RECENSÃO

ANDERSON, Pamela Sue.
A Feminist Philosophy of Religion. The Rationality and Myths of Religious Belief. Oxford, Blackwell Publishers, 1998

por Edênio Valle

1. Quase já não existe campo do conhecimento humano que não tenha sido abordado – e, geralmente, com rigor e propriedade -- desde a perspectiva de gênero. Ë natural que também na Filosofia da Religião, surgissem obras escritas nessa ótica. O trabalho de Pamela S. Anderson deve, sem dúvida, ser mencionado entre as contribuições de maior expressão no campo da filosofia feminista da religião. Como diz um de seus críticos, Graham Ward, da Universidade de Cambridge, trata-se de um livro "novo e ousado, que precisa ser tomado com seriedade, uma vez que representa um ataque acadêmico de primeira grandeza contra a maneira dominante como a Filosofia da Religião tem sido e continua sendo praticada na Inglaterra e nos Estados Unidos". A obra interessa, portanto, a todos/as que almejam entrar em uma discussão seriamente fundamentada a respeito da difícil empreitada de se desconstruir uma já milenar filosofia da religião contextuada e pensada sem levar em conta o que hoje se chama de ótica feminista e/ou perspectiva de gênero.

A autora confessa que seu interesse mais direto pelo enfoque feminista da filosofia da religião é relativamente recente. Não é fruto dos bancos acadêmicos. Nasceu de um repto lançado pela revista Hypathia, em 1994. Essa revista perguntava, naquela ocasião, "onde estariam escondidas as/os filósofos/as feministas da religião?" Como filósofa de formação acadêmica clássica, ela se sentiu desafiada pela questão. Não quis que o desafio ficasse sem resposta ou que fosse respondido só pelas já numerosas teólogas feministas. Seu livro apresenta os resultados de seus esforços de oito anos de reflexão feita do ponto de vista estritamente filosófico. Dirige-se, primariamente, a filósofos/as, mas é altamente elucidativo para todos os estudiosos/as das ciências da religião, uma vez que privilegia a questão epistemológica, assunto que interessa a qualquer estudioso/a do fenômeno religioso.

Saliento que a própria autora delimita seu propósito ao anotar que tem em mente tão só filósofos/as da religião que circunscrevem a reflexão a formas " empiricamente realistas" de teísmo. Com isto ela, parece, se afasta dos/as que se cirscunscrevem apenas às "as novas perspectivas abertas pelas epistemologias feministas anglo-saxônicas". Para quem filosofa desde o ângulo de gênero o fundamental é ter presente que o teísta tradicional usa o termo experiência de um modo masculinamente neutro ("formally male-neutral") para falar das idéias, impressões, sensações, percepções corpóreas, evidências, mitos e crenças não-inferidas relativas à religião (p. 13). Anderson, como conhecedora que é dos clássicos (dos gregos a Agostinho e de Tomás a Locke, Kant ou Hegel, assim como dos contemporâneos, como Swinburne, Barth, Ricoeur e Júlia Krosteva, essa última, uma arguta psicanalista francesa), tem consciência de que não é (ainda) possível desenvolver uma visão feminista de toda a Filosofia da Religião, por mais que essa meta precise e deva ser perseguida. Por isto, ela circunscreve seu projeto – aliás amplo e ambicioso – à análise da "racionalidade e mitos da crença religiosa", conforme bem o enuncia o sub-título de seu livro. Seu intento fundamental é o de ver criticamente as formas clássicas do teísmo ocidental, assim como esse aparece em alguns dos maiores nomes da filosofia da religião.

