Como conseqüência de um interesse pelo diálogo inter-religioso, pela busca de uma experiência religiosa comum a diversas tradições ou mesmo pela importância da experiência religiosa e das suas relações com a Teologia, o estudo da Mística vem ganhando espaço dentro das universidades brasileiras e se consolidando como uma área de pesquisa dentro das Ciências da Religião. Fruto de um seminário sobre Mística realizado na Universidade Federal de Juiz de Fora em 2001, a coletânea "No Limiar do Mistério: Mística e Religião" reúne importantes contribuições de pesquisadores brasileiros e introduz a análise de místicos pouco conhecidos na bibliografia nacional.
Abrindo a coletânea, Faustino Teixeira defende a possibilidade de um diálogo inter-religioso a partir da Mística, no que se refere às religiões monoteístas abraâmicas. Teixeira não pressupõe uma identidade entre as religiões (p. 14), mas defende que as experiências místicas apresentariam um grau de proximidade que leva ao diálogo e a um núcleo comum. Esse núcleo é encontrado no aprofundamento e na interiorização da mensagem divina (p. 26). Seguindo uma linha semelhante, Maria C. L. Bingemer parte da definição de mística como cognitio Dei experimentalis (conhecimento de Deus pela experiência). A partir de uma argumentação centrada em místicos ibéricos, a tese central do artigo de Birgemer é a de que "muitos místicos cristãos ilustres são devedores - e não apenas inspiradores - de outras correntes místicas enraizadas em diferentes tradições religiosas e surgidas em diferentes ambientes culturais" (p. 38).
Para demonstrar sua tese, Bingemer mostra, em consonância com pesquisas biográficas e históricas, que Teresa de Ávila e João da Cruz apresentam imagens e símbolos presentes no Judaísmo e especialmente no Islamismo. Isso é visível no que se refere à simbologia do castelo e das "moradas" - caso de Teresa de Ávila -, e na influência sufi na "noite escura", de João da Cruz. No caso de Inácio de Loyola e dos jesuítas, outra corrente religiosa analisada por Bingemer, uma tendência de inculturação presente nas missões jesuítas na América e na Ásia propiciou um ecumenismo e a incorporação de elementos de outras religiões. Em seu outro artigo nesse livro, na seqüência, Bingemer volta-se para três místicas criadas em contato com o Judaísmo (Simone Weil, Edith Stein e Etty Hilesum), refletindo sobre as relações entre gênero, a situação-limite do nazismo e a experiência de Deus. Aqui também entrelaçam-se diferentes religiões nas histórias pessoais descritas, sendo a chave de análise a conversão religiosa dentro de um ambiente violento, descrita através da escrita e experimentada através da mística.
Em seus dois artigos, partindo de um referencial mais próximo da Filosofia e da problemática epistemológica de um discurso do "radicalmente Outro", Luiz Felipe Pondé trabalha com a condição de que, para se estudar a Mística, é preciso aceitar o pressuposto religioso de que o ser humano é um "animal de transcendência" (p. 139). Isso implica que os estudos contemporâneos baseados na Psicologia ou Sociologia não só não alcançam o âmago da experiência mística, como freqüentemente distorcem seu objetivo (p.138, 181ff). Partindo desse quadro de referência, Pondé analisa, em um primeiro artigo, a Mística Ontológica do Esvaziamento e da Nadificação de Meister Eckhart. A análise é feita a partir de três textos de Eckhart bastante discutidos na literatura internacional: o sermão Beati pauperes spiritu, e os tratados Von Abgescheidenheit ("Do Despreendimento") e Von dem edeln Menschen ("Do Homem Nobre").
Em seu segundo artigo, Pondé busca mostrar a Mística como uma metanóia em direção ao sobrenatural e apresentar argumentos para a crítica de uma interpretação naturalista da experiência mística a partir da própria religião. Esses pontos são buscados a partir da Mística cristã ortodoxa, especialmente a controvérsia hesicasta entre São Gregório de Palamas e Barlaam no século XIV acerca da possibilidade do conhecimento e vivência direta de Deus. Associando Barlaam a um reducionismo naturalista da religião, Pondé busca mostrar que a Mística ortodoxa, com São Gregório de Palamas, escapou da dicotomia helenista entre matéria e espírito, adotando uma oposição hebraica mais profunda entre criação/natureza (que englobam matéria e espírito) e o incriado/sobrenatural.
