Escrito por integrantes do clero católico, o livro Catolicismo em São Paulo: 450 anos de presença da Igreja Católica em São Paulo 1554-2004, escrito pelos integrantes do clero católico, não deixa de ser, em muitos pontos, uma abordagem do clero a seu próprio respeito. Em função da metodologia utilizada, a obra abrange os vários aspectos que compõe a história de uma determinada localidade. É, sem dúvida, uma obra histórica de peso: aborda a política, a economia e a cultura paulistanas junto aos aspectos estruturais do Brasil.
Se por um lado ingressa nos preceitos da hierarquia católica romana como motriz de organização da religião (a fim de entender sua repercussão junto à sociedade paulistana), por outro busca, em sua complexidade, compreender o catolicismo sob seus vários aspectos, dimensionando as particularidades da religião sob o território em questão.
A análise abrange a história do período colonial, monárquico e republicano. Seguindo o princípio de abordagem do geral para o particular, acompanha a cronologia dos acontecimentos políticos, estando dividida em três partes: I Parte: Período Colonial (dez capítulos); II Parte: Período Imperial (seis capítulos); e III Parte: Período Republicano (seis capítulos). Seu conteúdo apresenta novos dados, colocados ao lado dos argumentos de autores que se dedicaram anteriormente a desvendar a História da Igreja brasileira. Um trabalho deste porte - capaz de reunir exaustivamente dados elementares ao entendimento da imbricação História do Brasil x História do Catolicismo, bem como sua interação e inserção no desenvolvimento de São Paulo – nunca havia sido produzido.
Das 695 páginas, 250 são dedicadas ao Período Colonial, mais de 150 ao Período Monárquico e 300 ao Período Republicano. Além do texto escrito, constam ilustrações e/ou documentos iconográficos, como mapas das prelazias e paróquias, visitas pastorais relacionadas à expansão dos bairros e regiões que viriam a compor a grande São Paulo; imagens que têm auxiliado na formação do imaginário do homem contemporâneo acerca do passado, ilustrando o cotidiano e os personagens da História do Brasil, de Portugal e de São Paulo; a partir do século XIX destacam-se inúmeras fotos dos prédios construídos pelo clero, como mosteiros, seminários, capelas e igrejas; tais imagens mostram, ainda, o envolvimento de autoridades políticas e grupos populares com essas construções.
Parte do volume se volta a uma prática comum da abordagem católica, as biografias de padres, bispos, arcebispos e cardeais. Material que indica a posição sócio-econômica do clero, linha educacional e ainda a formação, desenvolvimento e extinção das associações, confrarias, irmandades e laicato. Outro ponto que perpassa os acontecimentos políticos e culturais expostos nas biografias são as definições das paróquias, o problema das côngruas e história das capelas e igrejas, que elucidam o crescimento dos bairros da cidade.
É válido ressaltar que a obra apresenta um rico e exaustivo levantamento de fontes e documentos trazidos não só de arquivos paulistas, mas de outros lugares do Brasil e mesmo do Exterior. Este é, sem dúvida, um ponto relevante do trabalho. É uma importante fonte de consulta para historiadores e pesquisadores de áreas afins - seu formato, mesmo, reforça o aspecto documental: por ser um volume pesado, exige local apropriado para leitura ou consulta.
A presença de documentos, boa parte dos quais transcritos na íntegra, junto ao apanhado biográfico e bibliográfico, permite ao leitor percorrer várias faces do catolicismo; mostra, ainda, aspectos profundos da atuação da hierarquia católica em São Paulo e no Brasil.
A obra ajuda a compreender a participação do clero - estrutura de pensamento, organização educacional e a ação político-econômica - junto aos setores sociais que se constituíram desde a colônia. Pode-se entender de que forma o processo colonizador tornou o catolicismo um elemento intrínseco à cultura brasileira. Os textos se distanciam do discurso apologético, indicando uma religião que provoca tensões e que está sujeita a crises internas, posto que se insere no processo histórico. A discussão permite entender a formação dos diferentes grupos sociais que emergem no espaço urbano paulistano; seu ápice encontra-se na III Parte - Período Republicano, A Igreja de São Paulo antes, durante e depois do regime militar (1964-1985) -, principalmente na vibrante narrativa do cardinalato de Dom Paulo Evaristo Arns, entre os anos de 1970 e 1998.
Orientada pelo aspecto político, a obra é iniciada com a apresentação dos tratados entre Portugal e Roma efetivados a partir do século XII. Traz as bulas papais que concediam aos portugueses o direito de construir igrejas e nomear um clero católico para atuar nas colônias, encargos que, em princípio, recaíram sobre a Ordem de Cristo, os Jesuítas. Todo o clero destinado às missões foi encarregado de manter a fé dos lusitanos e evangelizar os indígenas. O projeto colonial português estava ligado ao projeto religioso.
