso debate e colaboração mútua”, o leitor encontrará dados para enxergar a diferença no igual, enxergar africanos reinventando identidades, contribuindo na gestação de uma cultura política escrava.
No século XVIII e início do século XIX, nas ruas do Rio Atlântico - repleto de africanos, crioulos, libertos e fugitivos - um sutil e complexo processo histórico de reconstruções identitárias estava em curso, relembra Flávio Gomes. Nos anúncios de jornais, com seus registros de fuga, e nos registros policiais, encontram-se os indícios dessas “construções identitárias” de outras “nações e de novas misturas étnicas e culturais. “Emergem dos registros policiais, e especialmente dos anúncios, imagens multifacetadas sobre a vida escrava africana, suas relações com os senhores e os universos em que se encontravam inseridos”.(SOARES, 2005:27). Os viajantes Debret e Rugendas perceberam semelhanças e diferenças culturais entre os escravizados e as retrataram em seus textos e desenhos como marcas de “origens tribais”, sem perceberem seu sentido profundo. “Nações” e identidades eram inventadas, os símbolos, as marcas, os penteados e outros inúmeros sinais estavam sujeitos a constantes mudanças ao refletirem as dinâmicas em curso no contexto da diáspora.
«As discussões acerca das relações entre etnicidade e diáspora deitam raízes na década de 1920, refletindo a preocupação com “as permanências das culturas africanas” (Herskovits, Artur Ramos). Esta perspectiva de estudo foi revista na década de 1970, com a introdução da temática da “criação de identidades” (Mintz e Price). Visão ampliada por estudos recentes nos quais se afirma que esses processos tiveram início já na África, devido aos movimentos transétnicos do período pré-colonial e colonial.
Como se deram esses movimentos e experiências de criação e recriações transétnicas no Rio de Janeiro urbano do século XVIII e início do século XIX? A condição básica para se constatar a formação de uma cultura política escrava, segundo Gomes, é repensar a cidade do Rio de Janeiro como uma cidade africana. Para se repensar essa interface africana da cidade, faz-se necessário priorizar nas análises “as ações mais endêmicas e cotidianas da vida escrava” (GOMES, 2005:84) como: as fugas temporárias ou de longa duração, os roubos de escravos e escravas, a sedução e as “casas de quilombos”.
Entender-se-á, então, como: “em torno de rotas de fugas, ajuntamentos e também de quilombos suburbanos, africanos e seus descendentes inventavam lógicas culturais numa sociedade escravista urbana, em que detalhes providenciais como roupas, corte de cabelos, marcas de ‘nações’ não ficaram invisíveis. Assim , os quilombos suburbanos promoveram e foram providos desta crioulização, permanentemente reinventada”.(GOMES, 2005:87)
Juliana Farias opta por acompanhar pretos minas pelos labirintos da cidade do Rio, em particular a Antônio mina, trabalhador e “feiticeiro”, interessada que está em desvelar, como os minas se organizavam e recriavam suas tradições culturais e políticas. Valendo-se de um relato do alufá Julio Ganam, ao conhecido cronista João do Rio, em 13 de maio de 1905, no qual ele referia-se à presença de “negros ricos” na cidade, a autora insere-se no mundo do trabalho e da luta pela liberdade desses africanos. Com forte tradição urbana e mercantil, os pretos minas dominavam o comércio ambulante, o setor de transporte e a “venda de feitiços”, não sem tensões e conflitos. “As redes e as conexões étnicas africanas inventadas nas relações de trabalho, alcançaram o século XX” (FARIAS, 2005: 115). Fato explicado, também, pela capacidade dos minas de criarem agremiações organizacionais, voltadas para proteção, solidariedade e compra de alforrias, prática iniciada nos setecentos.
