UTSCH, Michael
Religionspsychologie. Voraussetzungen, Grundlagen, Forsschungsüberblick. Stuttgart, Berlin, Köln, Kohlhammer Verlag, 1998, 304 S.
[Psicologia da Religião: pressupostos, fundamentos e visão geral da pesquisa]

por Edênio Valle []
(PUC-São Paulo)

Com esta recensão quero introduzir o público brasileiro no conhecimento de um dos nomes mais destacados da moderna Psicologia da Religião na Alemanha. Sempre chamou minha atenção o silêncio que envolve, no Brasil, a Psicologia alemã em geral e, muito especialmente, a que estuda o fenômeno religioso. Costumo dizer a meus alunos que é como se, meio de repente, os psicólogos daquele país tivessem parado de pensar e escrever. É pena, pois os alemães não pararam nem de pensar, nem de escrever, como se pode ver na edição brasileira da introdução à Psicologia da Religião de H.J. Fraas, traduzida ao português pela Sinodal, ou do livro de J. Sudbrack, editado recentemente pela Loyola. Não se pode dizer que a Alemanha seja hoje a ponta de lança da pesquisa neste campo, mas sem dúvida os alemães continuam ocupando lugar de relevo na produção mundial; além disso, a dedicação a este ramo do estudo psicológico tem experimentado notável incremento nos últimos anos, retomando a reflexão teórica – setor no qual os alemães sempre primaram – e a pesquisa séria, original e bem informada sobre os mais variados temas da Psicologia da Religião. Michael Utsch se destaca no grupo seleto que se consagra a este tema tão complexo.

Utsch é psicólogo clínico. Trabalhou durante os primeiros anos de atividade como psicoterapeuta. No início inspirou-se fortemente em Viktor Frankl. Sua tese de Diplompsychologie, em 1987, versou sobre o psicanalista austríaco. Desde aquela época tem se preocupado com o estudo da religiosidade humana. Entre outros autores que parecem ter influído sobre seu trabalho acham-se H. Thomae, seu professor em Bonn, e James Fowler, estudioso americano que tem um livro publicado pela Editora Sinodal, de São Leopoldo (RS). Preocupou-se ainda com a gerontologia e com a análise existencial em geral (L. Binswanger, A. van Kaam).

Ao passar a trabalhar em Berlim como profissional de referência em Psicoterapia, na agência central evangélica, ele parece ter encontrado mais tempo para sistematizar suas idéias e ampliar ainda mais o raio de suas leituras sobre a Psicologia Científica da Religião. O resultado deste esforço é o livro aqui recenseado, volume denso, com citações de mais de 340 autores alemães, americanos e europeus. Sem dúvida uma obra de peso, marcada pela originalidade da abordagem e pelo vigor da análise bem fundamentada.

Para o leitor brasileiro ela é duplamente interessante: pela sua abrangência e erudição e por mostrar como se faz, hoje, Psicologia da Religião na Alemanha. Penso que, juntamente com B. Grom e H.J. Fraas, Utsch seja um legítimo representante da nova geração alemã de psicólogos da religião que, conhecendo de perto também a produção científica de língua inglesa, deixam para traz os clássicos como F. Heiler, K. Girgensohn, W. Koepp, W. Gruehn e tantos outros.

O volume de 304 páginas tenta seguir o esquema indicado no subtítulo do livro: vai aos pressupostos teóricos e metodológicos da Psicologia da Religião, investiga seus fundamentos teóricos e metodológicos e indica perspectivas que se abrem e problemas que se impõem para o futuro.

A obra está dividida em 3 grandes partes principais, precedidas por uma introdução na qual o autor discute as dificuldades que se levantam ao estudo científico do fenômeno psico-religioso. Não nega a conflitividade entre as duas aproximações (a que vem da psicologia e a que, de alguma forma, é devedora da teologia). Constata e nomeia aspectos do déficit explícito que julga existir na pesquisa e postula a necessidade de uma fundamentação científico-teórica mais consistente e mais à altura das discussões epistemológicas de hoje. O ponto de vista explicitado pelo psicólogo pode ser resumido na frase seguinte: "a religiosidade da pessoa assume como convicção de base e visão de mundo um lugar importante na formação da identidade de cada indivíduo" (p. 39). Reconhecendo a natureza parcialmente inconsciente da auto-compreensão religiosa ele concede a dificuldade e mesmo a impossibilidade de um tratamento "objetivo" da Psicologia da Religião. Por esta razão, seguindo uma linha de pesquisa que vem de Halbfass e Wohlrab-Sahr, dá importância à mútua influência existente entre história de vida e história da crença, entre biografia e religiosidade.

Com isto ele se propõe distanciar propositadamente de duas premissas freqüentes, embora nem sempre evidentes, na história da Psicologia da Religião. Uma é a de tratar apologeticamente a dimensão psicológica do religioso, disfarçando interesses e moventes quase sempre orientados para o objetivo de defender e afirmar pontos de vista da religião cristã, freqüentemente "espremida contra a parede" pela crítica científica. Outra, situada no extremo oposto, é a de não se deixar colher por uma antipatia de base contra a religião. Utsch pergunta se o psicólogo da religião precisa ser, ou não, pessoalmente crente. Responde dizendo que ambas as posições têm vantagens e desvantagens. Ele, que se confessa crente, se propõe evitar os perigos de ambas as posições. Defende, assim, a possibilidade e a necessidade de se construir uma "psicologia dialógica da religião que parta de um modelo capaz de estabelecer uma ligação entre a visão científica e a mundivisão, para trabalhar separadamente, mas com reciprocidade, os dois pólos de uma só e única realidade" (p. 41). Mesmo confessando toda a dificuldade de um tal projeto, é isto o que ele se propõe em seu livro, articulando sua densa reflexão em três grandes passos: a antropologia, a teoria científica e a pesquisa.

