Este ensaio representa uma reação a dois corpos de "grandes teorias".
Primeiro, a grande teoria sociológica. A sociologia da religião ainda é decisivamente constituída por um número de grandes teorias. Essas teorias relacionam religião a alguns aspectos de modernização na tentativa de explicar e prever o destino da religião. Entretanto, como discuti longamente em um capítulo no livro de Dick Fenn, Blackwell Companion to the Sociology of Religon (2001), uma coisa que todas as grandes teorias têm em comum é que elas não dão conta da questão de gênero. O que elas dizem sobre a sociedade moderna e a religião é assumido como aplicável a todos os seres humanos sem distinção. Eu quero desafiar essa suposição porque ela falha em reconhecer que mulheres não necessariamente ocupam o mesmo espaço social e tampouco participam das mesmas instituições sociais como os homens, e que mesmo que o façam, elas freqüentemente o fazem de maneira diferente.
Segundo, a grande teoria feminista. Embora o gênero possa ser invisível nas grandes teorias de sociologia da religião, por bem mais de um século tem sido visibilizado claramente pela teoria feminista. E na falta de teorias alternativas de dentro do estudo da religião, a abordagem feminista tem tido uma enorme influência em como as pessoas abordam o tópico: mulheres e religião. Sua abordagem mais simples, tanto no caso liberal quanto no marxista, sugere que a religião é patriarcal, planejada por homens, executada por homens, legitimando interesses masculinos, e subjugando mulheres material e ideologicamente (através da falsa consciência). O legado duradouro da abordagem feminista é que o estudo de mulher e religião ainda é muito freqüentemente abordado em termos de uma única problemática: a religião é uma coisa "boa" (libertadora) ou "má" para as mulheres? Ela reforça o patriarcado ou o solapa ?
Estes são então os dois corpos da grande teoria que constituem a base para este trabalho. Não obstante as minhas críticas, reconheço o enorme poder dessas teorias e minha dívida para com elas. Mas meu reconhecimento vem na forma de uma alternativa: uma grande teoria de gênero de mulher e religião. Dados os limites de espaço, não posso fazer mais do que rascunhar suas linhas num estilo audacioso; farei somente uma breve referência a evidências concretas e exemplos em que isso se sustenta ou não.
Minha premissa básica é o oposto da encontrada na teoria feminista. Ao invés de sustentar que a participação das mulheres na religião deva ser explicada em termos de um conluio com seus próprios opressores eu sugiro o seguinte:
A participação religiosa das mulheres deve ser entendida em relação à habilidade das religiões em lhes prover um espaço social que não seria disponível para elas de outra maneira.
Este ponto de partida tem a vantagem de (a) ser óbvio e (b) tratar as mulheres como agentes racionais ao invés de tratá-las como marionetes do patriarcado. As mulheres podem ocupar estes espaços por várias razões: porque eles provêem um capital social e cultural, permitem formação de identidade, oferecem formas particulares de permissão e porque eles permitem às mulheres articularem suas esperanças, medos desejos e convicções morais – entre outras coisas. E estou aberta à discussão dessas variáveis.
A partir desta premissa, segue-se:
A participação das mulheres na religião será influenciada significativamente pelos espaços sociais disponíveis para elas em uma sociedade particular.
Aplicado ao estudo da religião, isto pode significar que:
Para compreender a participação feminina na religião em uma sociedade dada, devemos compreender os espaços sociais disponíveis para as mulheres nessa sociedade.
Teorias sociológicas das sociedades modernas sugerem que aqui a variável crucial será a natureza e o grau de diferenciação social/estrutural/funcional.
Portanto:
Aplicando esta teoria, acredito ser possível discernir três padrões principais da participação da mulher na religião, padrões estes relacionados a três tipos principais de sociedade no mundo moderno. Esta é a estrutura teórica que eu gostaria de propor para a compreensão da mulher e religião no mundo moderno.
A maioria das sociedades ocidentais são caracterizadas por um alto nível de diferenciação estrutural. Diferenciação é o processo pelo qual as atividades sociais tornam-se separadas em diferentes instituições. Desta maneira nos estados modernos, atividades como governo, política, leis, educação, previdência, saúde e trabalho produtivo, tornam-se funções especializadas mantidas por autônomos, instituições e agências "diferenciadas". O processo é relacionado à "divisão do trabalho", pelo qual tarefas que eram antes executadas por um único indivíduo são divididas entre muitos trabalhadores especializados. Essencial a essa diferenciação nas sociedades industrializadas desde pelo menos o século XIX era o desenho da clara distinção entre vida "privada" e "pública". Esta era uma distinção de gênero. Não somente as mulheres eram confinadas à primeira, a esfera privada, como a própria definição de esfera privada era associada ao feminino mais do que ao masculino. Os homens controlavam as chamadas "instituições primárias"- a lei, o governo, os militares, os negócios etc. enquanto as mulheres tornavam-se mais e mais confinadas à instituição da família. Desde que, como parte integral deste processo, a religião foi racionalizada e gradualmente pressionada a retirar-se da esfera pública e mundana nas modernas sociedades ocidentais , ela gradualmente deslizou para dentro da esfera privada.