A análise de três livros de registros de licenças para “ganhadores livres” (1879-1885) ofereceu dados que confirmaram a hegemonia mina nos transportes e entre as quitandeiras. A cidade do Rio conheceu, como dizia Julio Ganam, “negros ricos”. Carlos Eugênio Líbano Soares volta a trabalhar, com metodologia e base teórica renovadas, com uma fonte que conhece bem, os registros da Casa de Detenção, para responder à pergunta: o que significava ser liberto africano na capital do Império do Brasil entre 1860-1900. (Cf. SOARES, 2005: 151). Neste período, os registros indicam 1.157 detenções de africanos libertos, presos segundo a polícia por serem “vagabundos”, suspeitos de serem escravos, estarem em “casas de dar fortuna”, suspeitos de estarem fugindo, enfim, pelos motivos mais fúteis. As prisões refletiam o clima de intolerância e a vontade da polícia de reprimir os africanos, numa clara demonstração de que não se livrariam do estigma da escravidão tão cedo. Os registros deixam claro as inúmeras estratégias utilizadas pelos africanos libertos para não serem colhidos pela repressão: o desejo de viver desses libertos; as mudanças nos padrões de identidade, reveladores do inexorável processo de despersonalização; a permanência dos laços entre o Brasil e a África e o lento processo de extinção da comunidade africana na cidade que fora a maior “cidade negra” do Atlântico. Para consolidar a constatação da reinvenção africana da cidade, Soares, num trabalho artesanal, extrai dos dados relativos às prisões de africanos libertos entre 1860 e 1900, os padrões de ocupação, moradia e criminalidade, oferecendo aos leitores informações surpreendentes. Sintetizando, afirma: “Ser liberto africano era trabalhar cotidianamente no espaço aberto das ruas e praças, ou como lavadeira e quitandeira, ou como carregador e ganhador, herança da condição escrava; residir no entorno do grandioso Campo de Santana; ser um adulto com vaga memória de sua família, mudar de endereço com freqüência, mas para locais próximos e preferir residir com seus ‘parentes de nação’, sair de noite para encontrar amigos, ter a aguardente como principal lazer, estar pronto para ser detido a qualquer momento e por qualquer coisa, sob a alegação de ‘desordem’. Saber que a morte esperava em qualquer esquina, com muito pouca chance de retorno em vida para a distante terra da infância. Mas sonhar com a volta em alma, nos campos da eternidade”.(SOARES, 2005:199) O segundo texto elaborado por Soares é bem mais específico; focaliza “somente as mulheres africanas da ‘nação’ mina, escravas e libertas, por meio dos dados da Casa de Detenção e dos anúncios de fuga do século XIX”, entre 1835 e 1900.(SOARES, 2005:218)
O texto lembra que “nações” são construções do tráfico negreiro e dos senhores e não “identidades étnicas forjadas na África”; sobretudo, são identidades construídas na diáspora no confronto com situações complexas. Para o autor, “a ‘ nação’ mina no Rio de Janeiro era fruto da necessidade de aliança de diferentes grupos, como os ocidentais, em um ambiente dominado por diferentes, como angolas, benguelas, congos e cabindas entre outros”.(SOARES,2005 : 217-218)
Pode-se constatar, por exemplo, terem as minas utilizado laços de solidariedade tecidos pela “nação”; terem recorrido aos “parentescos étnicos” e às “casas de pretos libertos”.Ao cruzar os dados dos anúncios com os da Casa de Detenção vislumbra-se um pouco mais o significado do ser cativa ou liberta nos oitocentos. A diferença de condição jurídica se atenua no dia-a-dia da cidade. Elas são presas pelos mais diversos motivos, como estarem “fora de hora”, por práticas imorais, por embriaguez; especialmente as cativas dividem o espaço de trabalho na cidade e sofrem forte repressão em sua religiosidade. Com o advento da República, a repressão foi intensificada contra as “casas de fortuna”, consideradas como “enganadoras de credulidade”.
