Ao tomar em mão esse respeitável volume de mais de 500 páginas, formato "in octavo", qualquer leitor perceberá logo que está ante uma obra de peso. Não me refiro ao peso físico da obra e sim ao qualitativo. Uma qualidade que tem seu principal selo de garantia no grupo que assumiu a ingente tarefa de resumir tudo o que se tem feito nesses 70 anos em termos de avaliação da religiosidade. Os editores - Peter C. Hill e Ralph W. Hood Jr - são dois dos mais famosos psicólogos da religião no mundo inteiro. São conhecidos como especialistas nesse assunto específico, mas, mais ainda, por sua visão ampla do que se faz e se questiona no extenso campo do ramo científico que eles cultivam. Uma olhada na lista dos 51 colaboradores/as por eles convocados para a tarefa nos mostra que aí se congrega a nata dos pesquisadores/as dos Estados Unidos e do Canadá. Quem tem formação psicológica de corte europeu talvez lamente a ausência de qualquer referência ao que já se fez naquele continente, mas parece-me que seria demasiado pedir aos pesquisadores americanos que abrangessem também o que existe a respeito em alemão, francês, italiano, espanhol ou flamengo. O objetivo que eles se prefixaram restringia-se, de antemão, ao que se estudou na América do Norte de língua inglesa. É desnecessário dizer que foi nos Estados Unidos que mais se trabalhou nesse campo, seja pela índole da psicologia americana, seja pelo alto custo financeiro desse tipo de investigação.
1. Os editores afirmam no prefácio que a idéia de fazer esse elenco crítico de todos os instrumentos já propostos para a "medição" da religiosidade nasceu durante um Congresso de especialistas realizado em New York, em 1986. Nessa ocasião se fez ouvir uma queixa generalizada a respeito da dificuldade de acesso aos inventários e escalas de religiosidade de menor difusão. Esse fato não só dificultava a informação prévia sobre o já pesquisado como também provocava reduplicações e gastos de energia desnecessários. Foi externado o desejo de que se publicasse um volume semelhante à valiosa resenha de inventários e instrumentos para a avaliação psicossocial das atitudes (Measures of Social Psychological Attitudes) que John Robinson e Phillip Shaver organizaram em 1971, trazendo grandes vantagens para as pesquisas nessa área. No volume de Robinson e Shaver havia também algo sobre o existente em psicologia da religião e que, infelizmente, eles omitiram por ocasião da segunda edição de seu trabalho, em 1991. Essa era uma razão a mais para que alguém se dedicasse ao ciclópico trabalho de organizar o volume sugerido. Sua concretização se viabilizou graças a duas instituições, a John Templeton Foundation e o Instituto Nacional para o Cuidado da Saúde (NIHR). À John Templeton interessa o avanço dos estudos científicos sobre a religião e à NIHR importa correlacionar as possíveis ligações entre a saúde mental e física e a religiosidade, tema sobre o qual se fala muito - pró ou contra - mas sobre o qual se sabe relativamente pouco de maneira comprovada. Mas o mérito da publicação se deve principalmente aos profissionais que a compilaram. Foi seguramente uma tarefa nada fácil que demandou anos e anos de persistente esforço.
2. Os autores da obra, sabendo de antemão os problemas de sua área de pesquisa e das ressalvas que precisam ser feitas quanto às investigações psicométricas enquanto tais, escreveram uma nota preliminar sobre a avaliação psicológica da religiosidade através de escalas. São páginas curtas e incisivas, elaboradas dentro da visão crítica que hoje se firmou no campo da psicometria.
A posição básica dos autores está bem expressa em uma frase de R.L. Gorsuch ao afirmar, já em 1884, que a psicologia da religião "estava pronta para ir além da mensuração, dedicando-se a assuntos de consistência mais fundamental" (p. 3). Pessoalmente, penso que Hill e Hood, ao endossarem essa afirmação programática de seu colega, tinham em mente ao menos três coisas básicas: (a) conheciam bem as teorias que estão por trás dessas pesquisas de natureza psicométrica; (b) tinham consciência de que a introdução de computadores de última geração abre horizontes não sonhados por quem pesquisava nos anos 60 ou 70; (c) estavam conscientes de que a pesquisa sobre a religiosidade está ainda longe do que se fez em áreas psicológicas de maior prestígio como são a psicologia da personalidade, da inteligência ou do diagnóstico psicoclínico em geral.
