A mistura de raças que começou com a colonização portuguesa no Brasil no ano de 1500, continuou a ser característica da população brasileira. O fato do Brasil ser uma sociedade pluriétnica criou a crença de que não existe preconceito racial. Esta crença se expressa na ideologia de que o Brasil tem "uma democracia racial". A Umbanda, uma religião que se originou no sudeste brasileiro na década de 1920, tem sido apresentada como uma expressão desta ideologia. No entanto, a Umbanda tem sido uma da manifestações da supremacia branca. Este artigo vai examinar como preconceitos contra população negra brasileira foi expressa através da desafricanização da Umbanda e do discurso religioso que acompanhou este processo. E vai continuar a examinar a mudança recente da reafricanização das religiões afro-brasileiras.[1]
Estima-se que um total de 3.600.000 escravos foram transportados da África para o Brasil entre os séculos XVI e XIX (Bastide, 1978: 35), fazendo do Brasil o segundo maior importador de escravos do novo mundo. Durante este período, a população negra escrava era maior que a dos brancos que legislavam. Os escravos vieram principalmente da Nigéria, Daomé (atual Benin), Angola, Congo e Moçambique. Apesar da instituição escravagista ter quebrado as famílias e espalhado grupos étnicos através do país, os escravos conseguiram manter alguns laços com sua herança étnica. Isso aconteceu devido ao fato, entre outros, dos portugueses usarem a política de dividir para governar, separando os escravos em diferentes nações. O termo nações se refere ao local geográfico de um grupo étnico e sua tradição cultural (por exemplo, os que falavam Yorubá da Nigéria eram os Nagô, Ketu, Ijejá, Egba etc.) A conseqüência inesperada dessa divisão foi que o conceito de nação desempenhou um papel importante para a manutenção de várias identidades étnicas africanas e para a transmissão cultural e as tradições religiosas.
Os escravos africanos eram proibidos de praticar suas várias religiões nativas. A Igreja Católica Romana deu ordens para que os escravos fossem batizados e eles deveriam participar da missa e dos sacramentos. Apesar das instituições escravagistas e da Igreja Católica Romana, entretanto, foi possível aos escravos comunicar, transmitir e desenvolver sua cultura e tradições religiosas. Houve vários fatos que os ajudaram a manter esta continuidade: os vários grupos étnicos continuaram com sua língua materna; havia um certo número de líderes religiosos entre eles; e os laços com a África eram mantidos pela chegada constante de novos escravos.
Entre as tradições religiosas africanas que exerceram influência nas religiões afro-brasileiras, o culto aos Orixás e Voduns foram de capital importância. Orixás e Voduns são divindades dos grupos da Nigéria e Benin que falam Yorubá e Jeje. Na África cada divindade preside um aspecto da natureza e uma família em particular. No Brasil, como a escravidão dividiu as famílias, eles se tornaram protetores dos indivíduos. O ponto central das religiões afro desenvolvidas no Brasil eram as festas para os Orixás e Voduns, que envolviam possessões de divindades e sacrifícios de animais.
As religiões afro-brasileiras constituem um fenômeno relativamente recente na história religiosa do Brasil. Por exemplo o primeiro terreiro de Candomblé, que é localizado no nordeste, mais precisamente na Bahia, é geralmente situado no ano de 1830. Estas novas religiões apareceram primeiro na periferia urbana brasileira, onde os escravos tinham maior liberdade de movimento e era capazes de se organizar em nações. Daí eles se espalharam por todo o país, e tomaram diversos nomes como Catimbó, Tambor de Minas, Xangó, Candomblé, Macumba e Batuques. O Candomblé, a mais tradicional e africana dessas religiões, se originou no Nordeste. Nasceu na Bahia e desde longa data tem sido sinônimo de tradições religiosas afro-brasileiras em geral. Desde o começo os pais-de-santos[2] buscavam re-africanizar a religião. Isto foi possível em parte, porque a rota dos navios entre Nigéria e Bahia, conservou viva a conexão com a África. Isso continuou mesmo depois da abolição da escravidão em 1888. Escravos libertos que puderam viajar para áreas dos Yorubás foram iniciados no culto dos Orixás e então, ao retornar ao Brasil, puderam fundar terreiros a revitalizar a prática religiosa. Quando as religiões afro-brasileiras começaram a aparecer, o conceito de nação ganhou nova força e significado, em parte como um símbolo de transmissão de tradições religiosas locais, e em parte como uma marca da identidade étnica[3].
Reafricanização ou não, as religiões afro-brasileiras ainda carregam os efeitos de sua interação com outras tradições religiosas, especialmente do Catolicismo. Os Voduns e Orixás foram justapostos com os santos católicos[4] e o interior dos terreiros possuía numerosos elementos católicos, incluindo e estátuas de santos, enquanto os objetos religiosos africanos eram escondidos. As religiões afro-brasileiras eram proibidas, e os terreiros eram freqüentemente visitados pela polícia. Por isso seus praticantes deviam sempre buscar caminhos para fortalecer a aparência católica dos Orixás e dos terreiros. O sincretismo se tornou assim estratégia de sobrevivência. Apesar de que a libertação dos escravos em 1888, a ratificação da Constituição Republicana em 1889 e a separação da Igreja e do Estado em 1890 foram caracterizados pelo mesmo espírito liberal, a república ainda proibia o Espiritismo. Esta proibição era dirigida especialmente contra as religiões afro-brasileiras, que eram denunciadas como baixo espiritismo. Nesta designação está implícito o preconceito social direcionado contra os membros destas religiões, que pertenciam aos setores mais baixos da sociedade brasileira.
Os negros brasileiros não cabiam na modernização republicana. Inspirada pelas teorias raciais "científicas" européia e norte americana, a elite branca dominante via a população negra como uma desgraça ao caráter nacional brasileiro. (Skidmore 1974: 29). O problema da cor da pele exigia de alguma forma uma solução, e a proposta dos intelectuais e das elites em geral era o embranquecimento. A idéia era de que a miscigenação continuada poderia levar a um embranquecimento de toda a população brasileira. Isso poderia ser levado adiante e acelerado com a abertura do Brasil aos imigrantes europeus[5].
