Diderot, um dos pais da Grande Enciclopédia Francesa, dizia que a principal caraterística de um bom dicionário deveria ser a de mudar a maneira de pensar de quem o consulta. Se essa opinião do enciclopedista é válida, o Dicionário que as PUF acabam de lançar merece realmente o nome de Dicionário pois cumpre à risca essa função de informar e formar criticamente a mente do leitor/a.
Os verbetes temáticos foram cuidadosamente selecionados pelas especialistas que coordenaram o empreendimento. Também os colaboradores/as foram escolhidos a dedo devido à sua competência nos assuntos em discussão. Ao que tudo indica, a maioria das autoras mulheres (só dois são homens) tem uma história pessoal de militância feminista, mas não é por este título que foram indicadas para colaborar nessa obra. Foram suas pesquisas, seu pensamento e suas publicações que justificaram o convite a elas dirigido para elaborar esta síntese do pensamento feminista francês atual.
1. A maioria das autoras/es dos textos trabalham em famosos institutos de pesquisa (como o GEDISST – Groupe d'études sur la division sociale et sexuelle du travai, ou o CEDREF- Centre d'enseignement, de doumentation et de recherches pour les études féministes), fazem parte do corpo de redação de revistas prestigiosas (como o "Cahiers du Genre"), ensinam em universidades (como a de Paris, Versailles, Toulouse e outras). Em uma palavra: são intelectuais e cientistas altamente qualificadas. Evidentemente há um predomínio de autores/as de nacionalidade francesa. Mas, entre os 47 colaboradores/as, comparecem uma espanhola, uma italiana, uma norte-americana, uma canadense, uma belga e, para surpresa e satisfação do leitor brasileiro, uma compatriota nossa. A formação acadêmica de todo este grupo – ou melhor dizendo desta "rede" -- de colaboradores/as é predominantemente sociológica, mas também várias outras áreas das ciências humanas se acham representadas.
Os assuntos abordados são bem mais numerosos que os 46 verbetes formais constantes do índice poderiam nos fazer pensar. Cada um dos vocábulos resenhados remete a inúmeros outros temas e problemáticas. No fim de cada verbete são elencados alguns temas afins e são fornecidas dicas bibliográficas de complementação que muito ajudam a ressaltar as questões conexas e a esclarecer as ramificações e os contextos implicados pelo assunto específico em debate. Deste ponto de vista este pequeno dicionário francês é uma verdadeira mina de informação.
À diferença de outras vertentes do feminismo, a ênfase está posta no social e no histórico. Ao longo de cada uma de suas 299 páginas do volume parece existir uma permanente atenção dos autores/as e organizadoras quanto a algumas preocupações de índole política e histórico-sociológica. Especial destaque, talvez devido à influência do GEDISST, é conferido à questão do trabalho e ao problema da divisão sexual do trabalho.
2. Temáticamente os verbetes podem ser distribuídos em três categorias maiores. A primeira é de notável amplidão teórica. Tem cunho econômico e sociológico. Essa me pareceu ser como que a marca registrada deste dicionário francês. Como já insinuei, a questão da trabalho, acha-se muito no centro das análises. A preocupação principal parece ser a de ressaltar, contra tal pano de fundo, a importância da problemática feminista na compreensão das relações sociais de sexo e no sistema produtivo de escala macro. Neste sentido, o dicionário elenca verbetes seguramente raros em outras tentativas de compendiação da visão feminista. Eis alguns exemplos: "desenvolvimento", "sexuação da linguagem científica", "mundialização", "universalismo", "trabalho", "desemprego", "sindicato", etc. Cada um destes assuntos é tratado desde uma perspectiva que aproxima a visão feminista à crítica teórica econômica típica das oposições francesas de hoje. Mas sempre de corte feminista. Um segundo grupo de verbetes se enquadra perfeitamente dentro do figurino que se espera encontrar em um dicionário feminista. São palavras que se movem bem dentro do universo semântico feminista. Referem-se de modo bastante imediato às preocupações, lutas e campos de intervenção do feminismo. Elenco algumas destas palavras: "aborto", "maternidade", "prostituição", "sexualidade", "trabalho doméstico", "reprodução humana", etc. Em um terceiro agrupamento, vizinho ao segundo mas teóricamente mais amplo, podemos reunir alguns conceitos de importância para a formulação de uma teoria feminista melhor articulada. Eis alguns deles: "gênero", "relações sociais de sexo", "patriarcado", "poder", "dominação", "feminilidade-masculinidade", etc .
Pelo que logrei aferir não existe uma unanimidade de posições entre os autores/as que o dicionário congrega. Aqui e ali notam-se discrepâncias de posições, o que não pode surpreender em um dicionário que se pretende crítico. No entanto, existe uma base comum bastante extensa entre o que os vários autores/as vão dizendo, o que talvez mostre haver já certa aproximacão entre as teorias feministas euro-americanas de maior densidade. Mas, continua pairando no ar, penso eu, uma questão teórica de não fácil resposta: as distintas relações existentes na vida social organizada (em especial as de classe, de sexo e de raça) obedecem a algum tipo de hierarquização? Ou, indo avante: que lugar ocupa de fato, neste jogo de relações, o chamado "gênero"? Como fica, neste contexto, o dilema igualdade/diferença?
