José Maria Mardones se foi para o Pai

Antonio G. Mendonça []
O sentido da vida e do mundo
depende da débil/forte
trama tecida pelos símbolos
.”.
(Mardones, “A vida do Símbolo”)

Nada há de mais ambíguo do que a vida, idéia consagrada no pensamento teológico de Paul Tillich. A vida é dialética; não podemos pensar nela sem que se pense no oposto, oposto que nem sempre é do nosso agrado. Assim são a vida e a morte, opostos inconciliáveis, mas sempre presentes. Procuramos viver bem a vida, gozá-la nos limites dos nossos ideais, nem sempre muito bons, enquanto a morte nos ronda atemorizando-nos e ao mesmo tempo incentivando-nos a preencher bem os nossos dias na fatal contagem regressiva. Vemos o rosto sombreado da morte quando a saúde nos torna débeis, quando se vão entes queridos e amigos ternos.

Pois foi assim comigo estes dias. Entro na Internet e digito o nome de José Maria Mardones. Abre-se a página e salta-me aos olhos, em destaque, a sentença José Maria Mardones se nos fue al Padre. Mal podia acreditar. Li e reli toda a notícia incluindo emocionados depoimentos de colegas e amigos. Cito o primeiro deles: “Querido Txema:” - suponho ser seu apelido carinhoso – “te has ido sin despedirte. Te has ido sin decir nada. Cosa bien rara en ti porque eras de comentar y razonar mucho las cosas”. Não há despedida mais sentida do que essa.

Mardones faleceu repentinamente, aos 63 anos, numa tarde de sexta-feira, dia 23 de junho de 2006, em Madri, no mesmo dia em que eu deixava o hospital após um infarto. Destinos opostos num só dia.

Mas, quem era mesmo José Maria Mardones? Para muita gente, muita mesmo, era o respeitado filósofo e sociólogo da religião, professor em várias universidades do mundo e, por ocasião de sua morte, pesquisador do CSIC - Consejo Superior de Investigaciones Científicas, em Madri. Foi um dos dirigentes do Seminário de Filosofia da Religião do mesmo CSIC. Seus principais centros de atenção eram a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt e as relações entre religião e cultura.

Escritor prolífico, escreveu extensamente sobre questões referentes às religiões no mundo atual, principalmente na Europa, preocupando-se sempre com a diminuição do sentimento religioso, da perda progressiva do simbólico, mas sempre abrindo janelas e apontando caminhos possíveis para o retorno do vigor religioso, essencialmente no Cristianismo. Um de seus livros traduzidos em português, “As novas formas da religião. A reconfiguração postcristiana da religião” (2000), aponta para os problemas da relação entre religião e cultura e, no outro, “A vida do símbolo, a dimensão simbólica da religião” (2003), publicado em português em 2006, Mardones chama-nos a atenção para a necessidade da redescoberta do símbolo como resposta à indiferença e à incredulidade características do mundo neoliberal.

Um dos amigos de Mardones, o professor Alberto da Silva Moreira, chamou-me a atenção para um de seus livros mais antigos, “Cristianismo y sociedad moderna” (1985), que ajudou a impulsionar o debate sobre as relações tensas entre Cristianismo e Modernidade. Não tive acesso a esse livro que levanta, segundo Moreira e como entendi, uma questão que só viria à tona entre nós bem mais tarde, isto é, que a Modernidade, ou Pós-modernidade, nos ajuda a entender a gênese e o crescimento de novas igrejas cristãs de caráter imediatista como as neopentecostais e outras. Não estando presas a dogmas e princípios de caráter universal como as igrejas cristãs históricas, elas podem se ajustar melhor às injunções da sociedade pós-moderna. Embora não conhecendo a maioria dos livros de Mardones, tenho para mim que um estudo cuidadoso de sua obra em muito nos ajudaria no entendimento do fenômeno religioso no Brasil contemporâneo.

É necessário refletir também que o decantado neoliberalismo, filho ou irmão da Pós-modernidade, não se refere exclusivamente ao capitalismo, mas a algo que perpassa todas as expressões da vida, inclusiva a ética e a moral. Constata Mardones que nem o marxismo, nem a psicanálise, nem a ciência e nem a new age puderam substituir realmente a nostalgia do Absoluto (p. 51). A defesa do simbólico na religião, entre outras coisas, vem a calhar neste momento em que a ciência ensaia novos ataques à religião como noticiam os meios de comunicação (Revista Época, 13.11.06).

Em resumo, o conjunto da obra de Mardones, ao abordar criticamente a religião sob seus mais variados ângulos, desde a Filosofia até a Sociologia, tudo debaixo do olhar da Teologia, vem a ser uma grande e atual contribuição para as Ciências da Religião, área de estudos em constante progresso no Brasil.

Isto é o que posso dizer a respeito do professor, acadêmico e sacerdote José Maria Mardones (1943-2006). Agora, passo à razão desta nota tão tardia em relação à morte de meu amigo, creiam, amigo “virtual”, mas tão real!

Em outubro de 2003, por indicação do Prof. Alberto da Silva Moreira, do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Católica, em Goiânia, recebi de Mardones o convite para escrever um artigo para a “Enciclopédia Ibero-americana de Religiões”, obra ainda em curso. Ele coordenava o tomo sobre não-crenças, agnosticismo e indiferença religiosa, e solicitava-me que escrevesse sobre o Positivismo no Brasil e América Latina. Honrado, embora a tarefa não me fosse fácil, aceitei o convite, dando início a uma correspondência que se prolongou por mais de dois anos. Passamos por vários assuntos, inclusive trocamos escritos e livros. Mas, o que mais me chamou a atenção e me sensibilizou sobremaneira, foi a lhaneza que sempre usou para comigo, tratando-me como se fôssemos amigos de longa data. Sempre começava suas mensagens com um costumeiro “Ao meu amigo no Brasil” a que eu respondia com “Ao meu amigo na Espanha”. Amigos virtuais, coisa só possível neste mundo tão tomado pela Internet, às vezes ruim, mas espaço para o surgimento de amizades verdadeiras. Nunca nos vimos pessoalmente, mas estou certo de que se isso acontecesse, o encontro seria o mais natural possível. Assim, posso entender as expressões de dor e carinho de seus amigos e admiradores por ocasião de sua morte. Criar amizades sinceras era uma das qualidades de Mardones.

Entretanto, não se pense que a delicadeza de trato de Mardones se traduzisse em condescendência, pois que era severo no julgamento daquilo que exigisse responsabilidade por envolver interesses que iam além da amizade pessoal. Tive de escrever e reescrever o artigo que me pediu até que fosse por ele julgado a contento, mas nunca “perdeu a ternura” e o bom humor ao me sugerir mudanças. Sugestões que sempre recebi como ordens, dada a sua reconhecida autoridade intelectual.

A última mensagem que tenho de Mardones data de 7 de abril de 2006, em que acusa e agradece o recebimento de uma revista que lhe mandara. Logo em seguida entrei em difícil período de enfermidades e minha correspondência se tornou pouco ativa. Enviei duas ou três mensagens a Mardones e todas voltaram, o que me surpreendeu sobremaneira porque não era de seu estilo não responder. Fiquei sem saber como agir porque não me lembrava de alguém que me pudesse explicar o que estava acontecendo. Daí, minha surpresa e consternação ao ler, seis meses depois, a notícia de sua morte. Lamento que da correspondência com ele só me restaram as primeiras e as últimas mensagens por problemas que tive com o computador.

Eu saía do hospital no mesmo dia em que ele entrava na eternidade. Minha homenagem sincera à memória “de meu amigo na Espanha”.