Simpósio internacional alemão sobre "A compreensão da religião e das religiões no mundo hoje: tendências atuais"

Edênio Valle []
[PUC-São Paulo]

Em outubro de 2002 deu-se um importante Simpósio internacional sobre "Religião e religiões no mundo hoje. Tendências atuais nos distintos contextos"[1]. O patrocínio do Congresso coube ao Wissenschaftliches Missionsinstitut, que comemorava seu quadragésimo ano de fundação, com o apoio da Escola de Altos Estudos Filosófico-Teológicos de St. Augustin. Ambas as instituições gozam de prestígio científico na Alemanha e são conhecidas pelas suas publicações no campo dos Estudos da Religião. Presente como co-anfitrião estava, também, o Instituto Anthropos, dedicado à Etnologia, Antropologia e Lingüística.

Não se tratava de repensar a teologia cristã das religiões e sim de aprofundar o modo como hoje a religião, respectivamente, as religiões, são vistas nas distintas situações e diferentes contextos que marcam os cinco continentes. Buscava-se investigar os impasses e chances das religiões na atual conjuntura global do mundo e tematizar alguns problemas que se levantam neste contexto. Durante os cinco dias do Congresso os dias de estudo eram abertos com exposições que cobriam, em cada manhã, a situação de um dado continente. À tarde sucediam-se debates em forma de intercâmbio direto entre os expositores principais e o público, quase todo ele vindo da própria Alemanha. Como referência de fundo, foi, aos poucos, se colocando a discussão em torno do papel que as religiões poderiam ocupar no campo da paz mundial.

Essa temática de fundo parecia sofrer duas influências conjunturais. De um lado pairava no ar o fantasma do ato terrorista de 11 de setembro e, de outro, a possibilidade de uma hipotética guerra (que acabou se dando no Iraque) na qual as religiões acirrariam conflitos latentes, puxadas por grupos extremistas. Mais concretamente, a discussão era ditada pelas perspectivas levantadas pelos principais conferencistas. O pluralismo religioso acabou sendo uma espécie de eixo do debate teórico centrado em torno de três sub-temas: o da importância das religiões para o encaminhamento dos grandes problemas do mundo; o do fundamentalismo e tensão entre as próprias religiões; e o do sentido que se deve atribuir ao próprio conceito de religião/ões mundiais hoje. Na agenda do Simpósio, o Oriente Médio e a Ásia ocuparam um lugar de destaque. Especial atenção foi dada à relação entre o Islamismo e o pluralismo secularizado endossado pelo Ocidente, mas escondendo conotações religiosas, em especial no que se refere aos Estados Unidos.

O tema explorado pelo Dr. Adam Was (Jordânia e Polônia), além de considerações históricas altamente elucidativas para a compreensão do que acontece hoje no Médio Oriente e países árabes em geral, tinha como ponto de força levar a um entendimento crítico do fundamentalismo teológico e político hoje constatado em alguns setores muçulmanos. A situação na Ásia, por seu peso, foi exposta por dois conferencistas. Um foi o Dr. Cleto Colaço (Índia), que enfocou expressamente a questão do pluralismo em seu país, detendo-se tanto em seu caráter propriamente religioso e no desafio representado para o Cristianismo, quanto na arraigada tensão hoje percebida entre algumas religiões na Índia, como é o caso do conflito entre o Islamismo e o Hinduísmo no norte do país.

Já Wei Chiao (da China) tomou como eixo de sua longa exposição a relação entre o Cristianismo e a cultura chinesa, trazendo a discussão para os dias de hoje e abordando também a situação vivida pelas igrejas cristãs na China continental. O dia dedicado à África teve, igualmente, no pluralismo seu principal eixo analítico. Coube ao Dr. Dieter Skweres (do Togo) a tarefa nada fácil de falar sobre as tendências religiosas na África contemporânea. Renunciando a dar uma visão de conjunto que poderia resultar demasiadamente diluída, ele preferiu tornar clara a influência do Islã na África contemporânea, ela própria sacudida por tensões étnico-religiosas, mas fundamentalmente às voltas com o pluralismo religioso e a necessidade da convivência entre culturas e etnias pouco afeitas ao diálogo.

O conhecido especialista em Sociologia da Religião, Paul M. Zulehner (da Áustria) perguntava em sua palestra se estamos ante um colapso ou uma retomada da religião na Europa. A pergunta em certo sentido foi deixada no ar, mas os dados estatísticos levantados pelo cientista social e pastoralista apontavam para elementos novos que parecem surgir no horizonte europeu na presente virada de milênio.