No artigo seguinte, Luís Henrique Dreher parte da hipótese de que "existe uma mística protestante no sentido de uma experiência de suma união da interioridade crente com o divino" (p. 205-206). Ainda que Lutero seja um personagem pouco associado à Mística, Dreher interpreta em seu pensamento algo semelhante à Mística antiespeculativa e antifilosófica de Bernardo de Claraval (p. 210). Em Jacob Boehme (1575-1624), a Mística especulativa protestante atinge o seu ápice - uma visão diferente surge a partir do final do século XVII. Nessa, época o pietismo ganha destaque com uma Mística orientada para as comunidades eclesiais e para a "busca da palavra interna mediante a palavra externa da Bíblia". A unidade com Deus fica reservada para o depois da morte e preserva-se, na tradição protestante, uma personalidade e subjetividade diferenciadas, mesmo nesse estado. Uma tendência antiintelectualista e a valorização do conceito de piedade fazem com que exista um claro contraste entre a Mística protestante e os temas centrais dentro de um misticismo de orientação mais panteísta. Isso traz mais elementos à distinção entre Mystik (em síntese com a religião e teologia cristãs) e Mystizismus (associado ao panteísmo acósmico), que Dreher já indica no início de seu trabalho.
Os artigos restantes da coletânea tratam prioritariamente de religiões não-cristãs. Davy Bogomoletz dá uma introdução bem humorada ao Misticismo judaico, usando para isso fontes secundárias e um viés mais próximo da Psicologia. Mônica Cromberg mostra o árabe como a língua sagrada do Islamismo e, também, como aspectos lingüísticos influenciam determinantemente na maneira de se relacionar com o mundo. Dado que as palavras no árabe são derivadas de verbos, o mundo é visto como sendo constituído de ação, em uma transformação contínua. Além disso, outras características lingüísticas do árabe propiciam uma visão das coisas associadas à vida e inovação, evitando clichês e servindo como ponte para o acesso ao sagrado e para o resgate do valor mítico e ritual através da linguagem.
Na seqüência da coletânea há um bloco de quatro artigos dedicados ao Sufismo. Marcado por seu interesse no diálogo inter-religioso a partir da Mística, Faustino Teixeira abre esse bloco com seu estudo sobre o mestre sufi Rûmi. Em Rûmi, a Mística é expressão de um trajeto para a unidade, simbolizado no encontro do Amado. Esse encontro não pode ocorrer senão "renunciando à própria vida" (p. 304), através da "purificação de todos os atributos do eu". Como conseqüência dessa abertura para o amor ao Outro e para a unidade, a Mística de Rûmi é caracterizada por sua abertura ao diálogo.
Também trabalhando com o místico Rûmi, Marco Lucchesi analisa a Mística de uma forma mais literária, concentrando-se nos seus aspectos poéticos e nas metáforas e estética da linguagem religiosa. No artigo seguinte sobre o Sufismo, Vitória Peres de Oliveira discorre sobre a presença da mulher e do Feminismo na Mística sufi, através da figura de Rabi'a al-'Adawiyya. Dentro do Islamismo, conforme Oliveira, existe a dupla concepção do ser humano como servo de Deus e como califa (representante e substituto de Deus na Terra). Essa relação, que simboliza a contraposição do Deus distante/transcendente com o Deus próximo/semelhante, é, ao mesmo tempo, uma expressão da tensão entre o Islã e o Sufismo e a dicotomia entre qualidades masculinas e femininas. Devido a essa correlação com o feminino, "o portão do caminho da mística sempre esteve aberto para as mulheres no islã", conforme defende a autora. Seu estudo se concentra, então, na mestra sufi Rabi'a, uma das grandes místicas do Islã que é exemplo de que mulheres conseguiram atingir experiências místicas das mais profundas no Islamismo.
