DERRIDA, Jacques e VATTIMO, Gianni, (Org.)
A Religião. O Seminário de Capri, São Paulo, 2000.

por Edênio Valle
[Programa de Ciências da Religião - Pós-graduação da PUC-SP

I

1. O livro que passo a recensear foi e é um best seller nos principais centros de pensamento da Europa e da América do Norte. Em nosso país sua repercussão já foi menor. Vejo no colóquio filosófico convocado por Vattimo e Derrida, no ano de 1994, em Capri – Itália, um fato de grande significado no presente panorama das Ciências da Religião. Dois dos mais conhecidos filósofos europeus contemporâneos, atendendo à solicitação de dois gigantes editoriais (Éditions du Seuil e Editori Laterza), chamaram a si a tarefa de reunir na bela ilha italiana este seleto grupo de "sete sábios" da França, Itália, Espanha e Alemanha para discutir nada mais, mais nada menos, que o fenômeno que apressadamente ou não, eles próprios apelidaram de "retorno das religiões".

Discutir em um fórum de tão alto nível um assunto como esse não deixa de ser surpreendente. Até bem pouco interessar-se por um tema assim piegas causava arrepios nos bem-pensantes. Mesmo no clima mais aberto de hoje a coragem destes intelectuais deve ter provocado um franzir de testa inclusive nos que conhecem o itinerário intelectual dos participantes do colóquio de Capri, muito especialmente de Jacques Derrida, um dos pensadores mais presentes na mídia mundial. Nem todos conseguem perceber o alcance de um debate tão intenso e despreconceituoso como o que reuniu esse seleto grupo, por dois dias seguidos, para se perguntar, no plano filosófico-cultural e não no teológico, sobre o significado da religião e da fé no contexto da atual crise da modernidade ocidental.

2. Entre os que assinam os artigos do livro que em boa hora a Estação Liberdade traduziu ao português , estão nomes de enorme prestígio intelectual. Além dos já citados mentores do encontro, sentavam-se à mesa o mitológico Hans-Georg Gadamer, essa testemunha viva da filosofia do século XX, Maurizio Ferraris, Vincenzo Vitiello, Aldo Gargani e Eugenio Trías, esse último espanhol. Não resta dúvida de que a presença de pensadores e escritores de tal porte é uma prova de que os tempos que correm já não são os mesmos de Hegel e de Nietzsche ou, já mais próximo a nós, dos interessados na desconstrução pós-moderna em curso. Mas serão realmente assim tão diferentes esses vários momentos da história do pensamento contemporâneo sobre a religião ? Estaremos de fato assistindo a um renascer dos deuses em meio ao aparente triunfo dessa nossa civilização pós-moderna, pós-tecnológica e "pós-tudo"?

3. Interessante que, segundo o testemunho de Vattimo, todos os consultados na fase preparatória do Seminário tenham dado de imediato seu parecer favorável ao tema-argumento proposto para o colóquio: a religião. Era como se todos eles tivessem tido a mesma intuição da importância desse assunto na conjuntura vivida pela Europa de fim de século. O insuspeito Jacques Derrida exclama, entre a admiração e o pasmo, ao constatar essa coincidência de interesses que se voltam para a temática "da salvação, do são e do santo, do sagrado, do salvo, do indene, do imune" (...) "como ousar falar disso ( religião) no singular, sem temor nem tremor, nos dias de hoje (..) quem teria a impudência de pretender que se trate de um assunto ao mesmo tempo identificável e novo? Quem teria a presunção de adequar-lhe alguns aforismas ? Para atribuir-se a coragem, a arrogância ou a serenidade necessárias, talvez, então, seja preciso fingir por um instante, fazer abstração, abstração de tudo ou de quase tudo, uma certa abstração. Talvez seja necessário apostar na mais concreta e mais acessível, mas também a mais desértica das abstrações" (p.11). E lembra, muito justificadamente a frase famosa de Hegel: "Salve-se quem puder!" ("Rette sich, wer kann !").