Enquanto as religiões afro-brasileiras estavam concentradas no nordeste do Brasil, as correntes religiosas do sudeste tiveram uma importância decisiva na fundação da Umbanda, uma nova religião brasileira. Para a burguesia intelectual branca do sudeste, a França era o maior expoente das mais novas correntes culturais e espirituais. Assim, o Espiritismo de Allan Kardec, que foi praticado primeiro em Paris por volta de 1855 pelo francês Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-69), rapidamente se espalhou no sudeste brasileiro. Essa nova forma de Espiritismo misturava filosofia, ciência e religião. As idéias de Kardec sobre a imortalidade da alma e a comunicação com os espíritos combinavam com o evolucionismo social, o positivismo de Comte, o magnetismo, conceitos Hindus de reencarnação e karma e os ensinamentos cristãos da caridade.
Os que primeiramente abraçaram o Kardecismo foram as classes médias brancas. Isso incluía os imigrantes europeus, especialmente médicos, advogados, intelectuais e oficiais do exército. Os espíritas eram perseguidos pela Igreja Católica, mas a separação entre a igreja e o Estado tornou possível ao Espiritismo ganhar chão. O governo republicano continuou perseguindo as organizações espíritas por causa da prática ilegal da medicina, mas apesar disso, muitos governadores estavam envolvidos com o movimento kardecista que era menos estigmatizado que o Espiritismo Afro-brasileiro. Foi introduzida uma distinção entre baixo espiritismo que era relacionado com as religiões afro-brasileiras e a população negra do setor mais baixo e o alto espiritismo que estava relacionado Espiritismo Kardecista e a população branca dos setores mais altos. (Negrão 1993: 23)
No Espiritismo Kardecista brasileiro, as noções de evolução de Kardec combinam com os conceitos de reencarnação e karma. Neste tipo particular de evolucionismo cultural os espíritos de povos como os astecas, egípcios e chineses são vistos como representantes de civilizações mais desenvolvidas, enquanto os espíritos dos africanos e dos índios brasileiros são vistos como inferiores e pertencentes a culturas inferiores. A estes espíritos inferiores é recusada a admissão nas sessões espíritas. A maioria dos espíritos que participam das sessões espíritas são renomados cientistas, especialmente médicos, incluindo os que foram praticantes do Espiritismo Kardecista brasileiro.
Desde o início os centros de espiritismo kardecista brasileiro ofereceram serviços de saúde ao doentes e pobres. Não houve, entretanto, recrutamento entre as classes baixas. Ao contrário, a distância social entre ricos e pobres foi mantida firmemente. (Brown 1994: 24)
Além do Espiritismo Kardecista, a Umbanda tem um importante predecessor na Macumba. O termo Macumba se refere a várias misturas de afro-brasileiras com outras religiões que se originaram no sudeste brasileiro, especialmente no Rio de Janeiro. Macumba é também um termo depreciativo para baixo espiritismo. Acredita-se que a Macumba se originou no Rio de Janeiro e sua imediações, onde a população dos ex-escravos eram em grande escala do Congo, da Angola e de Moçambique, e foram agrupados de acordo com as nações.
A Macumba no Rio era caracterizada por um ecletismo religioso distinto, e pelo fato de que se difundiu entre grupos étnicos de quase todos os setores sociais. Entre as várias tradições religiosas que entram na Macumba estão o Candomblé, o culto aos Caboclos[6] e o Espiritismo Kardecista. Com a Macumba apareceram dois arquétipos diferentes: o Caboclo (o índio brasileiro) e o Preto Velho (um espírito de escravo), ambos assumiram grande importância na fundação da Umbanda mais tarde.
João do Rio, um jornalista que descreve o ecletismo religioso que se desenvolveu no Rio na virada do século, refere-se a numerosos especialistas que eram representantes da população negra dos setores baixos. Os especialistas eram consultados por uma clientela que vinha do setor médio e das elites. Eles recorriam aos especialistas religiosos, e pagavam bem para serem salvos de situações críticas envolvendo doenças, amor, dinheiro, poder...(Rio 1976[1904])
A heterogeneidade étnica e social dos membros e clientes da Macumba fez dela uma religião que pode mediar os antagonismos religiosos entre baixo espiritismo e alto espiritismo. Desta forma a Macumba antecipou a Umbanda.
A Umbanda é freqüentemente vista como a maior síntese entre as tradições religiosas Afro-brasileiras e Ameríndias, o Espiritismo Kardecista e o Catolicismo. Por seu sincretismo e caráter eclético, a Umbanda tem sido percebida como uma religião que reúne os vários grupos étnicos brasileiros, sua cultura e tradições religiosas, e assim reflete a miscigenação que compõe a sociedade brasileira. A Umbanda é vista como uma tentativa de formular uma religião nacional, de criar uma religião democrática que seria capaz de unir os vários grupos étnicos e classes sociais.
Enquanto a Umbanda é freqüentemente classificada como religião Afro-brasileira, essa questão é muito discutida entre os especialistas do Brasil. A tendência original de ver a Umbanda como religião Afro-brasileira parece refletir preconceitos generalizados contra as religiões Afro-brasileiras e uma inclinação para transformá-las em folclore. Há ainda muita discordância e confusão sobre a Umbanda entre os especialistas. Ela tem sido interpretada às vezes como uma religião de negros brasileiros, dos oprimidos, dos imigrantes europeus e das classes médias. Atualmente estas posições parecem verdadeiras. Os estudiosos brasileiros geralmente concordam que ela é somente uma religião brasileira, isto é, uma religião que faz bricolage, um coerente ajuntamento de quase tudo o que existe nas tradições religiosas do Brasil e que expressa certa "brasilinidade" (Ortiz 190 : 107-08). Tal como a Umbanda é vista como sendo mediadora, inclusiva, assim é a cultura e a sociedade que a reflete. (Da Matta 1995). Os especialistas tem visto a Umbanda como uma religião criada pela classe média e ao mesmo tempo como uma religião que une a classe média branca e a classe baixa de cor. Por ter sido interpretada e distanciada de outras tradições Afro-brasileiras por meio da desafricanização, embranquecimento e abrasileiramento, a Umbanda se ajusta à ideologia dominante da "democracia racial". (Ortiz 1991).