3. Eles sabiam igualmente que, tanto nesses ramos de prestígio quanto no da psicologia da religião, existem sérios problemas e não poucas limitações que devem ser levados em conta. Eles desenvolvem, por isso, interessantes ponderações críticas a respeito dos limites dos instrumentos de avaliação da religiosidade que apresentam. São deficiências provenientes dos próprios instrumentos, das amostragens, dos métodos estatísticos empregados, dos pressupostos e das ilações teóricas em se apoiam os investigadores, etc.
Eis alguns dos pontos que Hill e Hood sublinham (p. 4 - 5): os "testes" são freqüentemente aplicados a estudantes, por estarem mais à mão; a população é em geral cristã e quase sempre protestante; a confiabilidade (reliability") das escalas varia muito; o mesmo se diga da estandardização dos instrumentos e da validade de sua aplicação em outros grupos que não o pesquisado. Além disto há uma grande desigualdade entre a base experimental dos instrumentos. Escalas como a "Escala de Misticismo" de Hood, ou as que avaliam o caráter "extrínseco x intrínseco" da religiosidade se baseiam em centenas e centenas de pesquisas e gozam de bom suporte teórico. Outras se limitam a poucas e não bem selecionadas amostragens, além de apresentarem fragilidades de natureza teórica. Há um outro ponto ressaltado pelos editores: é o que se refere à noção de religiosidade. Os pesquisadores não estão falando da mesma coisa. Sob o manto conceitual dessa palavra escondem-se realidades e conceitos muito diversos e até contraditórios.
É pena que os autores tenham ficado no plano da indicação genérica desses pontos questionáveis, sem descer na crítica direta de cada um dos instrumentos apresentados nos 17 capítulos do livro. Reconheço, contudo, de novo, que seria pedir-lhes demasiado.
4. A seleção do material apresentado obedeceu a alguns critérios, sendo o primeiro, parece-me, o da idoneidade científica do mesmo. Eis os critérios explicitados às p. 6 - 7: o da orientação e da base teórica que presidiu a investigação; as variáveis e fatores selecionados e seu nível de abstração; a consistência interna das escalas finais; sua ulterior aplicação por outros pesquisadores; a confiabilidade estatística das escalas finais e seu posterior desenvolvimento; os "bias" teóricos que presidiram a seleção das variáveis; os procedimentos usados na estandardização das escalas; o modo de perguntar favorecendo ou não o conhecido fenômeno da aquiescência social, etc.
5. Há um detalhe que merece nossa atenção: é o da época em que a escala foi construída e dada à luz. O período de construção das escalas se estende dos anos 20 e 30 até data bem recente. Assim encontramos as famosas escalas de Thurstone e Chave sobre as atitudes em relação à igreja (de 1929) e a de Thouless sobre as crenças religiosas (1935) . Na outra ponta extrema do tempo, temos a escala de Gibson e Francis (de 1996) sobre o fundamentalismo.
Constata-se que ao longo dos 70 anos pesquisados há épocas de maior ou de menor produção. O objeto específico de interesse também vai migrando segundo a época. Nos anos 60 e 70 a preocupação se voltava para a aferição das crenças, do tipo de vinculação à igreja e da própria religiosidade. Nos anos 80 e seguintes emergiram temáticas como a do misticismo, da concepção de Deus e do fundamentalismo. Algumas escalas, lançadas nessa mesma época, correlacionam a religiosidade ou pertença a uma igreja/religião a variáveis não-religiosas como o dogmatismo, os objetivos existenciais, a auto-realização, a dimensão trans-pessoal, etc.
