O tema que orientou a 28ª Conferência da Sociedade Internacional de Sociologia da Religião foi a questão das fronteiras entre a religião e a sociedade. Ao refletir sobre essas fronteiras poderíamos afirmar que, em última análise, a ISSR se questiona a respeito de sua própria existência. Se o religioso não tem um lócus específico ou mesmo algo que se entenda como único ou irredutível – o que, por conta disso, produz uma diluição no social, nas relações com o poder, o Estado, a sociedade civil, a economia e o mercado -, por que a existência de uma sociologia da religião? Não seria suficiente, pura e simplesmente, uma sociologia que desse conta de mais esse fenômeno social? Por que a necessidade de uma associação internacional de sociologia da religião?
Os fundadores da sociologia, como Émile Durkheim e Max Weber, dedicaram grande parte de seu trabalho ao campo religioso, que se tornou uma tradição forte nessa disciplina, mas que foi, em certo momento, deixado para trás com o domínio de um paradigma ateísta e defensor da secularização, que via esses estudos como secundários e não muito relevantes. Foi então que, com as discussões sobre “a volta do religioso” e do próprio conceito de “secularização”, de novo os estudos religiosos entraram na pauta de interesse. A questão, entretanto, persiste: por que uma sociologia da religião e por que esta necessidade de uma predicação que torne esse termo identificador de uma área que congregue estudiosos e tenha sua própria associação internacional, em vez de ser simplesmente mais um grupo de estudos dentro da Associação Internacional de Sociologia?
A própria existência da ISSR reclama, portanto, fronteiras, reclama uma definição de religião para que possa existir. E por isso a importância, no meu entender, do tema da conferência.
Também vem à tona outra pergunta: qual a diferença entre a ISSR e a Associação Internacional de História da Religião (IAHR)? Talvez esta última defenda mais abertamente a irredutibilidade do fenômeno religioso ao estar ligada aos intelectuais vinculados à tradição da fenomenologia da religião, fazendo, com isso, com que me atreva a dizer que a ISSR abre espaço para esta questão e permite que se a defenda, mesmo que em última análise a deixe em aberto; a Associação Internacional de Sociologia, por sua vez, talvez não veja interesse neste tipo de questão. Portanto, entre a Associação Internacional de Sociologia e a Associação Internacional de História da Religião (IAHR), teríamos a Sociedade Internacional de Sociologia da Religião (ISSR).
É exatamente esta posição em aberto que torna a reunião da ISSR interessante. Tanto podemos encontrar sociólogos firmemente defensores de uma sociologia que entende a religião como mero epifenômeno do social (um fenômeno como os demais de sua área), quanto sociólogos que defendem uma irredutibilidade do fenômeno religioso - isto torna possível a presença de teólogos e de sociólogos “católicos” ou “protestantes”, que, além de sua inserção na academia, têm também uma inserção em uma instituição religiosa.
A sessão temática “Religion’s conceptual boundaries: metanarratives, metatheories, explorations and transgressions” (“Fronteiras conceituais da religião: metanarrativas, metateorias, explorações e transgressões”), organizada por James Spickard e J. Shawn Landres, refletiu um pouco isso. Este grupo de trabalho foi orientado para discussões mais teóricas, porém, devido à participação em meu próprio grupo de trabalho, só me foi possível estar presente em uma das sessões, que se intitulava “Theorizing Religion”. Nesta sessão tínhamos três cientistas sociais discutindo conceitos sociológicos para o estudo da religião e uma teóloga que apresentava uma discussão de Hannah Arendt e propunha conclusões normativas, em que defendia a contribuição da religião para uma esfera pública e social saudáveis e a promoção de ações políticas.
Este grupo de trabalho discutiu principalmente a necessidade de um novo paradigma para a sociologia da religião. Uma apresentação propunha mudanças para a teoria da secularização, outra questionava o caráter de metanarrativa do conceito “pluralismo religioso”, e uma terceira advogava uma teoria pós-secularização que vise um enfoque de diferenciações horizontais, em que a religião se proponha não mais a responder “O que é a verdade”, mas sim a dar respostas à questão de “Como se deve viver”, oferecendo, assim, identidades. Por isso, Shawn Landres propunha que o estudo de identidades (ou seja, como o grupo religioso se define) poderia ser uma possível abordagem pluralista para estudar este novo tipo de religião em que o indivíduo se coloca como “buscador”.
É esta possibilidade de ouvir diferentes vozes que torna a reunião da ISSR interessante. Algumas sessões se propõem, de fato, a funcionar em conjunto com outros organismos associativos dos sociólogos, como a ISA (International Sociological Association) – este foi o caso do grupo de trabalho “Religion and well being”, organizado pela socióloga inglesa Grace Davie; ou como a AISLF (Association Internationale des Sociologues de Langue Française) – caso do grupo de trabalho sobre “Secularism/laicity/laicidad: in France and abroad”, liderado por Jean Bauberot.