O fundador da Umbanda é freqüentemente identificado com um homem chamado Zélio de Moraes, do Rio de Janeiro. Zélio era branco, classe média, e filho de um espírita kardecista. Ele afirma que em 1920 o espírito de um padre jesuíta se revelou a ele e lhe disse que ele seria o fundador de uma nova religião, genuinamente brasileira que seria dedicada a dois espíritos brasileiros: O Caboclo e o Preto Velho. Estes eram precisamente os dois tipos de espíritos que haviam sido rejeitados como inferiores pelos kardecistas. Nos meados dos anos 20, Zélio fundou seu primeiro centro de Umbanda em Niterói e nos anos seguintes vários outros centros de Umbanda foram fundados por iniciativa do povo lá.
Como Zélio, os primeiros fundadores de centros de Umbanda eram antigos kardecistas e da classe média branca. Eles tinham achado o Espiritismo Kardecista inadequado, e tinham portanto começado a freqüentar os terreiros de Macumba nas favelas do Rio de Janeiro. Lá eles adquiriram gosto pelos espíritos africanos e indígenas da Macumba, aos quais acharam muito mais competentes e eficientes que os espíritos Kardecistas para lidar com doenças e outros problemas. Além do mais, os rituais da Macumba eram considerados mais emocionantes que as sessões pouco ritualizadas do Espiritismo Kardecista. Se os kardecistas foram inspirados por certos aspectos da Macumba, entretanto eles repeliram outros como os sacrifícios de animais, os espíritos "demoníacos", a conduta freqüentemente grosseira e o ambiente social baixo dos centros de Macumba. (Brown 1994: 38-41)
A Umbanda pode ser considerada uma síntese de diferentes tradições religiosas representadas pelos vários grupos étnicos e sociais do Brasil, que são freqüentemente antagônicos. Entretanto os umbandistas tem freqüentemente uma atitude ambígua em relação às tradições Afro-brasileiras. Isto reflete as tendências sócio-culturais dominantes na sociedade brasileira.
A Umbanda se originou num período político turbulento que testemunhou, entre outros fenômenos, a emergência de movimentos nacionalistas e facistas. Esse desenrolar político culminou na ditadura de 1937, com o chamado Estado Novo. Foi durante este período de grande nacionalismo que a ideologia da democracia racial começou[7]. De acordo com esta ideologia, que era baseada no igualitarismo racial, os vário grupos teriam tido igual importância na formação da civilização brasileira. Esta ideologia deu assim um ímpeto na crença de que o preconceito racial não existia no Brasil. Seus efeitos já tinham começado a se fazer sentir no final da década de 1920, com a nacionalização e institucionalização da cultura Afro-brasileira. Práticas culturais como o carnaval e as escolas de samba, que tinham sido relegadas ao mais baixo status por causa de sua associação com a classe social dos negros eram agora reconhecidas como componentes importantes da cultura nacional (Brown 1994: 206). Os estudiosos brasileiros também começaram a se interessar seriamente pela cultura Afro-brasileira, que desde o início era considerada de um ponto de vista folclórico. Ao mesmo tempo a ditadura aboliu os movimentos negros que lutavam contra a discriminação racial, que continuou profundamente enraizada na realidade social.
O espiritismo, especialmente o baixo espiritismo representado pelas religiões Afro-brasileiras, era ainda proibido por lei. Durante o período da ditadura, que também representa os anos de formação da Umbanda, a perseguição a pessoas envolvidas no espiritismo se intensificou. Com toda a certeza era a perseguição a pessoas envolvidas no baixo espiritismo (isto é, em religiões Afro-brasileiras), que levou os umbandistas a se identificarem com o espíritas (termo usado pelos espíritas kardecistas para se identificarem). Escolhendo esta auto identificação os umbandistas se associaram com o Kardecismo e com o alto espiritismo. Parece que o termo espírita foi usado para esconder nomes e para dissociar praticantes das novas religiões de sua ascendência Afro-brasileira, um gesto que traz a reminiscência da máscara católica das religiões Afro-brasileiras durante certo tempo[8].
Como foi mencionado, a ideologia da democracia brasileira era, e é, manifestada como uma hegemonia branca. Este estado de coisas revela-se como primeira tentativa de legitimar a Umbanda como religião. A legitimação envolve a desafricanização e o esbranqueamento da Umbanda. Em 1939 alguns fundadores dos centros originais da Umbanda do Rio de Janeiro, inclusive Zélio de Moraes, estabeleceram a primeira federação da umbanda, a União Espírita da Umbanda do Brasil (UEUB). A federação foi criada para organizar a Umbanda como uma religião coerente e hegemônica e assim obter legitimação social. Em 1941 a UEUB realizou a primeira conferência sobre o Espiritismo da Umbanda, que foi uma tentativa para definir e codificar a Umbanda como uma religião com direitos próprios, e como uma religião que une todas as religiões, raças e nacionalidades. A conferência é ainda conhecida por promover maior dissociação com as religiões Afro-brasileiras. Os participantes concordaram em fazer dos trabalhos de Allan Kardec a doutrina fundante da Umbanda. Mas os espíritos fundamentais da Umbanda, os Caboclos e o Pretos Velhos ainda permanecem como espíritos muito evoluídos. Pode-se afirmar que os participantes se esforçaram para legitimar a Umbanda como uma religião bastante evoluída. Por exemplo declarou-se que a Umbanda existiu como uma religião organizada por bilhões de anos, e estava assim à frente de outras religiões.