A análise histórica do catolicismo em São Paulo começa no segundo capítulo, Primórdios do Catolicismo em São Paulo, com um olhar sobre o reconhecimento do povoado (25 de janeiro de 1554) onde foi fundado um pequeno colégio jesuíta dedicado à catequese dos indígenas. Nessa época, o povoado contava com aproximadamente 150 habitantes. Os anos que sucederam à fundação foram turbulentos, os interesses dos colonos chocavam-se com os interesses do clero, sobretudo no que se refere à competência dos jesuítas para o trato com os indígenas. Conflito que, mais tarde, viria a gerar a expulsão dos clérigos do local. Os monges beneditinos também marcaram a sua presença entre os anos de 1598 e 1792. As instalações da Ordem de São Bento, nas fazendas em torno do povoado central, serviram de fomento a outros pequenos povoados que, aos poucos, foram se interligando. Os beneditinos também intermediavam as relações entre a população e o clero diante dos conflitos que envolviam jesuítas e párocos. Burocraticamente, a vila de São Paulo subordinava-se à prelazia do Rio de Janeiro. Burocracia que, atrelada às tensões entre os colonos e os índios, denotava a luta pelo domínio do território e a dedicação à atividade agrária como forma de subsistência, esvaziando os interesses religiosos da população, sobretudo no que se refere à necessidade de um pároco junto à vila.
No capítulo 3 e 4 são vistas as dificuldades de atuação do clero mediante o conflito político entre Portugal e Espanha, momento em que os tratados e as bulas portuguesas pouco se fizeram cumprir. Nesse período cresceu o número de padres no Brasil formados na Bolívia, onde aprendiam as línguas indígenas; esses padres deveriam substituir os jesuítas que atuavam diretamente junto às aldeias - onde também instalavam suas fazendas – e que se constituíam em problema na visão dos camaristas que defendiam os interesses dos capitães caçadores de índios.
Os capítulos 5, 6, 7 e 8 elucidam a transição e desenvolvimento de uma nova etapa do catolicismo em São Paulo. Transição do catolicismo monitorado pelos jesuítas para um catolicismo monitorado pelos bispos, que evidencia mudanças burocráticas da hierarquia romana e portuguesa sobre a colônia. A criação de uma diocese em São Paulo retirou o clero paulista da condição de prelazia do Rio de Janeiro. Esses capítulos abordam, respectivamente, a atuação dos quatro bispos, integrantes da corte portuguesa, que assumiram o episcopado de São Paulo na segunda metade do século XVIII e primeiras décadas do século XIX.
Os capítulos 9 e 10 abordam documentos cuja análise é imprescindível para o trabalho histórico: discorrem sobro o livro tombo, visitas pastorais e batismos. O capítulo 10 passa pelas igrejas e capelas do século XVIII e, embora tenha poucas páginas, produz uma significativa abordagem sobre a participação de negros e mestiços para a manutenção do catolicismo popular.
Na II Parte, Período Imperial, a obra é dividida em seis capítulos. Passa pelos aspectos gerais que constituem o período monárquico, destacando a ascensão das correntes filosóficas assumidas pelo magistério, o desenvolvimento das idéias liberais e revolucionárias, assim como o pensamento conservador. Caracteriza a elevação do catolicismo à condição de religião oficial do Império na primeira Constituição brasileira, de 1824, e segue até a separação Igreja-Estado com a proclamação da República em 1889 (e expressa na Constituição de 1891). A discussão situa os partidarismos e dissidências internas do clero no Brasil, apontando a postura assumida pelos quatro bispos atuantes na Província de São Paulo durante o Período Imperial: a atuação concomitante com os interesses internos da administração monárquica, ligada ao liberalismo na primeira metade do século e ao conservadorismo na segunda.
Seguindo a lógica assumida pelo organizador da obra, parte do texto se refere aos acontecimentos desencadeados na Europa que repercutiram sobre o catolicismo como um todo, conjuntamente ao papado de Gregório XVI, Pio IX e Leão XIII. Outro ponto abordado é a imigração italiana. Na visão do autor, a presença dos italianos teria sido fundamental para a aproximação entre o clero católico brasileiro e o clero romano, influência que minimizou o catolicismo luso-brasileiro, mormente na segunda metade do século XIX, e que envolve tanto a presença de fiéis italianos voltados aos mandamentos romanos como a presença de párocos italianos nas paróquias.