Assim, visto que a religião tornou-se uma questão privada e não um problema público, tornou-se portanto a esfera da mulher por excelência. Tornou-se o único espaço social além da família que era facilmente aberto à mulher. Nesse processo, a própria religião tornou-se "efeminada" e "domesticada" (Douglas). Ela surgiu como a guardiã da vida privada e dos valores da família, e ensinou as virtudes "femininas" do amor, da graça, da suavidade, da compaixão e outras que sustentam a vida familiar. Igrejas e capelas particularmente ofereceram um espaço social que de outra forma não seria disponível às mulheres. Era o espaço onde seu papel como as que cuidavam dos lares, viúvas e mães podia ser legitimado, articulado e recompensado; e assim elas poderiam acumular igualmente capital social e cultural; poderiam exercer um poder considerável – nas ordens religiosas, nos círculos de igreja, nos grupos de voluntárias, etc. Na verdade, o Cristianismo abriu um caminho parcial para o mundo público, através da participação voluntária em organizações de caridade e, talvez de forma mais marcante, no trabalho missionário fora do país.
Deste modo, nas sociedades modernas altamente diferenciadas em que as mulheres são identificadas com a esfera privada, podemos esperar um alto grau de participação na religião "tradicional" que reforça os valores domésticos e oferece o único espaço social além da família que é aberto às mulheres.
Entretanto, ao menos desde o período do pós-guerra nas modernas sociedades ocidentais, um número de fatores convergentes tem significado que mais e mais mulheres começaram a entrar nas instituições "primárias" públicas. Não ainda em pé de igualdade com os homens, claro, mas movendo-se, de alguma forma, nesta direção. Isso significa que as mulheres não estão mais confinadas à esfera doméstica fora da necessidade social., mas que elas tem mais opções dentro do espaço social no qual elas irão atuar. Essa situação, na qual nós atualmente nos encontramos, tem implicações interessantes para as mulheres e a religião. Eu proponho que isso seja resultante não somente de um, mas de três modelos principais:
As sociedades têm sido submetidas a diferentes (apesar de relacionados) padrões de modernização pelo Ocidente industrial avançado. Em relação à diferenciação, muitas delas não estão, ou ainda não se tornaram, tão altamente diferenciadas quanto as sociedades ocidentais, e a distinção entre público e privado não é sempre tão clara e nitidamente definida. Além disso, a religião é freqüentemente um processo mais central e mais integral de modernização do que nas sociedades ocidentais. Essas diferenças na natureza da modernização e no lugar da religião estão intimamente ligadas, e existem, em parte, devido a pressões para criar identidades nacionais (freqüentemente na esteira do colonialismo), que simplesmente não imitam o Ocidente e seus padrões de modernização secular. Poder-se-ia argüir que, diferentemente do Ocidente, onde agentes da modernização foram principalmente masculinos (mesmo que o trabalho doméstico que tornou isso possível fosse feminino), a modernização em várias sociedades não-ocidentais é mais freqüentemente uma divisão de tarefas de todas as pessoas, homens e mulheres, que são impelidos por um desejo de seguir um caminho próprio ao invés de um caminho ocidental.
Não obstante a grande variedade entre essas sociedades dentro delas, é possível discernir três padrões particularmente importantes da participação de mulheres na religião:
Elas são as guardiãs da pureza da nação, formam as crianças na fé e guardam a santidade da casa. Assim como é necessário para os homens guardar e proteger a integridade da nação contra seus inimigos, assim é necessário proteger os corpos femininos. Desta maneira, no Paquistão (por exemplo), a instituição da reclusão feminina e o uso do véu (purdah) tornou-se um sinal de integridade de ambos, das mulheres e da nação. Aqui, mulheres estão firmemente estabelecidas dentro de um domínio privado, e dissuadidas de adentrar as esferas "masculinas" da religião e da política. Apesar de apresentado como "tradicional", isto é na verdade uma resposta Islâmica recente às forças de modernização e ao crescimento do estado-nação.