4. Para mim a leitura dos textos publicados neste volume comprovaram à saciedade que a filosofia da virada do século já começou para valer a crítica à crítica que a Aufklärung fazia da religião. Todos os que, com alguma seriedade, tentam acompanhar o que se passa na cultura de hoje sentem um "mal estar" análogo ao do grupo de Capri, diante do pedantismo iluminista que dominou o pensamento europeu durante tanto tempo. O evento de Capri comprova que a postura totalitária, reducionista e objetivadora, tão freqüente nos Iluminismos de ontem e de hoje começou realmente a sentir seus limites e a fazer a auto-crítica de sua crítica à religião. Difícil dizer aonde nos levará tal reflexão. Mas, sem dúvida ela já se instaurou. A discussão já não se processa na faixa estreita dos dois campos que se contrapunham no mundo do pensamento quando se tratava de refletir sobre o religioso: "de um lado a Religião, do outro, a Razão, as Luzes, a Ciência, a Crítica (a crítica marxista, a genealogia nietzcheana, a psicanálise freudiana e respectivas heranças), como se a existência de um estivesse condicionada ao desaparecimento da outra. Pelo contrário, (é) necessário partir de outro esquema para tentar pensar o dito "retorno do religioso"(p. 15). Esse "esquema" é que esteve no centro do interesse do debate da ilha de Tibério. Ele marca uma Wende no rumo das discussões embora, seguramente, não possa ser identificado sem mais ao que Hegel previra quando, em "Fé e saber" anunciou que um dia chegaria uma "religião dos novos tempos" - "eine Religion der neuen Zeit". (p. 25). Lembro-me, a propósito, de um dito de Jean Baudrillard que li não me recordo onde e anotei em minha agenda: "em algum lugar da década dos oitenta do século XX, a história fez uma curva, girando em direção posta à anterior".

II

1. No que segue vou cingir-me mais ao que diz Derrida, cujo pensamento parece ter dado a tônica do colóquio (quantitativamente quase um terço dos textos saíram de sua pena em um português nem sempre compreensível, coisa que talvez se dê também com o original francês, dado o caráter rebuscado do estilo de Derrida). Não que eu desconsidere a importância dos demais participantes, mas tão só porque essa recensão deve ser curta e não vejo como fazer justiça em um espaço assim restrito à complexidade e novidade que encontro em cada um dos outros seis artigos que compõem o livro. Derrida, a exemplo do que lhe acontecia em Paris, àquela época, brilhou em Capri como uma estrela maior.

O filósofo francês escreveu para o livro dois textos, ambos centrados em torno de um tema clássico e sempre provocante. Ele próprio formulou assim o tema: "Fé e saber. As duas fontes da "religião" nos limites da simples razão". Em ambos seu esforço principal parece ser o de elucidar o significado profundo – etimológico, filosófico, histórico-cultural e religioso – da palavra "religio", analisando essa expressão criada pelo gênio romano desde as mesmas duas fontes que já Kant, Hegel e Bergson apontavam como fundantes para a correta compreensão da "religio" "nos limites da razão simples": a fé e o conhecimento. O primeiro texto (p. 11 a 36) parece reproduzir o que ele disse, quase verbalmente, em Capri. É prolixo e abrangente. Aponta, qual metralhadora giratória, para um sem número de assuntos, fazendo ilações e apontando referências. O segundo foi acrescentado, mais tarde, como um post –scriptum, no qual aprofunda o já dito (p. 36- 89). Em ambos, especialmente no segundo, ele esbanja refinada erudição filosófica unida à abordagem de problemas e características bem concretas da religiosidade e e da cultura ocidentais hoje. É nesse contexto que aparecem alusões e observações muito interessantes em torno de temas tão diversos quanto o fundamentalismo, a intolerância, os messianismos, o ciberespaço, a teletecnociência, a crença e a fé. (p. 29 ss.). Vejamos dois exemplos. Do messianismo (não necessariamente o de extração judaico-cristã) ele faz uma espécie de releitura. O messianismo seria para ele a matéria prima da "religião sem religião". Mais especificamente, seria uma fé indeterminada no que está por vir ("à venir, lávenir"), no que expressa um inconformismo com a injustiça presente e um desejo irrenunciável de democracia e de paz, mesmo estando ciente de que essas não chegarão. Em um trecho que lembra o profeta Isaias, Derrida diz que o messianismo é um anseio profético de que a justiça flua como se fora água correndo no deserto, sem contudo se deixar manietar pelas determinações de uma regulamentação ideal. Um segundo exemplo é-nos oferecido por sua reflexão pós-iluminista sobre a "croyance", palavra que em português, no caso, eu traduziria por "crença", para distinguí-la de "fé". Derrida não quer ser um "crente" compromissado em sua vida e pensamento com sistemas dogmáticos. Mas, ele vê a propriedade da "fé", entendida em sua estrutura e dinâmica profundas. Pondo-se em uma perspectiva pós-iluminista ele pensa que a razão não é nunca só "simples razão" ("blosse Vernunft"); a fé tem a ver com o cerne mesmo da razão. Por isto toca ao pensador crítico que busca entender a religião conectar e não separar a razão e a fé. A linguagem (o dirigir-se ao outro) e a história (o caráter de "événementialité" da história, para usar o palavrão intraduzível de Derrida) têm ambas a ver com fé, expectativa, promessa e futuro. É essa estrutura que Derrida chama de "messianicidade".

