A ayahuasca é o nome genérico da beberagem produzida a partir de duas espécies nativas da Amazônia: o cipó Banisteriopsis caapi (jagube) e a rubiácea Psychotria viridis (rainha). O seu consumo por não indígenas surge do contato entre seringueiros com os xamãs no auge da exploração da borracha desde fins do século XIX. Os desdobramentos sócio-histórico-culturais ocorridos na região amazônica nas primeiras décadas do século XX propiciaram a “expansão geográfica” da ayahuasca para outros contextos distintos de suas origens. De um modo geral, identificamos 3 contextos no qual a ayahuasca é consumida: (1) entre os povos indígenas da Amazônia Ocidental; (2) por caboclos e seringueiros na Amazônia e por xamãs andinos; (3) e pelas religiões ayahuasqueiras, como o Santo Daime, a União do Vegetal e a Barquinha. A ayahuasca é, culturalmente e farmacologicamente, constituida de forma bastante variada em seus diferentes contextos. Podemos dizer, entretanto, que uma característica comum (pelo menos em seu consumo por não indígenas) é a relativa facilidade e rapidez com a qual as diferentes cosmologias ayahuauasqueiras agregam e assimilam novos elementos culturais.
Os primeiros estudos sobre o uso não-indígena da ayahuasca - também conhecida como daime, vegetal, cipó, oaska, entre outros – iniciam-se no começo da década de 80 e tem-se intensificado desde então. Em 1997 é realizado o I CURA - I Congresso sobre o Uso Ritual da Ayahuasca - com o apoio do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Unicamp. O evento foi um esforço de alguns pesquisadores em sistematizar os estudos sobre as culturas ayahuasqueiras. Como produto desse encontro é publicada, em 2002, a obra O Uso Ritual da Ayahuasca. O historiador Henrique Soares Carneiro, da Universidade de São Paulo, assina a resenha desse trabalho que é uma apresentação ampla sobre os principais estudos acadêmicos sobre os diferentes usos da ayahuasca e de seus efeitos no organismo humano.
Passados mais de 20 anos desde as primeiras pesquisas, percebemos a predominância de estudos antropológicos em relação a outras áreas de conhecimento. A União do Vegetal (UDV) responde pela grande maioria dos trabalhos médico-psiquiátricos e farmacológicos, fato explicado pela própria postura da entidade em relação às autoridades legais. A UDV possui um centro de estudos e convênios com algumas universidades estrangeiras num esforço garantir a legitimação do uso ritualizado da ayahuasca. As pesquisas sobre o Santo Daime, por sua vez, focam em sua quase totalidade um grupo específico, dissidente do grupo original, e que se expandiu para outras regiões e países. A Barquinha e o uso da ayahuasca por populações “caboclas” representam novas áreas de estudo do consumo da beberagem. Entendemos que, no caso da Barquinha, esse fato se dá, em parte, pela concentração dessa tradição à sua região de origem, Rio Branco, Acre. A constituição de reservas extrativistas na floresta amazônica a partir da década de 90, por sua vez, chamou a atenção de pesquisadores para a questão do uso religioso, terapêutico e lúdico da ayahuasca por seringueiros. Os artigos aqui selecionados buscam ilustrar essa diversidade de usos e tradições.
O primeiro artigo, de Alberto Groisman, trata da instalação de igrejas daimistas na Holanda. Alberto Groisman é professor da Universidade Federal de Santa Catarina. É mestre pela mesma instituição e doutor pela University of London, onde pesquisou o Santo Daime na Holanda. Seu artigo Missão e Projeto: motivos e contingências nas trajetórias dos agrupamentos do Santo Daime na Holanda é resultado dessa pesquisa. Em seu artigo, Groisman aborda a bricolage que caracteriza a constituição deste sistema religioso (Santo Daime), assim como o papel das contingências que influenciaram sua trajetória expansionista, e os elementos que demarcam no campo da práxis dos agentes religiosos a distinção entre missão e projeto. O autor analisa o surgimento do primeiro centro daimista holandês a partir de um grupo, já formado e estruturado, de seguidores do guru indiano Osho e promove, a partir de categorias analíticas, uma análise da relação tradição–modernidade no contexto do surgimento de outros centros holandeses. Seu estudo, contudo, extrapola as fronteiras holandesas na medida em que é indicador dos desdobramentos do movimento de expansão daimista na Europa.