Na parte 1 do livro (pp. 42-114), Utsch, pretende esboçar qual seu horizonte filosófico-antropológico para a Psicologia da Religião, contrapondo-o ao que as teorias psicológicas costumam assumir como sua cosmovisão de base. As reflexões tomam colorido filosófico, mas no centro está a questão da subjetividade, que é, para ele, o eixo em torno ao qual deve girar a Psicologia da Religião. São explicitadas as opiniões do autor com respeito a algumas noções-chave em geral tratadas de maneira superficial por psicólogos, como: religião, religiosidade, espiritualidade, mística, fé, sagrado, etc. Utsch privilegia a noção de espiritualidade.

A segunda parte (pp. 115-231) é dedicada aos aspectos teóricos e científicos da Psicologia da Religião. De novo, dentro de uma característica típica do pensamento psicológico alemão, a discussão assume contorno filosófico. É nesta parte que Utsch apresenta sua sistematização teórica interdisciplinar da Psicologia da Religião, explicando-a em chave temática e metodológica. A teologia é também chamada em causa, mas a predominância da argumentação cabe à epistemologia psicológica. Tematicamente, sua preocupação vai na direção de uma explicitação mais adequada de três conceitos: o de experiência, o de consciência e o de representação ("Einstellung").

Na terceira parte (pp. 232-270) Utsch se dá a um minucioso trabalho comparativo entre as principais teorias hoje existentes na Psicologia da Religião. Traça um interessante quadro sinótico geral, com o objetivo de esclarecer certos aspectos "antropológicos" e "teóricos" investigados nos capítulos anteriores. É de opinião que cada teoria só pode perceber um determinado aspecto do fenômeno religioso tomado em seu conjunto. Aproximar estas várias perspectivas ajuda a se ter um idéia dos limites e possibilidades de cada aproximação. Torna-se, assim, mais fácil para o psicólogo chegar a uma visão global, do que integra as distintas aproximações, mas também dos vazios e contraposições. Esta parte do trabalho talvez seja a mais questionável, pois parece quase impossível, por exemplo, aproximar de fato as quatro fases históricas que Utsch enuncia como sendo características da evolução experimentada pela Psicologia da Religião em seus cento e poucos anos de existência como ciência (p. 245): a orientada por uma visão proveniente das ciências naturais (Starbuck, W.James, St.Hall); a mais filosófica e fenomenológica de A.Spranger, W.Trillhaas e Ch.Bühler; a introspecionista-experimental de B.Stählinm K.Girgensonh e W.Gruehn e a calcada na psicologia de profundidade (Sharfenberg, H. Müller-Pozzi e H-G. Heimbrock). Mas, mesmo assim, os quadros sinóticos que ele desenha com grande habilidade permitem ver com mais clareza os seguintes pontos típicos de cada teoria, modelo ou escola: os conceitos centrais; o objeto e os objetivos; o modelo de integração usado; a concepção antropológica de fundo; os resultados; os limites e a crítica. Partindo destes pontos, são descritas mais que analisadas as seguintes escolas ou teorias: a de Clark com seu pragmatismo; a escola de Dorpat; a de Wobbermin baseada na teologia transcendental; a calcada na escola da história das religiões; a da psicologia compreensiva; a antropológica-existencial; a da psicologia de profundidade; a orientação extrínseca-intrínseca postulada por G. Allport; a psicologia social; a psicologia do "coping"; a teoria dos papéis; a teoria da atribuição; a teoria do desenvolvimento da fé; a do julgamento religioso de Oser e Gmünder; a orientada para o estudo da motivação; a da saúde psíquica ("spiritual well-being"); a psicologia transpessoal; a teoria do vínculo. Do elenco acima se vê que o arco é muito amplo e bastante genérico, mas oferece realmente a possibilidade de individuar aproximações e diferenças existentes entre os modelos, nos vários níveis e aspectos tomados em consideração.

No último capítulo (o de número 9) Utsch faz uma espécie de resumo da empresa por ele tentada. Não há como apresentar aqui todos o pontos indicados por ele levantados. Para poder colher os inúmeros aspectos envolvidos no fenômeno da religião e da religiosidade, o primeiro passo é o de ver o ser humano como sendo uma unidade psico-espiritual, cuja vivência e comportamento são determinados por variados fatores tanto pessoais quanto transpessoais. Para Utsch, as bases para uma psicologia dialética da religião devem ser colocadas dentro da tensão dialética que é essencial à própria condição humana do existir. Entre psicologia e religião existiria, portanto, uma polarização dialética. Seu modelo, pensa Utsch, oferece a possibilidade de manter esta tensão dialética e, ao mesmo tempo, permite correlacionar a psicologia com a teologia, sem negar a existência de um campo de tensão entre a visão de mundo e a ciência.


Edênio Valle
PUC-São Paulo
Julho de 2003