Neste esforço para legitimar a Umbanda como uma religião original e evoluída, os participantes procuraram cortá-la de suas raízes Afro-brasileiras. A origem da Umbanda foi traçada no Oriente de onde, se dizia, teria se espalhado para a Lemúria (um continente perdido), e daí para a África[9]. Na África, continua a estória, a Umbanda degenerou em feiticismo. Desta forma foi trazida para o Brasil pelos escravos negros. (Federação Espírita de Umbanda 1942: 44-47). A influência africana da Umbanda não era assim negada, mas olhada como uma corrupção da tradição religiosa original, na sua fase anterior de evolução. A Umbanda, teria ficado exposta ao barbarismo africano, na forma vulgar dos costumes, praticada por povos de costumes rudes, defeitos psicológicos e étnicos. (Ibid.: 116). Outro jeito de sublinhar o caráter africano da Umbanda foi expresso no reconhecimento de que ela se originou na África, mas na África oriental (Egito), portanto na parte mais ocidental e civilizado do Continente. (Ibid.: 114).
Um dos objetivos da conferência era desta forma traçar as raízes genuínas da Umbanda do Oriente. A invenção de raízes orientais- somada à negação das africanas- refletiu na definição do termo Umbanda, que se crê geralmente ser derivado da língua Banto. Declarou-se que umbanda teria vindo do Sânscrito aume bhanda, termos que foram traduzidos como "o limitado no ilimitado", "Princípio Divino, luz radiante, fonte de vida eterna, evolução constante" (Ibid.: 21-22). Os participantes se esforçaram em associar a Umbanda com coisas como as tradições religiosas esotéricas européias e as novas correntes religiosas da Índia, representada pela Vivekananda.
A influência africana da Umbanda foi reconhecida como uma mal necessário que serviu meramente para explicar sua chegada e desenvolvimento no Brasil. O Candomblé, centralizado no nordeste do Brasil, era olhado como um estágio anterior da Umbanda, que havia se desenvolvido no sudeste. O Candomblé estava ainda marcado pela barbárie dos rituais africanos e assim associado com a magia negra. A lavagem branca da origem da Umbanda era expressa em termos como umbanda pura, umbanda limpa, umbanda branca e umbanda da linha branca no sentido de "magia branca". Estes termos contrastavam com magia negra e linha negra que estavam associados com o mal. Além disso, a divisão dos espíritos estabelecida, desenhou a linha entre aqueles da direita (bons), representados pela Umbanda, e os espíritos da esquerda (maus), representados pela magia negra. As únicas instâncias de identificação positiva da influência africana da Umbanda tem a ver com os Pretos Velhos (que eram vistos como pessoas simples e humildes, mas espíritos muito evoluídos), e com a África como um continente heróico e sofredor.
A atitude dos participantes em relação à herança religiosa africana era assim caracterizada pela ambigüidade. Elas eram positivas e negativas, oscilando da tentativa de dissocia-los das tradições religiosas africanas até sua atitude distintamente paternalista para com a África, a quem classificavam com a imagem de humilde escrava. Os negros brasileiros eram aceitos porque afinal tinham alma branca.
A cosmologia da Umbanda é dividida em três níveis: o mundo astral, a terra, e o mundo inferior ou submundo. O mundo astral é presidido por deus, e é seguido por várias linhas. Cada linha é guiada por um orixá, que freqüentemente corresponde a um santo católico. O mundo astral é um lar hierárquico, onde cada figura religiosa é colocada segundo o seu nível de evolução espiritual. Nos níveis mais baixos, estão os fundadores espirituais da Umbanda: os Caboclos e Pretos Velhos. A terra constitui a plataforma para espíritos que experienciam sua encarnação humana em diferentes níveis de evolução espiritual. Ela é visitada por espíritos do mundo astral, que são incorporados pelos médiuns nos centros de umbanda, ajudando deste modo os seres humanos. O submundo, freqüentemente denominado quimbanda, é o domínio da magia negra. Ela representa uma anti-estrutura da Umbanda. O submundo é habitado por espíritos que viveram sua encarnação com caráter duvidoso (desonestos, prostitutas...). Eles são vistos como maus por falta de evolução espiritual. Estes espíritos também podem subir à terra, causando danos que devem ser desfeitos pelos espíritos do mundo astral que devem descer para isto.
Os especialistas que focalizam a desafricanização da Umbanda, tem procurado mostrar como a África e as tradições religiosas Afro-brasileiras são re-interpretadas na sua cosmologia. Na Umbanda os orixás afro-brasileiros foram marginalizados e tem menos importância que no Candomblé, onde todas as cerimônias estão centradas neles, que são incorporados pelos filhos-de-santos. Nas cerimônias da Umbanda, os orixás são periféricos. Devido à sua posição elevada na hierarquia, eles permanecem na esfera astral, porém raramente são incorporados pelos médiuns. Parece que os espíritos menos evoluídos e mais baixos da terra, os Caboclos e Pretos Velhos, tem tomado na Umbanda a posição que os orixás tradicionalmente ocupam no Candomblé.
