KOESTER, Helmut
Introdução ao Novo Testamento, Vol. 1 - história, cultura e religião do período helenístico, Paulus, São Paulo, 2005, ISBN 8534922802, 432 p.

por Pedro Lima Vasconcellos

Introdução

Seria preciso aguardar o aparecimento do segundo volume de Helmut Koester - História e literatura do cristianismo primitivo - para se poder fazer uma apreciação de sua colossal obra. Mas não é possível esperar: a tradução Introdução ao Novo Testamento, publicada pela editora Paulus, representa um marco na bibliografia a respeito de temática disponível em português.

Koester é um discípulo confesso do controvertido Rudolf Bultmann (falecido em 1976), célebre, entre outras coisas, por seu projeto de “desmitologização” do Novo Testamento. Na introdução de seu trabalho O cristianismo primitivo no quadro das religiões antigas, Bultmann assim se expressava, no início da década de 1950: “A origem do cristianismo primitivo considerado como fenômeno histórico se encontra no seio do judaísmo... O cristianismo primitivo é, contudo, um fenômeno complexo. Sua crença e a forma que tomou foram, muito rapidamente, fecundadas e determinadas pelas forças espirituais do helenismo pagão que, por sua parte, conservava a herança da história espiritual grega, mas havia sido igualmente estimulado e enriquecido pelo contato com as religiões do Oriente Próximo” (Le christianisme primitif dans le cadre des religions antiques. Payot, Paris, 1969, p.13). Essas afirmações, óbvias do ponto de vista histórico, precisam ser reiteradamente apresentadas, pois, apesar de tudo, persiste o hábito de se tomar o cristianismo primitivo, as figuras de Jesus de Paulo (entre outras), bem como as obras do Novo Testamento, como frutos mais ou menos “caídos do céu”, sem qualquer correlação com as forças históricas presentes nos contextos em que surgiram. As palavras de Koester fazem eco às de seu afamado mestre: “meu único objetivo é poder oferecer, especialmente ao estudioso do Novo Testamento, uma introdução condizente com os múltiplos e complexos aspectos dos desenvolvimentos políticos, culturais e religiosos que caracterizaram o mundo em que o cristianismo primitivo floresceu e que moldaram o Novo Testamento e outros escritos cristãos dos primórdios cristãos” (p. XI)

Se é possível considerar uma coincidência editorial como algo significativo, tome-se o caso da também monumental Introdução ao Novo Testamento, de Raymond E. Brown, traduzida em português e publicada pela Paulinas Editora em fins de 2004. Numa obra de mais de mil páginas, o tratamento dado ao contexto político, social, religioso e filosófico do Novo Testamento reduz-se a cerca de cinqüenta páginas (embora questões de teor histórico reapareçam a todo momento na obra); Koester reserva a essa questão “apenas” metade de sua obra... Para ele, o histórico não é apenas um pano-de-fundo impassível à ação de Jesus, ao surgimento do cristianismo e da literatura decorrente da nova religião. Compartilhando o termo de Bultmann, podemos afirmar que o cristianismo foi “fecundado” pelas forças históricas judaicas e helenísticas atuantes no Mediterrâneo oriental.

Haveria outras comparações possíveis entre as duas monumentais Introduções com que o público de fala portuguesa se viu brindado neste último ano; mas, para tanto, necessitaríamos do segundo volume do trabalho de Koester (que consultamos na versão espanhola, que traz os dois volumes num só: Introducción al Nuevo Testamento. Sígueme, Salamanca, 1988). Centramo-nos agora, pois, nesse primeiro volume do trabalho de Koester, esperando que não tarde a publicação, em português, de sua seqüência.

O trabalho sobre o período helenístico publicado por Paulus foi traduzido da segunda edição da obra, publicada em inglês, em 1994, nos Estados Unidos. Ao apresentá-la, Koester afirmava ter revisado todo o texto da primeira edição (surgida inicialmente em alemão, e da qual vem a edição espanhola acima mencionada), num trabalho meticuloso que incluiu a acolhida das diversas críticas especializadas, de estudiosos “que perceberam corretamente que não sou especialista em todos os assuntos aqui abordados”; ele informa, ainda: “acrescentei vários capítulos e atualizei a bibliografia de todas as seções” (p.XI).

Conteúdo

Koester está convencido de que o processo de helenização, primeiramente dos povos do Oriente, e que depois avançou pelo Mediterrâneo Ocidental, teve uma incidência fundamental, talvez maior do que a aceita por outros peritos, na configuração do cristianismo: este “não se desenvolveu como representante de apenas uma cultura e religião local antiga, a de Israel, por exemplo, mas como parte da cultura universal do mundo helenístico-romano... Foi precisamente nas cidades gregas ou helenizadas do Império Romano, e especialmente nas estruturas da classe média urbana, que o potencial do cristianismo incipiente como nova religião universal tomou corpo” (p. XXIII-XXIV). Essa afirmação que, apesar de cuidadosa, poderia ser matizada em um ou outro ponto, justifica que o trabalho comece com um panorama histórico sobre o período helenístico. Esta apresentação se divide nos seguintes itens: “A Grécia e o antigo Mediterrâneo antes de Alexandre”, “Alexandre Magno”, “Os diádocos e a formação de seus impérios” “Os impérios e Estados do mundo helenístico antes da conquista romana”; e “ideologia política e culto ao imperador”. É um apanhado impressionante da história do Mediterrâneo Oriental num período de mais de dois séculos.