No final dos oitocentos, o silêncio, que caira sobre as altivas minas com seus tabuleiros, é rompido pela presença da nova geração de mulheres crioulas, cariocas e baianas, que engenhosamente preservarão a cultura escrava gestada nas ruas. Mesmo após a abolição, as Áfricas cariocas continuavam sendo recriadas por personagens como Assumano Mina Brasil, falecido em 22 de julho de 1933. Farias, no último capítulo de No Labirinto das nações, procura compor o seu perfil tendo como guia a questão: “ nesse contexto [fim do tráfico e pós-abolição] o que significava para Assumano Mina Brasil ser um negro mina muçulmano? (FARIAS, 2005:290)
Assumano Mina é preso na década de 1920, acusado de prática ilegal de medicina e enquadrado no artigo 157 do Código Penal. Naquele período, uma onda moralizadora varria a cidade. Centros espíritas, casas de culto, terreiros de candombé são vigiados de perto e perseguidos pela polícia. De Assumano Mina se sabe pelo cronista Francisco Guimarães, vulgo Vagalume, que era um personagem importante no cenário político cultural da cidade, envolvido com o samba e com pessoas ilustres, como Sinhô, José do Patrocínio Filho e o político e compadre Irineu Machado. Como ele, outros se faziam presentes na cidade, o babalaô Cipriano Abedé, Júlio Araújo Pereira (Tio Júlio) e Eugênio José Rufino.
A análise dos objetos apreendidos em sua casa e dos rituais realizados por ele não confirmou a prática da magia negra ou do “falso ou baixo espiritismo”. O que, no entanto, escapou aos peritos foram as relações com as tradições muçulmanas presentes no seu nome, nos saberes e fazeres. “A preservação de seu nome africano-muçulmano reafirmava a consciência de seus ancestrais religiosos e identitários. Ao redigir receitas e preces em ‘caracteres arábicos’, orar em ‘linguagem africana’, e mesmo sacrificar carneiros em rituais específicos, esse filho de africanos demonstrava uma firme determinação em conservar e reinventar a memória africana que herdara de seus pais”. (FARIAS:2005; 291)
O livro, fruto de uma “colaboração intelectual permanente” entre os autores, fornece pistas para se entender como os estudos historiográficos vêm superando a antiga oposição entre memória e história. No labirinto das nações: africanos e identidades no Rio de Janeiro aborda-se historicamente o processo de produções identitárias, nesses processos a memória tem um peso específico. Acompanhar a construção das identidades raciais negras na cidade do Rio de Janeiro de libertos africanos é perceber que estas se deram não só como contraponto à ordem escravista, mas em íntima ligação com o sutil e contínuo processo de conquista dos direitos de cidadania. Conquista árdua e gradual.
As pesquisas apresentadas voltam-se para um período ímpar da nossa história, pré-abolição e pós-abolição, deixando entrever as formas como as populações afrodescendentes lidaram com a liberdade, as suas estratégias para enfrentar os primeiros anos de liberdade e como buscaram a inserção social na sociedade pós-abolição.
No labirinto das nações apresenta uma documentação invejável sobre a vida dos libertos e libertas da cidade, além de indicar caminhos fecundos para futuras pesquisas. Importante, também, destacar a unidade e organicidade dos seis capítulos, graças a coerência metodológica mantida do princípio ao fim.
As edições do Arquivo Nacional melhoram a cada ano. Esta ganharia ainda mais se tivesse incluído recursos simples como cartografia e índice remissivo. A iniciativa do Arquivo Nacional de premiar as três melhores pesquisas realizadas na Instituição a cada dois anos tem dado uma contribuição importante para os estudos no campo da historiografia e antropologia. No labirinto das nações recebeu o prêmio em 2003 ao tirar o segundo lugar.
Livro inquieto e apaixonante, ele envolve o leitor levando-o a superar o texto denso e marcadamente histórico-crítico. O leitor acaba traçando, ao longo da leitura, um paralelo com o momento atual brasileiro, no qual busca-se, mediante políticas afirmativas, uma inserção real dos afrodescendentes na sociedade brasileira, que se apresenta multi-racial apenas quando lhe interessa.
[*] Professor do Programa de Estudos Pós- Graduados em Ciências da Religião da PUCSP e do Centro Nossa Senhora da Assunção (UNIFAI).
[1] SOARES, Carlos Eugênio Líbano, FARIAS, Juliana Barreto; GOMES, Flávio dos Santos. No labirinto das nações:africanos e identidades no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Archivo Nacional, 2005. 336p .ISBN 85-7009-076-5.