Desde o século XIX, há tradição oral e escrita referente a estas duas figuras. O Caboclo é geralmente descrito como o representante de um indígena inculto, selvagem e orgulhoso e se tornou símbolo da antiga idade do ouro do Brasil. O Preto Velho tem sido representado como um Tio Tomás, humilde e fiel como escravo. Tem sido enfatizado que apesar das diferenças entre os dois tipos de espíritos, ambos são marcados pelo processo de aculturação e civilização, e partilham a experiência histórica comum de terem sido escravizados. A substituição dos orixás pelos Pretos Velhos tem sido interpretada como uma expressão do estrangeiro -África- sendo substituído pelo nacional - Brasil. A substituição dos orixás orgulhosos e livres pelos Pretos Velhos e escravos, também tem sido interpretada como um símbolo da transformação da África (de ter sido livre na África e se tornado escravo no Brasil). Essa substituição tem sido vista como uma instância de sua aculturação, domesticação e embranquecimento da identidade africana na sua transformação em identidade afro-brasileira e nacionalidade brasileira. (Borwn 1994: 37-38)
O brincalhão Exu, que entre outras coisas representa o mensageiro dos orixás no Candomblé, é outra figura africana e afro-brasileira que foi reinterpretada e marginalizada na Umbanda. Exu foi associado com o demônio antes da fundação da Umbanda. Nesta religião, entretanto, essa figura maligna foi complementada. Exu se tornou o representante do demônio, do perigo e da imoralidade. Por causa destas característica, parece que os primeiros umbandistas associaram Exu com africanos e escravos rebeldes. Exu foi portanto segregado da Umbanda, e se tornou o legislador da quimbanda, do submundo.
Outra reinterpretação umbandista coloca Exu na ordem evolucionista de precedência conforme o modelo kardecista; ele é reduzido a um espírito menos evoluído que todavia tem potencial para evoluir e se tornar um espírito bom. Alguns umbandistas distinguem entre Exu pagão e Exu batizado, que se submeteu à doutrinação e encontrou o caminho certo da escada da evolução. Esta distinção reflete algo do caráter original ambivalente de Exu, apesar do rito de passagem do batismo, que define a distinção que é certamente novo. Novamente este batismo do Exu pagão tem sido interpretado como uma expressão e aculturação e domesticação do mal, do perigo e da imoralidade (Ortiz 1991: 137-144).
O fim do regime autoritário em 1945 abriu caminho para a democratização. Isto também significou que a perseguição sistemática aos umbandistas parou. Entre os umbandistas, isto desencadeou um distanciamento na identificação com o Espiritismo Kardecista e abriu a possibilidade para outras identificações diferentes e novas definições da Umbanda. Este novo desenvolvimento pode ser interpretado como uma reafricanização incipiente da Umbanda. Também como alternativa à Umbanda Branca, apareceu a Umbanda Africana. Esta buscou suas origens na África, não na Índia, e exaltou a herança africana.
A mudança democrática capacitou a Umbanda de se espalhar e se tornar mais visível no sudeste brasileiro por meio de programas de rádio, jornais e da fundação de várias federações da Umbanda. No início dos anos 60, apesar do fim da perseguição governamental, a Igreja Católica liderou uma cruzada contra a Umbanda. Depois do Concílio Vaticano II (1962-1965), entretanto, a Igreja Católica no Brasil parou a perseguição, e começou a dialogar com as religiões não-cristãs. No Brasil esta resolução levou muitos padres católicos a se dar conta que o futuro do Catolicismo no país passa pela habilidade de lidar com as religiões Afro-brasileiras (Boff 1977). A Igreja Católica no Brasil começou a adotar um pluralismo litúrgico, incorporando elementos das religiões Afro-brasileiras em certas missas. Além disso a Igreja começou a reconhecer oficialmente a Umbanda como religião. Esta mudança significou que a Umbanda e outras religiões Afro-brasileiras puderam ganhar melhor posição no campo religioso.
Durante a ditadura militar (1964-1985) a Umbanda obteve reconhecimento oficial e legitimação[10]. Isto está relacionado ao projeto nacionalista da ditadura. Presumivelmente os militares apoiaram a interpretação de democracia racial brasileira branca da Umbanda. O regime militar diretamente apoiou a Umbanda para usá-la para manipular as massas, causando o desprezo dos que estavam na oposição ao governo. Da mesma forma o regime também usou a Umbanda contra a Igreja Católica no Brasil, especialmente contra os clérigos que se opuseram a ele.
No anos sessenta, durante a repressão da era militar, a contracultura chegou da Europa e dos Estados Unidos ao Brasil. O movimento contracultural se espalhou nos centros urbanos do sudeste brasileiro, adotado pelas classes médias brancas, particularmente por intelectuais, estudantes e especialistas. Os movimentos de esquerda se levantaram em protesto e em solidariedade com os marginalizados, os pobres e os negros. Como na Europa e nos Estados Unidos, a contracultura dos anos sessenta envolveu a busca de alternativas para a racionalidade ocidental. A classe média branca do sudeste, de forma crescente, se voltou para o oriental, o místico e o ocultismo, na busca das origens da cultura brasileira. Sua atenção se voltou para a Bahia, o berço do Candomblé. A ambivalência religiosa e cultural da Bahia Afro-brasileira se tornou a representante do remanescente autêntico da verdadeira cultura brasileira. Logo a cultura popular brasileira adotou a Bahia e sua cultura e tradições religiosas. Os poetas da música popular começaram a se referir aos mistérios do Candomblé, às grandes mães-de-santos e aos orixás(Prandi 1991: 71-72).
Durante a década de sessenta a cultura e a religião afro-brasileira se tornaram assim menos estigmatizadas pelas classes médias brancas do sudeste. Como conseqüência, o Candomblé começou se tronar visível nesta região.
Durante os anos setenta, a linha dura do regime militar no Brasil foi afrouxado e a proibição contra o culto do Candomblé e outras religiões Afro-brasileiras chegou ao fim em 1977. O número de registros do Candomblé cresceu consideravelmente[11]. Foram constituídas muitas novas federações do Candomblé e reorganizadas outras tantas da Umbanda e então incluídos nelas novos centros de Candomblé. Este desdobramento reflete a africanização estrutural da Umbanda e a sua reaproximação com as religiões Afro-brasileiras. Uma das conseqüências do novo reconhecimento do Candomblé e sua adaptação estrutural pelas federações da Umbanda foi que os pais-de-santos dos centros da Umbanda foram incorporados e, em larga escala, praticados no Candomblé. Mais ainda, os pais-de-santos umbandistas começaram a ir à Bahia para serem iniciados nos centros de Candomblé. Ser feito no Candomblé[12] se tornou a legitimação da competência dos líderes umbandistas. A incorporação do Candomblé na Umbanda, deu origem a uma síntese denominada "umbandomblé" e "candombanda" e causou surpresa aos especialistas, pelo fato de que a Umbanda não só representava uma prática religiosa distinta, mas também uma combinação de tradições que abrangem desde o Espiritismo até ao Candomblé (Negrão 1993: 64-66).