Pelo acima dito, vê-se que embora os textos guardem (o primeiro especialmente) o sabor de uma exposição oral eles contêm reflexões complexas e a leitura do escrito é árdua. Não vejo como resumir aqui a riqueza aí contida e só posso recomendar ao leitor que se debruce diretamente sobre os textos (de Derrida e dos demais), pois trazem luz nova para a problemática que inquieta a todos que sentem a urgência de um aprofundamento do que acontece no mundo ocidental com a religião e as religiões.

2. È como escreve Derrida: "... apesar das urgências éticas e políticas que não deixariam ficar esperando a resposta, não se há de considerar, portanto, uma reflexão sobre o nome latino de "religião" como sendo um exercício escolar, um hors d'oeuvre filológico ou um luxo etimológico, em suma, como um álibi destinado a suspender o julgamento ou a decisão, na melhor das hipóteses, como uma outra epoché". Em Capri, o Derrida da "desconstrução" dos anos 80 e 90, parece ter se voltado para o conceito de religião para dizer que esse não deve ser entendido como um jogo livre de significantes, mas como uma experiência de algo (uma justiça e uma democracia) que goza de uma certa 'indestrutibilidade" histórica que nada tem de imaginária. Esse algo exige do pensador respostas reflexamente responsáveis: "é necessário saber bem o que significa responder e, ao mesmo tempo, o que significa responsabilidade. Ainda é preciso sabê-lo bem -- e crer nisso. Com efeito não haverá responsabilidade sem princípio de responsabilidade: é necessário responder ao outro, diante do outro e de si. E não haverá responsabilidade sem fé jurada, sem garantia, sem juramento, sem algum sacramentum ou jus jurandum" (p. 40-41).

III

Concluo, recordando uma afirmação de Vattimo (p. 92) ao dizer que "em nossas condições de existência (ocidente cristão, modernidade secularizada, estado de ânimo de final de século tenso devido aos prementes e inéditos riscos apocalípticos) a religião é experimentada como um retorno e o restabelecimento presente de algo que acreditávamos ter estado esquecido definitivamente, a reativação de um vestígio adormecido, a reabertura de uma ferida, a reaparição de algo que fora removido, a revelação de que o que pensávamos ter sido uma Überwindung (superação, aquisição de veracidade e conseqüente descarte) ainda é somente uma Verwindung, uma longa convalescença que tem de tornar a enfrentar o vestígio indelével de sua doença.

Se o que está acontecendo no campo religioso for de fato um retorno, não poderá ser entendido como " um modo de a religião se reapresentar que permanece acidental em relação à sua própria essência". Essa observação merece o interesse por parte dos estudiosos da religião e da religiosidade nas culturas globalizadas e plurais que o neo-liberalismo está impondo de maneira aparentemente uniformizadora a todos os povos. Concordo com Vattimo quando acentua que o ressurgir da religião no horizonte do homem e da mulher pós-modernos " não deveria ser visto como algo acidental, a ser posto de lado para simplesmente nos concentrarmos nos conteúdos que desse modo retornam". Podemos e devemos , como bem o mostra o seminário de Capri, supor com toda a legitimidade e rigor de pensamento que o retorno d religioso (algo que não equivale simplesmente ao retorno das religiões novas ou antigas) seja um e até mesmo "o" aspecto essencial da experiência religiosa de nosso tempo. (p. 92).

Perdôe-me o leitor se não logrei entusiasmá-lo a tomar em mãos esse livro difícil e oportuno. O que eu queria dizer, no fundo, era apenas que vale a pena tentar fazê-lo.