A conferência relativa à América Latina ficou a cargo de Edênio Valle (Brasil). Os organizadores do Simpósio solicitaram explicitamente ao palestrista que falasse das mudanças em curso na compreensão e atuação das "religiões populares", mostrando o que acontece no jogo de aproximação X distanciamento entre as religiões de origem afro-indígena e o Cristianismo, em suas duas vertentes: a da tradição cinco vezes centenária do catolicismo e a atual onda conversionista que vem dos Estados Unidos. Edênio Valle ofereceu como chave para a leitura do que acontece no momento o conceito de macro-ecumenismo, a forma de diálogo inter-religioso que desponta em setores de ponta das religiões no continente americano. Uma versão simplificada do paper apresentado pode ser encontrada neste número de REVER.

Dadas a vastidão da temática e a policromia das abordagens é difícil dizer a que conclusões chegou o Simpósio. Aliás, não foram feitas tentativas nesta direção. Parece que a intenção dos organizadores era mais a de traçar um quadro geral e permitir uma primeira análise comparativa que ficou deixada mais para cada participante. Ficou, no entanto, evidente para todos que a religião e as religiões permanecem um fenômeno central na história humana. Sua complexidade seguramente não permite afirmações genéricas comuns a todas as suas formas e tendências. São muitas as compreensões do fenômeno religioso e da religião, mesmo dentro de religiões de longa história e tradição. Também as novas religiões estão aí e se espalham, trazendo elementos de difícil enquadramento para uma análise objetiva de suas relações dentro e fora do campo religioso.

Como latino-americano, chamou minha especial atenção o modo consciente com que o Islamismo se põe no mundo de hoje. Além de ser a religião em mais rápida expansão no mundo de hoje, a entrada do Corão traz inevitavelmente uma tensão política também em certos contextos asiáticos e africanos. No Brasil mal percebemos tal problemática, provavelmente devido à nossa ignorância respeito da verdadeira situação do Islamismo hoje. Para muitos de nós, o que sabemos do mundo islâmico é o que lemos nas entrelinhas das agências internacionais, cuja unilateralidade é notória. As palestras que se referiram diretamente ao Islamismo (as de Was e Skweres) foram para mim as mais elucidativas.

Quanto ao papel do Cristianismo, intrigou-me uma palavra de Jürgen Habermas citada por um conferencista. Ele a pronunciou em 2001, ao receber o Prêmio da Paz do Livro Alemão. Sintomaticamente o filósofo alemão, conhecido por suas agudas interpretações da crise da modernidade européia, elegeu como assunto de seu pronunciamento o diálogo entre o Cristianismo e a Europa contemporânea. Falando dos perigos que a pesquisa genética pode trazer à humanidade no futuro, Habermas afirma que o diálogo com o Cristianismo é simplesmente vital para o futuro da Europa.

Alargando essa afirmação, eu poderia dizer que o Simpósio de St. Augustin mostrou-me que o diálogo entre as religiões é uma das prioridades para quem quer pensar caminhos válidos e factíveis para a conquista de uma verdadeira paz e justiça mundiais. Embora a secularização da sociedade, da economia e da cultura estejam longe de ser uma página virada da história, hoje cresce - também entre os estudiosos - a convicção de que as religiões têm um papel a desempenhar no mundo globalizado e cheio de riscos que o ocidente cristão criou. Do que ouvi dos participantes e conferencistas do Simpósio ficou-me a certeza de que as normas e padrões (secularizados ou religiosos) que o ocidente, sob o manto do cristianismo, tentou impor a povos que há milênios vivem de outras tradições e valores culturais e religiosos, são justificáveis só para quem tem uma visão eurocêntrica da história. O mundo de amanhã será culturalmente pluriforme. Falar em globalização da história, em sentido estrito, é desconhecer a força das culturas e, nelas, da/s religião/ões. Este é um tema que merece seguramente ser melhor debatido e acompanhado pelos cientistas da religião. Ele é vital não só para uma reconceituação da religião e das religiões no mundo globalizado, mas, mais ainda, para a abertura de pistas novas para uma nova humanidade capaz de dialogar na diferença.

Notas

[1] Os anais do Simpósio foram publicados por Bettscheider, Heribert (Hrsg.). Das Verständnis von Religion und Religionen weltweit. Aktuelle Tendenzen in verschiedenen Kontexten. Steyler Verlag, Nettetal, 2003.