E por tratar de língua francesa, a ISSR marca uma posição a esse respeito e é de fato uma reunião bilíngüe, em que as apresentações podem ser em inglês ou francês, o que tende a ser estranho no início, já que ao ir a um grupo de trabalho em que não há tradução simultânea (nas conferências gerais este serviço é disponibilizado) nos defrontamos, numa mesma sessão, com apresentações em um ou outro idioma.
Os grupos de trabalho giraram em torno de questões diversas, mas muitos enfatizaram a questão da secularização, as relações da religião com o Estado e a democracia, religião e a esfera pública ou privada etc. Muitas sessões trataram da situação da religião nos países pós-comunistas, e não é demais dizer que, mesmo tendo algumas sessões sobre a religião no Japão e em alguns países do Extremo Oriente, a reunião da ISSR é muito voltada para a situação na Europa; não há praticamente nada sobre a África e pouco sobre a América Latina e mesmo a América do Norte, excetuando-se o Canadá, que tem presença forte na associação, sendo bem provável que isto se dê pela questão da língua francesa.
A forte presença de sessões sobre os países pós-comunistas pode ter sido motivada pelo local da reunião, a Croácia, mas com certeza os estudos empíricos nesses países nos ajudam a refletir sobre a questão da secularização e das fronteiras.
Para mim, a reunião foi particularmente proveitosa, pois tive a oportunidade de encontrar muita gente que, como eu, também estuda o Islã, e é interessante ressaltar que o interesse por essa religião tem sido despertado principalmente entre os estudiosos mais jovens. Houve dois grupos de trabalho – “Religion(s) and the public /private spheres: what do the debates about Islam in Europe reveal about this relationship” e “Islam and dynamics of the national european societies” –, um grupo de papers numa sessão de miscelânea, além de alguns papers como autoridade feminina no Islã, o uso do véu, que foram apresentados em sessões que tratavam de questões de gênero ou outras. Não é de estranhar esse interesse pelo tema, dada a atual situação do Islã na Europa - entretanto, também não podemos esquecer que esta religião, especificamente, traz consigo para o debate as questões de secularização, das esferas pública/privada e mesmo das fronteiras, tema geral da reunião. Uma pena que não tenha havido uma discussão mais ampla nas sessões gerais sobre isto, principalmente devido à presença de Enzo Pace, que é o presidente da ISSR e escreveu recentemente um livro excelente intitulado Sociologia do Islã.
Senti falta, nas sessões plenárias, de uma discussão mais polemizada, em que fossem de fato apresentadas visões diferentes que permitissem ver o debate em curso na disciplina sobre a temática escolhida. Especialmente tocante na reunião foi a homenagem feita ao sociólogo inglês Bryan Wilson, que teve um tom pessoal e muito bonito.
Os autores que tiveram seus livros discutidos, James Beckford e Roland Campiche, também apresentam de alguma forma as duas faces da ISSR. Beckford e seu livro eminentemente sociológico”Social Theory and Religion”, e Campiche com o seu “Les Deux Visages de la Religion: Fascination et Désenchantement”, que, pelo menos no título (não pude assistir a sua discussão), evoca temas não só da sociologia, como da fenomenologia da religião.
Zagreb foi uma surpresa agradável, com seu centro bonito e tão europeu, e o passeio à histórica cidade de Varazdin nos permitiu ver um pouco do interior da Croácia, pelo menos através das janelas do ônibus que nos levava. O encontro se deu não apenas com os participantes estrangeiros, mas principalmente com os brasileiros, o que foi um presente à parte.
A dificuldade, principalmente financeira, é um obstáculo para a participação de estudiosos brasileiros nesses encontros internacionais. Penso, entretanto, que vale a pena fazer o esforço e participar da ISSR; é um espaço internacional possível, interessante e amplo que está aberto aos estudiosos brasileiros, tanto os ligados à sociologia da religião quanto à ciência da religião e a escolas de teologia. É interessante observar que, do Brasil, foram quatro professoras, duas ligadas à ciência da religião - eu e Maria José Rosado Nunes -, uma vinculada à Escola Superior de Teologia de São Leopoldo/RS - a antropóloga Adriane Rodolpho -, e Cecília Mariz, ligada ao curso de Sociologia da UERJ. Havia mais algumas pessoas que estavam previstas, mas que não foram, possivelmente por falta de financiamento. Mais uma vez, esta presença diversificada da representação brasileira ressalta o caráter aberto da conferência.
A abertura da ISSR para os estudiosos brasileiros não é teórica e, sim, de fato, e posso afirmar isto pois enviei o meu artigo e pedi um auxílio à ISSR para financiar minha ida ao congresso, que me foi dado. Meu bilhete aéreo foi pago com esse auxílio recebido.
Para terminar, a reunião da ISSR reafirmou mais uma vez a importância dos estudos da religião na atualidade e a necessidade de se discutirem novas possibilidades teóricas para se entender esse fenômeno nessa modernidade tardia em que vivemos. Pelo teor do que foi apresentado, há uma mudança em curso e isso pode ser vislumbrado na reafirmação da necessidade de novos referenciais teóricos e nos trabalhos empíricos que estão surgindo a partir dessa inquietação.
[*] Professora do Departamento de Ciências da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG); área de estudo e pesquisa: Islã e Sufismo.