O Islã novamente nos dá um excelente exemplo com o uso do véu. O véu pode ser usado para simbolizar e reforçar o enclausuramento e restrição da mulher à esfera privada, mas pode também ser apropriado pela mulher e usado para negociar o seu lugar no espaço social. Permite às mulheres passar da esfera doméstica para a esfera pública de maneira segura e sem haver um rompimento dramático com o passado ou com o Islã. Então é possível demonstrar que o Islamismo contemporâneo serve a muitas mulheres muçulmanas como uma forma nativa de feminismo – não emprestada do Ocidente, mas um movimento de liberação local. De fato, isso pode ser visto como uma opção superior ao que está disponível no Ocidente., onde as mulheres podem entrar o mundo público somente na forma "racionalizada" e nos termos seculares masculinos, e são forçadas a deixar para trás aspectos vitais de sua identidade, incluindo sua religião. O véu pode representar uma tentativa de combinar crenças religiosas com desejo de mudança social. Isso é parte e parcela do processo no qual mulheres muçulmanas têm se tornado catalisadoras de mudanças, entrando na vida profissional e pública, tornando-se acadêmicas e porta-vozes do Islã, e formando organizações de mulheres, profissionais e de militância, sem abrir mão de sua identidade.
Finalmente, uma terceira forma de sociedade. E aqui nós entramos nos domínios da especulação, também conhecida como o pós-moderno. Uma vez que vivemos em sociedades que estão nesse estágio de transição é muito difícil vê-las e nomeá-las claramente, e é muito fácil dramatizar a mudança em excesso. Nós, no entanto, parecemos estar vivendo em sociedades pós-industriais nas quais o estado nação e a "política" estão se tornando menos importantes como condutores da mudança do que forças econômicas globalizadas. Novos padrões de trabalho emergem, os quais privilegiam a criatividade e a individualidade em detrimento da disciplina e da deferência, e pequenos grupos em detrimento das fábricas e da produção em massa. Esses desenvolvimentos começam a quebrar a distinção público/privado, e a obscurecer as fronteiras entre as instituições sociais. Podemos então, falar de um processo de "não-diferenciação".
Existem pelo menos duas conseqüências importantes para a religião, ambas altamente significativas para a participação feminina. Primeiro, o papel de integração social e de legitimação do império ou nação da religião durkheimiana desaparece, e ao invés de trabalhar em nível societal, as religiões trabalham tanto em nível de grupos quanto em nível individual.
Cada vez mais, elas tornam-se religiões – ou espiritualidades – de salvação individual. Assim, alguém poderia imaginar que elas seriam totalmente relegadas ao privado, na verdade, ao domínio do subjetivo. Entretanto, desde que a distinção público/privado está se quebrando, com (por exemplo) "a casa tornando-se o trabalho, e o trabalho tornando-se a casa", isso não necessariamente se segue. Ao contrário , uma segunda conseqüência para a religião deva ser a de jogar um papel "integrador" nas vidas dos indivíduos, ajudando-os a unir partes de suas vidas que de outra maneira pareceriam separadas. Ao mesmo tempo, a religião/espiritualidade está sendo trazida para o domínio público – dentro do local de trabalho, por exemplo, como ferramenta de treinamento de pessoal e desenvolvimento, e como componente de um "negócio" crescentemente importante que é a reflexão ética.
Para as mulheres e a religião, da mesma forma: assim como o privado e o público, as esferas do masculino e do feminino tornam-se indiferenciadas. Desta maneira, por exemplo, as habilidades rotuladas de "femininas" –relacionamento, liderança colaborativa, inteligência emocional multifuncional etc. – vêm a ser valorizadas no domínio público, como o são no privado. Isso, por outro lado, pode levar a uma nova apreciação não somente das mulheres mas dos valores "femininos" da tradição religiosa ocidental. E, nesse processo, novos espaços sociais poderão abrir-se, de maneiras que estão atualmente além de nossa imaginação, mesclando, unificando e indiferenciando masculino e feminino, religioso e secular, privado e público. Mas agora nós realmente estaríamos dentro dos domínios da especulação.
Gostaria de terminar relacionando esta estrutura teórica ao futuro da religião, uma óbvia importância tendo sido dada às mulheres na determinação desse futuro. De uma perspectiva de gênero, é possível não só identificar algumas tendências correntes bastante claras, mas dar integralmente conta de porque deveria ser assim. Então parece que os três tipos de religião estão indo bem pelo mundo:
O futuro da religião, que é também o futuro de mulheres e religião, será certamente interessante.