O Número 3 de nossa revista "REVER", consagrado à apresentação de alguns temas emergentes no campo das ciências da religião hoje, quer manter presente um dos objetivos da própria publicação que é o de acompanhar as discussões metateóricas subjacentes aos novos temas em discussão. Essa é uma das razões que me levam a ler e recensear esse livro, no qual Timothy Fitzgerald aborda o tema da ideologia, um assunto bastante familiar aos cientistas da religião do Brasil. Mas o professor inglês o faz desde ângulos diferentes dos que costumamos usar, especialmente nas ciências sociais. Por essa razão, vale a pena apresentar ao leitor/a brasileiro esse livro bem recebido pela crítica inglesa especializada, da qual o autor é um expoente.
Dividirei meu comentário do vasto material do livro em duas partes, a primeira é mais teórica; a segunda voltada para fenômenos religiosos mais específicos, como o do Budismo e do Hinduísmo na Índia. São considerações às quais temos raramente acesso aqui no Brasil e servem, por isto, para ilustrar de maneira mais convincente o que constitui a tese central do autor, a saber, a de que existe em nos estudos da religião uma espécie de preconceito ideológico de base que precisa ser denunciado. Sem resenhar capítulo por capítulo e sem entrar em detalhes que exigiriam muito tempo e espaço, mostrarei apenas o essencial do que é polemicamente avançado pelo autor.
1. Fitzgerald parte de um pressuposto que procura manter de modo coerente e radical ao longo de todos os capítulos de seu livro. Para ele a religião, assim como os cientistas da religião costumeiramente a entendem e tratam, não pode nem deve ser tomada como "uma categoria analítica válida". Geralmente, segundo o autor, o cientista da religião trabalha a partir de visões parciais e abstrações que o impedem de enquadrar o fenômeno social que investiga em sua perspectiva real e adequada. O motivo de tal deficiência intrínseca à própria maneira de elaborar o quadro conceitual é o seguinte: a conceituação de religião normalmente não consegue colher " nenhum dos aspectos inter-culturais ('cross cultural') distintivos da vida humana"(p. 4). Se nossas categorias analíticas tivessem em conta esses aspectos multi e interculturais elas seriam capazes de perceber imediatamente que um só e mesmo fenômeno religioso em estudo pode ter sentidos opostos e até contraditórios, em função dos diferentes sets culturais em que ele acontece. Por isto - eis a tese de fundo de Fitzgerald - as disciplinas acadêmicas que estudam o objeto batizado como sendo "religioso", por não considerarem esse objeto em sua real contextuação empírica, acabam por obscurecê-lo. Um fenômeno religioso é um fato humano e socio-cultural que não mostra sua natureza e seu verdadeiro rosto a não ser através da mediação dos fatores que o envolvem em cada situação específica.
Na explicação ulterior das conseqüências desse a priori, Fitzgerald assume uma posição que um "religionista" chamaria com toda certeza de reducionista ou culturalista, uma vez que leva quase necessariamente a perder de vista o proprium do fenômeno religioso que -- para os que vêm na religião algo humanamente irredutível e específico -- se situa além de suas circunstâncias e condicionamentos culturais. Parece, na verdade, que a posição defendida pelo scholar inglês quase não deixa espaço para que se possa teoricamente falar do religioso enquanto tal, pois, para ele, o fenômeno religioso, quando visto dentro das variáveis do sistema simbólico concreto em que se verifica, perde o que, na cabeça do investigador, é entendido como sendo "o religioso". O que constitui a especificidade do religioso se dissolveria e se confundiria simplesmente com o antropológico, o político e o social.
No entender de Fitzgerald a armadilha ideológica que se esconde por trás do conceito de religião usado pelos cientistas da religião se expressa no acima dito. Haveria na epistemologia e na metodologia deles um arraigado "bias" ideológico do qual o estudioso da religião nem sempre se dá conta. A saída para o autor seria a seguinte. As várias áreas de estudo da religião precisariam rever-se e reelaborar seus conceitos de fundo. O religioso precisa ser entendido enquanto um fenômeno cultural que só é adequadamente enfocado na medida em que o cientista prestar atenção às instituições e padrões que tipificam cada sociedade e cada grupo cultural.
Nesse esforço o estudioso deve dar especial ênfase à análise teórica e empírica de dois aspectos. Primeiro, não pode perder de vista a relação que - sempre ! -- existe entre os padrões e valores institucionalizados e a legitimação do poder. Segundo, aproximando-se a uma preocupação muito presente nos estudos sociais realizados no Brasil, Fitzgerald, indo mais longe, afirma que a construção da religião de que falam as ciências da religião, enquanto objeto trans-cultural ("as global, cross-cultural objects of study ") deve ser entendida como fruto de um processo histórico indissociável do colonialismo e da expansão da cultura e da religião européias. Ele oferece diversos exemplos desse processo de construção situado e datado no contexto do colonialismo e do imperialismo que ainda persistem no jogo de poder tanto político quanto ideológico-cultural. Um deles é a contraposição que as ciências da religião postulam, de formas variadas, entre o religioso e o secular. Esse é um construto teórico nascido da história dos países e religiões ocidentais e tem pouca utilidade fora do contexto que o gerou, mas acaba servindo como parâmetro (até inconsciente) para quem busca compreender a religião de culturas e povos que tiveram outra história. Eis alguns outros exemplos de conceitos ideologicamente maquiados: valores, instituição religiosa, linguagem, religiões mundiais, dimensão social, etc. Segundo Fitzgerald, são todos eles conceitos pesadamente afetados por idéias teológicas de extração judaico-cristã, aplicados hoje em dia desde uma visão de tipo ecumênico-liberal. Tais conceitos são de utilidade quase nula fora do contexto em que foram produzidos. Mesmo aí, precisariam ser desideologizados, para não tornar mais "obscuro" ainda o objeto religioso que pretendem descrever e interpretar . Na discussão dessa espécie de "desconstrução" do objeto religioso estudado pelas ciências da religião, Fitzgerald se refere, às vezes polemicamente, a idéias de conhecidos filósofos da religião, como Ninian Smart e Peter Byrne.
