PRANDI, Reginaldo
Segredos guardados. Orixás na alma brasileira, São Paulo: Companhia das Letras, 2005, 328 p., ISBN 85-359-0627-4

por Ênio José da Costa Brito [] e
Brígida Malandrino

Soa-nos estranho o nome dado ao novo livro de Reginaldo Prandi: Segredos Guardados. Melhor seria “Segredos Desvelados”, já que o autor, com grande maestria, traz à tona segredos muitas vezes inconfessos das religiões afro-brasileiras. Apenas para citar um fato: a presença dos Exus na Quimbanda, fato negado pela maioria dos terreiros de Umbanda. Ao desvelar esses segredos, o que fica claro no texto é a necessidade de mudança. A mudança porque passam as religiões afro-brasileiras, religiões que se modificam, religiões que precisam se transformar para sobreviver, fato explicitado já na introdução. Mudanças que respondem às novas demandas do mercado religioso, que cada vez mais apresenta novas ofertas de bens simbólicos.

O autor divide o livro em duas grandes partes. Na primeira, constrói-se um caminho linear e ao mesmo tempo circular. Linear, porque avança por tópicos como a noção de tempo e de espaço, o sacerdócio, a questão da morte, os exus e as pombas-gira, os orixás e os candomblés de caboclo, o que poderíamos chamar de aspectos estruturais das religiões afro-brasileiras e, em especial, do candomblé. Circular, pois trabalha cada um dos temas de maneira dialética: da África para o Brasil, do Brasil para a África. Aborda as concepções e origens africanas das religiões que aqui chegaram, o processo de modificação e de ressignificação sofrido no Brasil, a forma como se posicionam atualmente as religiões afro-brasileiras frente ao contexto da pós-modernidade: o imediatismo, a religião centrada no indivíduo, a pouca fidelidade do adepto, a mercantilização do sagrado e, por fim, aponta a recuperação de aspectos que pareciam estar perdidos, com um retorno às origens africanas. É nesse movimento que esses segredos estruturais vão sendo descortinados.

Uma afirmação do autor nesta primeira parte tem suscitado polêmica: “não há mais babalaôs no Brasil, mas os pais e mães-de-santo operam a antigas técnicas oraculares” (p.41). No entanto, nos anos de 1990, o culto a Ifá foi reintroduzido no país, e hoje babalaôs iniciados na Nigéria, no Benin e em Cuba têm sido os responsáveis pela revitalização da religiosidade afro-brasileira.

Na segunda parte do livro, o autor apresenta os aspectos dinâmicos das religiões afro-brasileiras dando, neste momento, uma ênfase maior para a umbanda. Nesse percurso, apresenta a forma como os aspectos dessas religiões difundiram-se na cultura brasileira, estando presentes de tal forma, que em certos momentos essas características já se tornaram constituintes da cultura brasileira. Para isso, ele observa a música, não só apontando a visão africana da música, como também mostrando como as religiões afro-brasileiras, com seus deuses, são cantadas no Brasil, o que confirma a hipótese colocada acima. Por fim, trabalha os dados do IBGE e as razões do decréscimo das religiões afro-brasileiras, em especial a umbanda, que constantemente perde adeptos - diferentemente do que ocorre no candomblé.

O autor desmistifica qualquer possibilidade “purista”. Para ele, não há qualquer possibilidade de um retorno fiel às origens. Ele observa, talvez de forma crítica, que há uma necessidade, que se encontra para além da religião propriamente dita, que é a própria sobrevivência das religiões afro-brasileiras dentre tantas outras religiões. Por isso, as concepções, até mesmo as mais básicas, de tempo e de espaço; os rituais, os mais fundamentais, como os rituais fúnebres; e os mitos, como os orixás, são mudados com vistas à adaptação ao mercado religioso. Mesmo aspectos que são resgatados, como Exu e o orixá Onilé, a dona da terra, são resgatados dentro de um novo tempo e um novo espaço. Podemos dizer que o movimento que ocorre nas religiões afro-brasileiras é um movimento em espiral, já que certos aspectos são redimensionados e revitalizados de tempos em tempos.

Ao realizar esta ampla arqueologia da história dos cultos de matriz africana no Brasil, Prandi ressalta a importância de se resgatar a tradição, ”pois em algum lugar ainda existem, conforme se crê, muitos segredos guardados” (p.248). Mergulha-se na tradição na tentativa de revigorá-la e questioná-la. Segredos Guardados condensa e partilha generosamente com os leitores preciosas reflexões, frutos de incansáveis estudos realizados ao longo dos últimos anos.

Importantes publicações sobre as religiões afro-brasileiras pelo seu hermetismo acabam circunscritas a iniciados e estudiosos. Esta constatação não se aplica a obra de Prandi, acessível não só a iniciados, mas, também, a leigos interessados no tema. A clareza e a riqueza de informações, aliadas a um denso conteúdo, explicam a calorosa recepção da obra. Ler o seu destino não é difícil: em pouco tempo há de se tornar um clássico no campo dos estudos sobre as religiões afro-brasileiras.

O livro brinda-nos, ainda, com um rico caderno iconográfico com fotos de orixás em diversas casas de candomblé de São Paulo e com um levantamento de músicas populares que fazem referência às religiões afro-brasileiras de 1902 a 2000 – um material muito interessante para pesquisadores. Ao fazer isso, a leitura do livro nos presenteia com os segredos pouco conhecidos das religiões afro-brasileiras e, porque não dizer, até então, guardados.