O capítulo seguinte trata de dar vida a essa seqüência de nomes, datas e processos políticos. Intitulado “Sociedade e Economia”, trata de temas variados, indo da administração e da economia à construção de cidades e aos sistemas monetário e bancário, passando pela indústria e agricultura. Destaque particular merece a seção “Sociedade”, em que Koester, ao tratar de problemas como a escravidão e a relação riqueza-pobreza, introduz temas que não existiam na edição anterior de seu trabalho: “o status de libertos e libertas”, “posição da mulher” e “casa e família”, que têm repercussão óbvia na configuração das comunidades cristãs, particularmente aquelas de matriz paulina.

No capítulo “Educação, língua e literatura”, o autor nos apresenta abordagens preciosas para se avaliar essas dimensões na experiência histórica subjacente ao Novo Testamento. Particularmente significativo é o item “O Novo Testamento e as línguas semíticas” (p.120-123), em que fica claro para Koester como o Novo Testamento e o cristianismo que lhe é subjacente são devedores em muito pouco do ambiente semita, ou que este se encontra radicalmente helenizado a ponto de só restarem vestígios de semitismos nas obras cristãs dos primeiros tempos, escritas em grego. É, certamente, uma posição questionável.

O capítulo “Filosofia e religião” é precioso. A apresentação é detalhada: “Escolas filosóficas e religião filosófica”; “O espírito da era helenística”; “Desenvolvimento da religião grega”; e “As novas religiões”. Koester nos apresenta um quadro colorido e dinâmico das religiões que se cruzaram de formas tão variadas durante o processo de helenização do Oriente, que haveria de atingir o judaísmo e, depois, o cristianismo. Por nossos olhos passam grupos e correntes vívidas e diversificadas como o epicurismo e o cinismo, o orfismo e o culto a Asclépio, os diversos platonismos e as quase desconhecidas religiões de mistério.

Fiel à sua controvertida postulação de uma radical helenização do Oriente, Koester, no capítulo seguinte, passa a uma abordagem de Israel e do judaísmo do período que vai do exílio da Babilônia (587 a.C.) até a conquista romana (63 a.C.), destacando o período que começa com Alexandre e suas conquistas. Inicia com um panorama histórico, considerando tanto a terra de Israel (anacronicamente chamada Palestina) quanto os judeus da Diáspora. Depois considera a diversidade na religião do período, com pontuações sobre o Templo de Jerusalém, a apocalíptica, os essênios e os manuscritos descobertos nas imediações do Mar Morto (Koester partilha da opinião majoritária segundo a qual esses documentos são de origem essênia), entre outras. A apresentação da literatura produzida no período indica, já no título, a perspectiva do autor: trata-se de expor “a literatura do Israel helenístico”.

O último capítulo trata do Império Romano como herdeiro do helenismo. Com ele se completa o quadro que verá nascer o cristianismo: um Mediterrâneo dominado militarmente por Roma e culturalmente pelos gregos. Numa apresentação paralela à que líamos no primeiro capítulo sobre o mundo conquistado por Alexandre, agora somos remetidos ao universo romano em seus diversos aspectos, a começar pelos da administração e economia. O item “Cultura romana e helenismo” e o seguinte “As religiões no período imperial romano” tratam do delicado e difícil trabalho de salientar as particularidades culturais romanas, distinguindo-as no meio da avassaladora maré helenista. Particular destaque merece o sub-item sobre o gnosticismo, produto do mundo romano (com óbvias matrizes helênicas, entre outras). O capítulo se encerra com a exposição da história da dominação romana sobre Israel, que haveria de levar à destruição de Jerusalém no ano 70 d.C., e com indicações sobre a história do judaísmo no período posterior a essa catástrofe.

Apreciação

Como dissemos inicialmente, seria necessário esperar o segundo volume da obra de Koester para se tentar uma apreciação de conjunto. No entanto, pode-se afirmar que estamos diante de um trabalho grandioso, meticuloso, indispensável. Algumas afirmações, feitas em nome da generalidade e da abrangência, mereceriam algum reparo. Citamos apenas uma: “As novas religiões co origem no Oriente Próximo, freqüentemente trazidas para o Ocidente pelos próprios escravos, não reconheciam diferenças de posição social. O cristianismo era uma dessas religiões” (p.64). Dificilmente se pode encaixar aí a descrição que Paulo faz do perfil da comunidade cristã de Corinto, menos ainda sua intervenção em favor de Onésimo, na carta dirigida a Filemon, senhor deste. E em que termos se entenderia Gl 3,28? Koester parece deixar-se conduzir por uma imagem de Paulo construída a partir dos textos que levam seu nome mas que provavelmente não são seus – e, disso, tem plena consciência.

Mas reparos como esse, que ousamos fazer, não devem esconder nossa ampla admiração, espanto e reconhecimento diante dessa obra-prima. Koester leva a sério a historicidade do cristianismo e conclui, de maneira quase inédita no campo das Introduções ao Novo Testamento, que a abordagem literária dos textos deve ser precedida de um estudo exaustivo do ambiente em que esses escritos surgiram. Assim cabe, nesta conclusão, remeter leitor e leitora ao prefácio da obra, em que, sinteticamente, Koester explicita sua compreensão de “Introdução ao Novo Testamento”: “uma história do cristianismo incipiente em seu contexto contemporâneo, acrescida de uma visão dos acontecimentos políticos, culturais e religiosos dos períodos helenístico e imperial romano”. Assim, cada um dos escritos neotestamentários (e outros sessenta, da literatura apócrifa; a surpresa que nos aguarda no volume 2!) é analisado “no contexto de uma reconstituição do desenvolvimento histórico do cristianismo primitivo”. E, em tempos de fundamentalismos, renovados e legitimados institucionalmente, vale recordar a motivação básica que deu a essa Introdução uma forma absolutamente original: “o estudante do Novo Testamento precisa aprender desde o começo a compreender os escritos dos período inicial no contexto histórico apropriado” (p.XIII).