2. Já pelo capítulo 6, na segunda parte, valendo-se de seus conhecimentos sobre a Índia, o autor passa a estudar fenômenos religiosos bastante concretos verificados naquele país tão diferente e - nos últimos cinqüenta anos - tão vizinho, academicamente sobretudo, ao ocidente moderno. Um dos fenômenos tomados sob a lupa de Fitzgerald é o do Budismo de B.R. Ambedkar, um líder político e religioso que exerceu importante papel na modernização da Índia, à época de Gandhi. Ambedkhar abriu aos hindus pertencentes à casta dos intocáveis, da região de Maharashtra, o caminho para a passagem a uma nova modalidade de Budismo, uma vez que a assimilação dos párias residentes naquela província não era possível dentro do Hinduismo local com seu sistema de castas.
O líder religioso, venerado como um Buda, por milhões de "neo-budistas" (expressão minha) dessa nova variante religiosa, tornou esse tipo de Budismo a base política para a viabilização de uma sociedade mais igualitária, segundo os padrões democráticos reconhecidos pela Constituição criada após a independência da Índia (p. 120-129). Fitzgerald, após descrever essa "nova religião" surgida no bojo do que já existia há milênios, diz que o conceito de "religião", assim como os cientistas sociais do ocidente o forjaram, em nada serve para o entendimento, seja da soteriologia e do intercâmbio com o transcendente (aspectos teológicos), seja das relações sociais (aspecto sociológico e político) que essa religião dos intocáveis viabiliza de maneira exemplar. Aplicando a tese por ele defendida na parte primeira do livro, o autor tenta mostrar que essa inutilidade do conceito de religião no caso desse fenômeno bem circunscrito se mostra assim tão claramente porque no fundo o Budismo Ambedkhar "é principalmente um movimento político sob roupagens budistas".
Em seguida, no capítulo 7, Fitzgerald passa a falar do Hinduismo que para ele é não tanto uma religião e sim a expressão de uma civilização religiosa, na qual aquela religião tem uma evidente conotação político-social, uma vez que serve para a atribuição cultural e social do lugar de cada um no sistema de castas. O fato de negligenciar esse aspecto essencial do Hinduísmo hindu, assim como esse foi historicamente construído e é sustentado até hoje, fez com que os cientistas da religião do ocidente descrevessem de modo falho o Hinduísmo que está se espalhando hoje mundo a fora. Em conseqüência, conceitos importantes que decorrem de processos endógenos à formação do Hinduísmo primevo ou são usados erroneamente ou sequer são mencionados. Um bom exemplo do primeiro caso - uso errôneo -- é o conceito de "conversão", muito em voga no ocidente devido ao intenso trânsito religioso que se verifica em muitos países e também no Brasil. Em um sistema de classes falar de "conversão" é quase um contra-senso. Sociológica e politicamente falando um paria não pode "converter-se" dentro do Hinduísmo, É diferente do que acontece com um favelado brasileiro que pode entrar na Igreja neopentecostal "Deus é Amor", embora também nessa Igreja, uma análise mais acurada possa mostrar a existência de limites para tal entrada ou conversão.
Um psicólogo da religião brasileiro - esse exemplo é meu - que quisesse entender a religiosidade de um hindu, em qualquer de seus aspectos, deveria antes, necessariamente, munir-se de conceitos novos tais como os de "dharma", "pureza ritual", "casta", "gênero", "hierarquia", "contaminação", além de muitos outros a nós desconhecidos, Não basta ir diretamente ao que nos é mais familiar, como "reencarnação" e "carma". É fácil perceber, por esses exemplos, que falar de "religião", em seu sentido mais genérico, é insuficiente para quem pretende dar conta de um fenômeno religioso específico. O que se mostra como indispensável ao estudioso de fenômenos concretos como os pesquisados por Fitzgerald, é ser capaz de compreender 'o sistema simbólico de base que está por baixo de toda a gama de instituições religiosas". Pondo-se dentro do universo conceitual hindu, Fitzgerald segue adiante, mostrando como isto pode de fato ser feito no estudo do hinduísmo. Explica-o trabalhando a noção de "dharma" (a ordem ritual eterna que predefine a condição exata de cada ser, inclusive das próprias divindades e do cosmos). Essa, para ele, é uma noção mais ideológica que religiosa. A exposição de Fitzgerald sobre esse caráter ideológico do dharma quer ser uma demonstração de que só se pode penetrar o que é original no Hinduismo se partimos de uma análise que mostre como os valores religiosos institucionalizados por aquela religião estão correlacionados à legitimação do poder.
Há ainda um ponto importante no pensamento de Fitzgerald. É o que se refere à cultura em sua conexão com a religião. É exatamente nesse capítulo - onde ele fala também do Japão - que ele expõe sua tese de que os estudos da religião precisam hoje ser de índole inter-cultural (cross-cultural), mas sob a condição de rever os conceitos de cultura e inter-cultura sejam teórica e empiricamente revistos na linha crítica por ele sugerida.