Os seis capítulos que compõem a III Parte, O Período Republicano, são imprescindíveis para qualquer estudante da História recente do Brasil. É um conjunto de pesquisa sobre a História da democracia moderno-contemporânea, sobre a instauração de um estado laico e sobre o posicionamento e administração do clero mediante a separação Igreja-Estado. Narra os rumos da religiosidade católica face ao quadro de violência instaurado na cidade marginalmente às práticas liberais do capitalismo industrial. Desenvolve o conceito de solidariedade social, apresentando a postura do clero sob uma sociedade configurada pelo desequilíbrio material e cultural. É um capítulo sobre a persistência e testemunho de fé de dom Paulo Evaristo Arns diante das atrocidades cometidas contra o ser humano no período militar – narra os dramas enfrentados pelas famílias fragmentadas por assassinatos cometidos pelo poder instituído. As fotos apresentadas “falam por si”: além do clero e dos prédios por ele construídos, mostra a face dos grupos populares, apoiados no catolicismo, presentes na São Paulo do século XX.
Trata-se de uma discussão que permeia a transição das diretrizes apostólicas sistematizadas, por um lado, pela Teologia da Libertação e, por outro, pelo II Concílio Vaticano; diretrizes voltadas aos problemas sociais impostos ao Homem na modernidade que implicaram em uma orientação apostólica que desencadeou a intensa participação do clero católico junto aos grupos populares nos acontecimentos políticos, culturais e econômicos. Aborda, também, a atuação do catolicismo junto às esferas de poder estadual e federal instauradas no século XX.
Os capítulos da III Parte, com exceção do sexto, expõem os acontecimentos percorrendo as atividades de bispos e cardeais. Os capítulos 1, 2, e 3 mostram a face de um clero que se adapta a fim de atender as demandas da modernidade. O Capítulo 4 é, provavelmente, a mais relevante exposição da III Parte. Em 124 páginas, adentra a efervescência política, econômica, social e cultural do Brasil. Tendo São Paulo como cenário dos novos acontecimentos, apresenta o papel dos primeiros cardeais mediante a implantação de novas burocracias para a atividade evangelizadora. Elucida o surgimento das atividades relacionadas à criação de órgãos como a CNBB, a PUC-SP e a formação das juventudes católicas. A junção dos ideais da Teologia da Libertação e do II Concílio Vaticano, ambos propalados na década de 60, encontraram êxito e concórdia no Brasil nas décadas de 70 e 80, durante o cardinalato de Dom Paulo Evaristo Arns. Seu envolvimento com as juventudes católicas e os demais órgãos vinculados à ação social, sua postura durante o governo militar e a reforma burocrática na arquidiocese fez dele um ícone para a História de São Paulo e para a História do Catolicismo do século XX.
Tendo assumido a arquidiocese católica mais populosa do mundo, foi um exemplo de conduta ética diante do clima político de intensa repressão e censura à participação democrática em partidos, sindicatos, na vida eclesial e na imprensa. Sua passagem pela França, somada às orientações de Paulo VI, fez com que experimentasse, em São Paulo, o mesmo que havia sido implantado em Paris: a criação de dioceses interdependentes, capazes de comportar outros bispos com áreas específicas de atuação. A criação de dioceses interdependentes foi a solução pastoral encontrada pela hierarquia romana para resolver os problemas das grandes capitais. Nessa parte, além de todos os pontos sobre a divisão da arquidiocese em dioceses interligadas, a obra apresenta quadros demonstrativos das paróquias e dioceses, dados sobre a censura na imprensa e a história dos planos das pastorais aplicadas. Dentre o trabalho pastoral, é válido ressaltar a participação da Igreja na Comissão de Justiça e Paz. Em 1980 é criado o Centro Santo Dias de Direitos Humanos, numa proposta de ação evangelizadora. Seu objetivo era assessorar os diversos centros de defesa dos direitos humanos existentes nas regiões episcopais e motivar novos centros, caso do Centro Oscar Romero, criado na Região Episcopal do Ipiranga.
O crescimento das favelas em São Paulo deu origem à Pastoral da Moradia e, logo depois, à Pastoral da Criança. A Pastoral e o auxílio fornecido as famílias que sofreram agressões do governo militar renderam ao arcebispo dom Paulo Evaristo Arns o prêmio da Paz da Fundação Niwano, de Tóquio. A década de 80 exigiu, também, um maior envolvimento da Igreja nos meios de comunicação de massa; para isso foi criado o Vicariato Episcopal da Comunicação. Tendo sido arcebispo de São Paulo por 28 anos, D. Paulo foi substituído por dom Cláudio Hummes.
A maior parte do capítulo 5 apresenta as propostas e metas desenvolvidas pelo clero (conforme a experiência vivenciada no século XX,) para o novo milênio. O capítulo 6, seguindo a lógica adotada nas Partes I e II, fecha a obra apresentando a história das Igrejas e capelas, expoentes do catolicismo.
[*] Graduada e mestre em História pela Universidade Estadual Paulista UNESP, campus de Franca. É doutoranda em Ciências da Religião (PUC-SP) sob a orientação do professor Fernando Torres Londono, com o projeto intitulado Seminário Episcopal Paulistas e o paradigma conservador dos intelectuais paulistas 1856-1906; bolsista da Capes.