3. Uma obra como esta, evidentemente, não visa em primeiro lugar discutir a dimensão que a religião poderia ou deveria ter no complexo quadro do feminismo contemporâneo. Interessante, porém, observar que as organizadoras do dicionário não quiseram deixar inteiramente de fora essa questão, seguramente por a considerarem de importância. Confiaram a eleboração da entrada "religiões" a uma socióloga brasileira, Maria José F. Rosado Nunes, aliás uma das redatoras de nosso Jornal Eletrônico REVER e responsável por este número monográfico consagrado ao tema "Religião e feminismo".
Em breves pinceladas descreverei o que a socióloga brasileira diz sobre essa questão. Maria José coloca-se a priori na posição que é a de todo o dicionário, a sociológica. Para ela, do ponto de vista teórico e metodológico, é preciso ver de um modo sociológicamente dinâmico as relações entre as mulheres e as religiões. As mulheres, dependendo de cada contextuação, tanto podem atuar como força de conservação, aceitando submissamente o que lhes é socialmente imposto, como também como elementos de mudança e força catalizadora de inovação social, econômica e político-cultural.
Os comportamentos, práticas, crenças e símbolos religiosos femininos refletem, na perspectiva da sociologia, o que é socialmente dado. Não se trata de enquadrar o religioso sob o manto de ferro da causalidade determinista e sim de perceber que as religiões se apoiam (em geral ocultando) sobre as relações sociais que subjazem aos intercâmbios entre as classes, os sexos e as raças. São essas relações que merecem a especial atenção do sociólogo interessado em entender e analisar adequadamente "as relações das mulheres com as religiões e das religiões com as mulheres". Partindo de tais premissas, Maria José Rosado explica que as relações existentes entre as mulheres e as religiões ganharam em visibilidade na medida em que os estudos feministas mais gerais foram avançando. Houve várias fases e momentos neste lento desenvolvimento teórico e prático. No início a tônica era de denúncia do caráter opressor das religiões, de todas as religiões, em certo sentido. Também conteúdos mais vizinhos à fé foram objeto dessa crítica demolidora. Eis alguns dos exemplos aduzidos por Maria José: o monoteismo em si, a imagem masculinizada do divino, a figura submissa de Maria Virgem, os escritos sagrados das religiões históricas, o caráter hierárquico e androcêntrico do sacerdócio, etc. Desta crítica se passou à afirmação de rituais e cultos alternativos moldados segundo o gênio feminino e inspirados muitas vezes em cultos ancestrais pré-cristãos.
Também os clássicos da sociologia, É. Durkheim e M. Weber, por exemplo, tiveram que passar pelo crivo dessa mesma crítica. O mesmo, segundo penso, pode-se dizer de K. Marx. Um dos aspectos tomados sob fogo cerrado foi o do poder religioso, com suas muitas máscaras, justificativas e despistamentos, todos eles habilmente camuflados por uma instituição mono-sexuada que defendia este seu modo de ser e organizar-se como de origem divina. O grande objetivo das feministas era o de deixar claro que o poder eclesiástico, especialmente no cristianismo, nada mais era do que resultado da divisão sexual do trabalho.
Um outro ponto posto em evidência por Rosado corresponde à discussão sobre a possibilidade ou não de uma real mudança do campo religioso em favor das mulheres. É uma questão que encontra opiniões não convergentes também entre as mulheres. Para algumas (como Mary Daly) o androcentrismo é algo tão intrínseco às religiões históricas de fato existentes que se lhes tornou uma espécie de segunda pele. Investir na religião seria, portanto, para a mulher, um sinônimo de submissão e alienação conservadora. Para outras, como a teóloga E. Schussler Fiorenza, a dominação masculina se deve ao fato de o acervo institucionalizado de experiências religiosas ter sido, em um dado momento histórico, apropriado pelos homens. Logo tratar-se-ia de algo reversível, como se pode ver no próprio tecido da história: não foi sempre assim!. Na realidade, como investigações empíricas mais concretas bem o demonstram, as religiões são construções sociais e culturais complexas de grande ambivalência e maleabilidade. Rosado, que pesquisou isto no Brasil, conclui dizendo que "se trata de compreender como as atividades simbólicas – crenças, ritos e falas – e a organização do poder religioso que aparentemente escapa às relações sociais de sexo, são de fato por elas modeladas". E indica algumas pistas de pesquisa nesta direção, bem como fornece uma bibliografia de orientação.
4. A tradução deste "status quaestionis" atual dos estudos feminísticos na França, poderia vir a preencher uma lacuna na bibliografia brasileira sobre o feminismo. Também os estudiosos da religião ganhariam, com a tradução deste livro, um subsídio muito útil para aprofundar a temática das relações entre feminismo e religião.