Até 1987 o número de centros de Candomblé registrados em São Paulo chegaram a 2.500, enquanto o número de centros de Umbanda teve apenas um ligeiro crescimento depois da queda da ditadura militar. Por trás do crescimento do Candomblé no sudeste estão principalmente muitos pais-de-santos que transformaram seus centros de Umbanda em centros de Candomblé e que foram, em muitos casos, seguidos por seus adeptos e clientes. Muitos centros de Umbanda estão assim num período de transição para o Candomblé e são salvos pela transformação (como o Candomblé é uma religião mais exigente que a Umbanda). Antes os umbandistas recrutaram muitos membros do Candomblé, porém agora o curso do recrutamento está indo na direção oposta.
Outro fator que contribuiu para o desenvolvimento do Candomblé no sudeste foi a onda migração do nordeste, que tem crescido desde os anos sessenta. Entre os migrantes tem vindo muitos pais-de-santos, que trazem consigo seus centros de Candomblé ou abrem filiais de seus centros no sudeste. O transplante ou desenvolvimento de novos centros de Candomblé no sudeste é um fenômeno novo. Mas a composição de seus seguidores também é nova, desde que as classes baixas negras e as classes médias brancas estão igualmente representadas. Entre os pais-de-santos negros e brancos, o conceito de nação foi revitalizado e forma parte de sua auto imagem religiosa. Os pais-de-santos buscam sua identidade no local das áreas geográficas e das tradições culturais na África, pelas quais eles legitimam a pureza e a autenticidade de suas práticas religiosas. Por isso a genealogia religiosa dos novos pais-de-santos é fortemente ligada com a legitimação. No marketing de um centro de Candomblé é muito importante ser capaz de traçar uma linha ininterrupta de ligação religiosa com o Candomblé da centros mais antigos e de maior prestígio da Bahia.
Parece que muitos ex-pais-de-santos viram a Umbanda como um estágio no seu caminho para o Candomblé. Eles consideram o Candomblé como uma religião mais pura e estética, com forte raízes e tradições culturais. O Candomblé é também considerada mais eficaz magicamente e mais forte. Finalmente, ao dar suas razões por terem mudado para o Candomblé, os pais-de-santos declaram freqüentemente que ele não é mais uma religião estigmatizada e perseguida no Brasil (Prandi 1991: 77-90).
No despertar do recente crescimento das religiões Afro-brasileiras no sudeste do Brasil, está acontecendo também um processo de reafricanização nestas religiões. O esforço de purificar o Candomblé dos elementos sincréticos como Caboclos e Pretos Velhos[13] representa o reverso do processo de desafricanização e sincretismo que aconteceu na Umbanda. De acordo com isto, os centros de Candomblé estão começando a celebrar festas de despedida em honra dos Caboclos e Pretos Velhos da Umbanda. Além disso, há esforços para purificar o Candomblé de seus elementos católicos, a fim de retornar às tradições genuínas da Nigéria e do Benin[14]. Uma expressão que salienta a africanização do Candomblé é o cultivo das tradições religiosas e culturais da Nigéria, por meio do estudo da língua Yorubá e da mitologia dos orixás, através da peregrinação à Nigéria. Alguns dos pais-de-santos reafricanizados mesmo se dissociam do Candomblé como um produto afro-brasileiro. Ao invés disso, escolhem o nome de sua religião como tradição do orixá ou culto do orixá
De modo geral parece que as religiões Afro-brasileiras se tornaram mais visíveis na sociedade do sudeste brasileiro. Pais-de-santos aparecem na mídia com suas revistas próprias e seus próprios programas de rádio e televisão. Ele ainda aparecem a caráter nas novelas e como adivinhos, fazendo prognóstico sobre eventos de importância política e social. O Candomblé se tornou também alvo de comercialização. O número crescente de anúncios de objetos rituais e pacotes de viagem ao locais sagrados dos orixás na Nigéria acontece, na maioria das vezes, devido ao interesse comercial profano. Sua existência, entretanto, é evidência do interesse no Candomblé. Desde os anos setenta, os imigrantes nigerianos , que originalmente vem ao Brasil como estudantes de intercâmbio, se estabelecem no sudeste do Brasil e ganham a vida importando e vendendo objetos rituais vindos da Nigéria. O primeiro mercado dos orixás foi estabelecido em São Paulo em 1996. Adicionalmente, o desenvolvimento no campo da educação reflete crescente interesse na cultura e na religião afro-brasileira e nas raízes culturais africanas. Desde 1977, especialistas nigerianos visitantes, tem oferecido cursos de cultura e língua Yorubá na Universidade Estadual de São Paulo (USP). Cursos como estes tem atraído tanto estudantes, intelectuais como praticantes do Candomblé. A partir dos final da década de setenta, outras instituições educacionais em São Paulo, tem também começado a oferecer cursos de língua e religião Yorubá, (incluindo mitologia, dança e música para os orixás). Estas instituições funcionam, de alguma maneira, como porta de entrada para os centros de Candomblé (Gonçalves 1995: 262-71)
Os estudiosos que pesquisam a Umbanda ou o Candomblé discutem atualmente se o Candomblé está competindo com a Umbanda (isto é se está uma transferência geral da Umbanda para o Candomblé). Apesar da Umbanda ser ainda muito mais espalhada do que o Candomblé, e de seus membros continuarem olhando o Candomblé com preconceito, o Candomblé parece estar crescendo no sudeste às custas da Umbanda. O Candomblé também se estende a todas as camadas da sociedade brasileira.