A autora pretende questionar alguns dos pressupostos que sustentam as concepções filosóficas sobre Deus (sua bondade, sua não corporeidade, seu poder, seu conhecimento). Mais particularmente, escreve ela, "quero investigar o que foi assumido quanto à crença religiosa em termos de razão, objetividade e desejo; preocupações sobre sexo e gênero têm (assim) lugar proeminente nessas investigações" (p. IX). Anderson é de opinião que a ausência de uma crítica filosófica mais sólida ao que se pensa sobre "objetividade e mito" provocou uma enorme dificuldade em reconhecer os preconceitos contra a mulher que se despistam entre as dobras das teorias filosóficas sobre a religião e "sobre nós (mulheres) com nossos desejos e paixões". Em decorrência dessa incapacidade, importantes argumentos epistemológicos, metodológicos e teóricos, éticos e metafísicos próprios à abordagem de gênero continuam sendo ignorados pelas concepções vigentes no teísmo ocidental.

À diferença, porém, de "aproximações não realistas", hoje muito divulgadas, para Anderson a reflexão filosófico-religiosa deve ser capaz de assumir posição contra injustiças e contra crenças e preconceitos que sejam perniciosos ao ser humano. O que ela quer, parece-me, é tomar distância, seja de visões estreitas que defendem formas teístas ingenuamente realistas, seja de outras que acabam descambando para sistemas teisticos potencialmente dogmáticos, nos quais é fácil reconhecer laivos de arraigado androcentrismo. Aliás, o que se viveu no fim do ano de 2001 mostrou-nos exemplos extremamente claros deste tipo de teismo.


2. Anderson organiza seu material de argumentação em quatro partes maiores, subdivididas em capítulos bem delimitados e precisos.

Parece que o ponto central ao qual ela sempre, de alguma forma, retorna pode ser assim sintetizado: a maneira como a racionalidade das filosofias da religião hoje existentes se articula – muito especialmente no caso de certas formas ingênuas de teísmos/ateísmos empírico-realistas -- precisa ser repensada em suas raízes e mesmo metamorfoseada, pois não foi submetida a intuições e instrumentos conceituais novos surgidos posteriormente à sua elaboração. Esses conduzem a uma reconfiguração racional das crenças religiosas pela via da inclusão de conteúdos e conceitos que têm sua origem na diversidade do desejo e do sexo e não em justificações empíricas e lógicas. É mister, portanto, descer mais radicalmente à análise reflexiva das premissas e suposições que se ocultam sob o aparente rigor das argumentações filosóficas usuais. A ótica feminista e de gênero tem – eis o que Anderson tenta reiteradamente mostrar -- têm aqui um papel subversivamente relevante. Pamela ilustra tais reconfigurações da crença religiosa apontando para figuras míticas femininas (do oriente e do ocidente) que se contrapõem de maneira frontal ao que o modelo filosófico e o imaginário patriarcal ocidental propõem.

Ressalte-se, porém, que a autora não tem a pretensão de estar apresentando categorias definitivas. Seu objetivo é muito mais "o de estimular o avanço dos conhecimentos feministas"(p. 245), uma vez que existe urgência em se criar uma reflexão feminina verdadeiramente nova sobre o religioso em si. O que importa é elucidar a maneira como atuam o simbólico religioso e a "imagery" filosófica, pondo a nu os mitos patriarcais e, sobretudo, orientando homens e mulheres em direção a um filosofar capaz de raciocinar, desejar e crer de modo apaixonado, mas isento de idéias e ideais calcados na repressão e na opressão.


3. A parte I do livro é introdutória. Tem um caráter mais genérico. Nela são delineados alguns conceitos de fundo em torno de questões como sexo, gênero, razão e crença. Toca, ainda, em vários outros tópicos e preocupações hoje centrais na filosofia contemporânea da religião e a questões relativas aos métodos e instrumentos conceituais usados hoje pela filosofia. O capítulo contém um apelo enérgico para que não se abandone a racionalidade, o que não deixa de surpreender, uma vez que os capítulos seguintes não são senão uma crítica bastante radical à essa mesma racionalidade. A insistência da autora é na necessidade de repensar e reconfigurar pela raiz os mitos que subjazem à racionalidade da filosofia ocidental da religião e não da exclusão do racional, denunciado sic et simpliciter com masculino, em favor do afetivo e do passional, identificado sem mais com o feminino.