No artigo seguinte, Pablo Beneito Arias aborda o místico sufi Ibn’ Arabi e expõe a sua teoria do conhecimento inspirado. Aqui o conceito principal estudo é isâra, que corresponde à "apreensão ou à expressão inspirada de uma experiência relacionada com alguma das realidades espirituais". Esse tema, conforme mostra Arias, é fundamental para apreender as relações entre esoterismo e exoterismo no Islã.
No penúltimo artigo da coletânea, Monja Coen apresenta um rápido panorama da Mística zen-budista, definida ao final como "o encontro com o sagrado em nós e em cada ser que encontramos". Reagindo aos atentados terroristas de 11 de setembro, a monja Coen busca mostrar a atitude de monges budistas contemporâneos, como Thich Nhat Hahn e o Dalai Lama, que em sua busca pela paz inspiram a prática religiosa budista.
No último artigo do livro, Silvia Schwartz retoma a problemática epistemológica, descrevendo o importante debate entre os contextualistas, que defendem que mesmo na Mística as experiências são lingüística e culturalmente mediadas, e os defensores da possibilidade de uma experiência religiosa consciente mas sem conteúdo, denominada ECP (Evento de Consciência Pura). É essa a última postura que Schwartz adota, a partir de Robert Forman: "o que ela [a Mística] oferece, ao final, não é uma verdade lingüística, mas um caminho para descascar as camadas de ilusão e de auto-ilusão, e permitir que a presença interna não-lingüística reflexivamente se revele a si mesma: a consciência mostrando-se à consciência" (p. 436).
Para uma análise mais crítica da coletânea, vale a pena considerar duas características que definem a orientação epistemológica e o eixo temático presente nas contribuições. No que se refere à orientação teórica, muitos artigos assumem uma Epistemologia religiosa derivada da linha inaugurada por Rudolf Otto, freqüentemente assumindo uma experiência interiorizada comum em diversas religiões. Nesse sentido, a coletânea carece de uma maior representatividade de outras correntes epistemológicas dos estudos internacionais atuais, faltando não só análises de um tipo mais contextualista e direcionado ao aspecto lingüístico e cultural da experiência mística, mas, mesmo, novas abordagens de um núcleo empírico comum dos estados místicos. Refiro-me aqui aos importantes estudos das Neurociências, especialmente as conseqüências da abordagem de D'Aquilli e Newberg, que partem da base neurológica comum a todos os seres humanos e como experimentos empíricos buscam descrever neurologicamente os estados místicos.
No que diz respeito ao eixo temático, uma deficiência da coletânea é que praticamente todos os artigos concentram-se em religiões monoteístas, excetuando-se a contribuição da Monja Coen. Em alguns autores, mesmo o conceito de Mística é entendido com uma referência explícita à experiência cristã européia. Seria necessário que mais autores brasileiros se dedicassem às vastas e complexas tradições místicas de religiões como o Hinduísmo e o Budismo para que uma visão mais ampla do campo de estudo da mística fosse atingida. Adicionalmente, uma pergunta importante é sobre a existência e as particularidades de uma Mística brasileira. Não se pode restringir os estudos da Mística aos religiosos mais tradicionalmente estudados, principalmente se considerarmos personagens históricos como Antônio Conselheiro e religiões como o Candomblé e o Santo Daime, com sua visão religiosa do transe e êxtase. Nesse livro, essa ausência de reflexão é comprovada, posto que, em nenhum ponto da obra, essa questão é levantada. Pensando em termos de estudos da Mística, os intelectuais brasileiros devem encarar esses temas, o que pressupõe um enfrentamento mais direto de teorias críticas sociológicas e psicanalíticas. Ao contrário da Mística européia e do Sufismo, tem-se, aqui, um campo empírico bastante próximo tanto geograficamente quanto historicamente.
De qualquer forma, a coletânea representa, inegavelmente, um grande avanço para os estudos da Mística no Brasil. Ainda que o livro pudesse apresentar um panorama maior de abordagens epistemológicas e de religiões analisadas, incluindo um aspecto mais crítico, os artigos apresentados são certamente um importante ponto de partida para a problematização da abordagem do tema, estimulando e incentivando novos debates e pesquisas.