Apesar da pesquisa no crescimento e reafricanização das religiões Afro-brasileiras ser ainda incipiente, tem já aparecido interpretações divergentes do fenômeno. O sociólogo brasileiro Reginaldo Prandi tem argumentado que mudança da Umbanda para o Candomblé está continuando e esta mudança é o reflexo de certas mudanças sociais (Prandi 1991: 62). Para ele, a Umbanda é uma religião cuja ideologia reflete a sociedade de ontem (isto é, a moderna classe social que apareceu nos anos 1920, era caracterizada pela crença no nacionalismo, na igualdade e na mobilidade social). Este tipo de sociedade não se concretizou. Devido às crises políticas e às mudanças sociais que ocorreram durante o regime militar posterior, o povo perdeu seu senso de segurança e sua crença na sociedade e na mobilidade social. Na visão de Prandi, o Candomblé está mais afinado com a sociedade contemporânea. Ele caracteriza o Candomblé como uma religião não ética, onde o valor das coisas mundanas está localizada no indivíduo. Assim o candomblé se ajusta na sociedade hedonista, narcisista, pós ética - em outras palavras, pós moderna- de hoje (Ibid.: 186)
Outra hipótese que Prandi defende é que o Candomblé, como foi transplantado do nordeste para o sudeste do Brasil, sofreu a passagem de uma religião étnica para universal. Prandi afirma que a popularização do Candomblé, que tem se dado através da música e dos meios de comunicação desde os anos sessenta, tem preparado o caminho para o crescimento e reconhecimento da cultura e da religião afro-brasileira e africana. Esta redescoberta da África tem atraído a classe média branca aos centros de Candomblé, algo que tem contribuído para a legitimação e popularização do mesmo. De acordo com Prandi, a reafricanização não tem nada a ver com a cor da pele ou com a identidade afro-brasileira. A religião e a cultura afro-brasileiras perderam quase toda a sua identidade étnica e a ligação com a população afro-brasileira. Ao invés, Prandi vê a reafricanização como uma espécie de invenção das tradições intelectualizadas, nas quais o retorno às raízes africanas representa a busca da origem e da autenticidade (Ibid.: 118). A argumentação de Prandi é diretamente apoiada em outros argumentos, os quais, por exemplo, afirmam que o Candomblé tem conseguido uma aceitação geral pelo setor dominante branco da sociedade brasileira, em parte como resultado de ter sido marcado como uma religião autêntica e pura. (Bacelar 1989: 87).
O ponto de vista de Prandi em relação a reafricanização representa o Candomblé como um expressão do culturalismo. Os elementos culturais aparecem livremente flutuando a ponto de perder qualquer relação com o estrato sócio-econômico ou categoria etno-histórica. Outros estudiosos tomaram outro caminho e relacionam o crescimento e a reafricanização das religiões afro-brasileiras diretamente a questões étnicas e políticas. Assim a antropóloga norte-americana Diana Brown liga o crescimento do Candomblé no sudeste ao aumento da consciência da racial da ascendência africana entre os brasileiros. Brown chama a atenção para o fato de que o crescimento do Candomblé, com respeito ao espaço e ao tempo, coincide com o aparecimento do interesse cultural e político pela identidade africana entre os negros brasileiros (isto é, com os movimentos de consciência racial que começaram no fim dos anos sessenta) (Brown 1994: XXII). Mas Brown nega que há explicação clara e ambígua para o desabrochamento do Candomblé no sudeste brasileiro. Ela argumenta em particular que se tem que levar em conta as diferenças entre a identificação das classes médias brancas e das classes baixas negras com o Candomblé.
Os pontos de vista diversos discutidos aqui, representam duas interpretações do recente crescimento e reafricanização do Candomblé no sudeste do Brasil. Uma apela à universalidade e ao multiculturalismo do Candomblé e outra destaca questões políticas e étnicas. Na primeira interpretação , o candomblé é parte de um repertório simbólico e é uma entre muitas identidades religiosas no supermercado multicultural e plurireligioso da sociedade moderna, onde cada indivíduo é livre para escolher e combinar os elementos das várias e multiformes identidades religiosas. O outro ponto de vista considera que o Candomblé está ligado com a consciência étnica e política na luta contra a discriminação que tem crescido desde os anos setenta entre a população afro-brasileira. Aqui o Candomblé aparece como uma fonte na luta política onde a reinvenção das tradições religiosas africanas podem ser usadas como meio de mobilização étnica e caminho para despertar a consciência do povo e construir uma identidade étnica. Os dois pontos de vista não se excluem. É como se aos olhos das classes médias brancas o Candomblé não fosse mais uma expressão da identidade afro-brasileira, enquanto ao mesmo tempo, ele pode se constituir em fonte de consciência étnica e mobilização entre a população afro-brasileira.
Na minha pesquisa sobre a reafricanização do Candomblé no sudeste brasileiro, observei uma forte diferença no envolvimento nas religiões afro-brasileiras de negros e brancos. Entre os dois grupos há no momento sérias controvérsias a respeito da definição do Candomblé, da africanidade e da negritude. Os mais africanizados- isto é os que estudam mitologia Yorubá e vão em peregrinação a África- tendem a ser brasileiros brancos da classe média. Eles geralmente tentam se dissociar do Candomblé, que consideram uma religião Afro-brasileira sincrética "impura". Preferem definir sua religião como afro-descendente, denominando-a de Tradição do Orisa ou Culto do Orixá. Há apenas uma representação pequena de negros brasileiros nos centros religiosos dos praticantes destes "afro-descendentes".
Os negros brasileiros parecem predominar nos centros tradicionais afro-brasileiros do Candomblé, que inclui uma forte representação de participantes dos Movimentos Negros. Ligam seu envolvimento religioso à consciência racial e à luta contra a discriminação. Eles se dissociam dos movimentos de brasileiros brancos mais africanizados, reprovando-os por ignorar a realidade social que os negros brasileiros enfrentam, e por cultuar somente a África, aos invés de ligar a África com o Brasil. Eles destacam que a cultura africana existe no Brasil, que o Candomblé sincrético é parte da história social e da identidade dos negros brasileiros. Apesar das controvérsias entre negros e brancos, eles se unem em federações e organizações, como praticantes de religiões afro-brasileiras.