A parte II delineia com maior minúcia e não sem notas altamente eruditas o confronto da ótica feminista com a racionalidade religiosa ocidental.É constituída por 3 capítulos muito bem articulados. No primeiro deles, a crença e a experiência religiosas são associadas ao que a autora chama de "dever epistemológico", ou seja, com o dever de denunciar com veemência o modo como a racionalidade filosófica privilegia o que é empírico e impede, exatamente por essa razão, a chegada tanto ao que constitui os andaimes estruturais epistemológicos ("epistemic frameworks") da fé, quanto ao questionamento conseqüente da suposta neutralidade da razão filosófica ocidental. Partindo dessa crítica, Pamela Anderson começa a sistematizar sua crítica feminista da racionalidade religiosa e a traçar os elementos que permitiriam reconfigurá-la de maneira filosoficamente mais completa. Deixando de lado o tom de crítica negativa, ela começa a indicar direções e possibilidades abertas pelo pós-estruturalismo feminista. É aqui que o leitor mais crítico se pergunta se todo o trabalho de des-construção anti-epistemológica levou de fato à construção de um edifício novo ou se ficou mais ou tão somente em aspectos válidos, mas apenas indicativos. Os capítulos 2 e 3 caminham nessa mesma direção, mas são mais centrados em uma perspectiva feminista "vivenciada" do que possa ser a nova racionalidade da fé religiosa atenta à crítica feminista, seja em sua objetividade (capítulo 2), seja em sua dimensão desiderativa (capítulo 3). Impossível resumir aqui a argumentação detalhada e sólida da autora.

A parte III é, segundo meu modo de ver, o miolo de toda a argumentação. Intitula-se: "refigurações da fé". Pode ser sintetizada na seguinte frase (carregada de desejo, mas também de modéstia) da autora: (o feminismo pós-estruturalista) "não privilegia o desejo sobre a razão, a irracionalidade sobre a racionalidade. Oferece, antes, às epistemólogas feministas instrumentos psicolinguísticos para começar a retirar da terra o que nela foi enterrado pelas estruturas patriarcais subjacentes à fé e aos mitos. Admito que, filosoficamente falando, os métodos da psicolinguítica não representam um êxito pleno. Mas, apesar disto, as feministas posestruturalistas podem lançar a filosofia da religião em uma direção nova e apropriada que unifica desejo e razão, mesmo redescobrindo que o mito é que dá unidade a ambos" (p. 246).

A parte IV é batizada com o nome de "conclusão" e em parte o é. Mas, por outro lado, representa uma retomada dos temas polêmicos e complexos que assomam repetidamente ao longo da introdução e dos 5 capítulos que constituem o miolo das partes II e III do livro. Reafloram aqui os temas da imaginação filosófica, do simbólico, da razão iluminista, do patriarcado. Reemergem assuntos como o da morte e da mímesis, sempre na ótica da mulher. A autora não se esquece de insistir na necessidade de a filosofia feminista da religião ter presente e dar continuidade histórica aos ideais da justiça, da liberdade e do amor e à utopia de o homem e a mulher se unirem na afirmação de novas crenças sobre a vida e a morte e sobre as diferenças que existem entre ambos em matéria de sexo, gênero, classe e etnia.


4. Depois de ter mostrado o essencial desta "Filosofia Feminista da Religião" de Pamela S. Anderson resta-me, talvez, repetir ao leitor/a o que disse logo no início: essa é uma obra séria que não pode nem deve ser lida de maneira superficial. Trata-se, no sentido mais exato e técnico do termo de "uma obra de filosofia", que avança por paragens ainda não dominadas pela mente filosófica acadêmicamente formada, seja ela masculina ou feminina. Mas, este, sem dúvida, é um livro que só poderia se escrito por uma mulher. E por uma mulher que sabe o que é filosofar e que o faz com inteira consciência de sua corporeidade, de seu desejo e de sua inteligência de mulher.