Ao todo são apresentadas, dentro de um prático e bem pensado esquema unitário, nada menos que 119 diversas escalas. É difícil encontrar uma faceta do comportamento religioso que não seja mencionada. A ordem de apresentação de cada escala é a seguinte: após enunciar o nome oficial da escala, passa-se a descrever as variáveis, fatores e itens específicos que ela estuda. Seguem-se observações práticas sobre a administração do instrumento e da leitura dos resultados. No fim, há indicações técnicas sobre a estandardização, a confiabilidade e validade do instrumento e também uma breve bibliografia.
6. Os editores se preocuparam em pôr ordem no emaranhado surgido do confronto entre tantos instrumentos, perguntando-se qual o objeto preciso que cada escala pretende "medir". Chegaram à conclusão de que as 119 escalas podem ser distribuídas por 17 agrupamentos ("clusters"), uma vez que seus objetos e objetivos se recobrem de alguma maneira. Enumero essas 17 constelações criadas pelos editores (e não através de recursos de correlação estatística), para que o leitor possa ter uma melhor idéia da complexidade e riqueza dos traços religiosos que preocupam o psicólogo da religião voltado para a avaliação empírica do que os teóricos da religião chamam de religiosidade. O número que consta depois de cada categoria corresponde à quantidade das escalas apresentadas no livro:
7. Ao repassar esses 17 blocos, detendo-me na análise de seu conteúdo, tive uma reação que não sei se coincide com a de outros leitores que têm certa prevenção contra metodologias quantitativas. De um lado, admirei-me com o incrível número de aspectos que as escalas apresentadas tomam em consideração, procurando operacionalizar suas expressões no quadro da cultura religiosa norte-americana. Mas, de outro lado, perguntei-me se um número tão grande de árvores não estaria mais ocultando que revelando o bosque enquanto tal. O que, afinal, é a religiosidade? É tudo isto ou tem um núcleo próprio que lhe é essencial? Qual é esse núcleo para o psicometrista crítico? Como esse algo mais essencial transparece nas formas e variantes culturais colhidas pelos "testes" ? Ou, radicalizando o questionamento, é a religiosidade uma multidão de árvores esparsas que só mediante artifícios teóricos os pesquisadores/as teimosamente continuam a chamar de religiosidade?
8. Uma última observação, como alguém que acompanha a evolução da psicologia em geral e da psicologia da religião no Brasil há mais de 35 anos. Constato do meu modesto posto de observação que, entre nós, a psicologia em geral oscila desde duas posições. Às vezes, ela sublinha seu caráter científico e percebe, por essa razão, que a psicologia brasileira está correndo o risco de virar um novelo obscuro de posições sem fundamento, que criam um lusco-fusco no qual todos os gatos são pardos. Outras vezes - e é o que vejo acontecer mais nesse momento, em especial no que toca a religião e a religiosidade - a psicologia faz corpo mole enquanto ciência e entra no jogo de afirmações fantasiosas, genéricas e gratuitas, recusando-se a submeter suas teses ao crivo da verificação científica de sua validade.
Em um tal contexto, penso que o livro de Hill e Hood é de ajuda para discernir se a nossa psicologia brasileira da religião se funda ou não em métodos e em teorizações cientificamente verificáveis. Sem uma prévia e rigorosa observação, sem teorização consistente sobre o observado e sem métodos que permitam a verificação de nossas hipóteses dificilmente poderemos chegar a uma boa descrição psicológica do real perfil religioso do brasileiro. Tudo isto exige um conhecimento mínimo do que já se logrou em outros países na avaliação da religiosidade. Mesmo sendo críticos em relação à psicometria do passado, podemos e devemos usar na psicologia da religião instrumentos de avaliação, como os que Hill e Hood põem à nossa disposição. Essa é uma boa maneira de colocar ordem e algum rigor em nossas generalizações mais intuitivas que científicas sobre a religiosidade.
Estou convencido de que uma visão psicológica bem fundamentada da religiosidade do brasileiro não poderá surgir sem que aprendamos a estudar melhor as caraterísticas que distinguem social e culturalmente nossa religiosidade da de outros povos. É isto que livros como o aqui resenhado me leva a pensar. Vejo nele um convite à pesquisa séria e a uma teorização mais objetiva e mais inteligente sobre nossa realidade religiosa.