Interpretando o crescimento e a reafricanização das religiões afro-brasileiras, os pontos de vista culturalista e etnico-político não são sim ou não, mas podem acontecer simultaneamente. O desafio está em reconhecer que o Candomblé não pode mais ser visto sem a dimensão ambígua. Após ter sido olhado como uma espécie de "gueto cultural", como um fenômeno cultural restrito principalmente ao nordeste, o Candomblé agora se espalha por todo o país, e é adotada por larga escala de grupos sociais e étnicos, onde cada um a interpreta de seu próprio jeito. Um dos desafios no estudo das religiões afro-brasileiras hoje parece ser os vários sentidos que elas tomaram na sociedade intercultural do sudeste do Brasil, onde questões relacionadas à raça são marcadas por complexidade desencontrada e ambigüidade.
No seu trabalho Identidade Cultural e Processo Global, o antropólogo norte-americano Jonathan Friedman argumenta que quando um centro hegemônico começa a declinar torna-se crescentemente difícil de manter a identidade dominante. Uma crise na sociedade maior leva ao enfraquecimento do poder e da identidade do grupo dominante, e oferece a oportunidade a grupos reprimidos anteriormente de reforçar sua identidade cultural (Friedman 1994: 189). Como identidades modernas fracassam, identidades culturais emergentes e processo étnico aparecerão como alternativas, incluindo movimentos indígenas e movimentos religiosos fundamentalistas. Cada movimento representa a emergência de novo primitivismo, uma busca de significado primordial (Ibid.:79).
Na explicação da mudança da desafricanização para a reafricanização da religião Afro-brasileira, faz sentido aplicar a teoria de Friedman, juntamente com as hipóteses de Prandi, recordando a mudança da Umbanda para o Candomblé como expressão de mudança social. A Umbanda se originou com a sociedade moderna brasileira, como a religião brasileira, ajuntando os vários grupos étnicos do Brasil e sintetizando suas crenças. No processo assimilativo da desafricanização e embranquecimento, fazendo o afro-brasileiro se tornar apenas brasileiro, a Umbanda se ajustou à ideologia dominante da sociedade moderna. Ela viveu seu momento auge durante a ditadura militar nacionalista. Quando a crença na nação e nos valores da sociedade moderna falharam durante o regime militar, no entanto, alternativas política , culturais e identidades religiosas começaram a aparecer. Simultaneamente, houve um afrouxamento gradual da política repressiva da ditadura. Quando o regime militar finalmente acabou em 1985, o crescimento do número de centros de Umbanda estagnou, enquanto outras identidades culturais começaram a emergir. Depois de terem sido reprimidas, a cultura e as religiões afro-brasileiras tem tomado agora novas formas de construção de identidade numa sociedade inter-cultural onde a identidade é questão de livre escolha. A identificação com a religião afro-brasileira agora parece englobar desde a busca de primitivismo de brasileiros brancos até as raízes culturais e as exigências de consciência racial de brasileiros negros.
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[1] A pesquisa para este artigo foi possível pela ajuda financeira de Danish Reaserch Council for the Humanities
[2] Os termos para líderes masculinos e femininos do Candomblé são pai-de-santo e mãe-de-santo. Os iniciados são chamados filho/filha-de-santo.
[3] Os terreiros do Candomblé são divididos em nações como Nagô, Ketu etc. Uma pessoa que é iniciada no terreiro de Candomblé não pode exercer sua função em outros terreiros de outras nações.
[4] Este fenômeno é encontrado entre os países católicos do Novo Mundo aos quais os escravos africanos foram trazidos da África.
[5] Imigrantes de pele negra eram barrados.
[6] Os cultos aos Caboclos eram cultivados no Maranhão como uma mistura de religiões Ameríndia, Católica e Africana.
[7] Uma das pessoas que estava por trás desta ideologia era Gilberto Freyre. A ideologia aparece em Casa Grande e Senzala (1933).
[8] A maioria dos centros de Umbanda existiram disfarçados de Centros Espíritas Kardecistas. De 1929 a 1944 um total de 42 centros de Umbanda , 651 centros espíritas - nenhum centro de Candomblé - estavam registrados em São Paulo
[9] A fundação destas confederações de Umbanda é uma expressão clara da necessidade de legitimização. As federações enfrentam vários problemas. Dentre eles se destaca o fato de todas as tentativas de codificar e padronizar a Umbanda como uma religião coerente, que fracassou. Cada centro de Umbanda formula sua própria doutrina e ritual, escolhidos ecleticamente de outras tradições religiosas.
[10] A nacionalização da Umbanda começou em 1964, quando ela foi incluída no censo estatístico e as festas da Umbanda entraram oficialmente nos calendários nacional e locais e nos guias turísticos. Simultaneamente uma enorme quantidade de literatura da Umbanda começou a circular.
[11] De 1974 a 1976, 357 Candomblé foram registrados em São Paulo. Durante o mesmo período 2.844 centros de Umbanda e 69 centros de Espiritismo Kardecista foram registrados. (Negrão 1993: 31)
[12] Ser feito quer dizer, fazer a cabeça, é uma forma de designa a iniciação nos ritos do Candomblé, que envolve a tonsura de iniciado.
[13] Nas pesquisas sobre a Umbanda, os Caboclos e Pretos Velhos aparecem em certos tipos de religião Afro-brasileiras.
[14] Na Segunda Conferência Mundial sobre a Tradição e Cultura do Orixá, realizada em Salvador, Bahia, em 1983, algumas mães-de-santos pronunciaram uma declaração oficial sobre a dessincretização do Candomblé.