O segundo artigo, do pesquisador uruguaio Christian Frenopoulo, da University of Regina, Canadá, aprofunda os estudos sobre o sincretismo ayahuasqueiro no contexto da Barquinha. Frenopoulo aprofunda as pesquisas sobre a representação da cosmologia da Barquinha em seu espaço ritual e suas relações sócio-históricas. Em The Mechanics of Religious Synthesis in the Barquinha Religion, o autor propõe uma discussão sobre a especificidade na religião da Barquinha, a partir de categorias analíticas como território (territory), jurisdição (jurisdiction) e intimidade (intimacy). Para o autor, o território, seja o corpo do médium, seja o espaço ritual e simbólico (congás), é o local para o encontro com a alteridade, e a síntese de diferentes elementos culturais se dá pelo contato dos diversos indivíduos sociais, que contribuirão para os "trabalhos de caridade" do centro com aquilo que cada um tem de melhor para oferecer. Há, no processo de simbolização e síntese desses elementos, uma hierarquização cosmológica e espacial que, não surpreendentemente, segue o padrão hierárquico social. Dessa forma, santos, orixás, encantados, pretos-velhos e demais entidades ocupam, tanto no espaço como na crença dos fiéis, posições e funções definidas.
O terceiro artigo é de autoria de Maria Gabriela Jahnel de Araújo, mestra em Ciências Socias pela Unicamp. Sua pesquisa de campo foi feita na Reserva Extrativista do Alto Juruá, Acre, durante os anos de 1994 e 1995, onde estudou o uso do “cipó” (ayahuasca) pelos seringueiros. Cipó e Imaginário entre seringueiros do Alto Juruá busca reconstruir, a partir de relatos da memórial oral, os usos que os habitantes da região tem feito da ayahuasca desde os anos 60. As práticas e o imaginário em torno do consumo do chá, por sua vez, são ricos em elementos culturais diversos. A autora conclui que as transformações sócio-políticas ocorridas na região se fizeram acompanhar por transformações no universo religioso de seus habitantes.
A antropóloga Beatriz Caiuby Labate é doutoranda em Ciências Sociais pela Unicamp e organizou, juntamente com Wladimyr Sena Araújo, o já citado livro O Uso Ritual da Ayahuasca. Sua dissertação de mestrado, A Reinvenção da Ayahuasca, foca os novos usos da ayahuasca em contextos urbanos originados por ex-participantes do Santo Daime e União do Vegetal. A autora contribui com uma Uma antropologia que floresce fora da academia: Anthony Henman e el cactus Sab Pedrito, produto da entrevista realizada com o antropólogo, e “psiconauta”, inglês Anthony Henman, no início de 2004. O antropólogo é ex-professor da Unicamp e, atualmente, divide seu tempo entre sua residência no Reino Unido e sua casa no Peru, onde pesquisa o cactus alucinógeno San Pedro, outra “planta de poder”, como a ayahuasca. Henman é um especialista no estudo de substâncias psicoativas e um dos pioneiros da discussão sociológica sobre as drogas no Brasil. O pesquisador conta a Labate sobre suas experiências com o alucinógeno San Pedro ou San Pedrito e sobre sua experiência como antropólogo e “psiconauta”, nos levando a uma reflexão sobre as formas com a qual a academia geralmente lida com substâncias modificadoras da consciência e com os grupos que delas se utilizam.
Na seção "Intercâmbio", a Rever apresenta dois artigos: o primeiro, de Rodrigo Wolff Apolloni, mestrando em Ciência da Religião pela PUC-SP, aborda a cultura marcial chinesa a partir de um corte de gênero, buscando compreender a diferença entre as mulheres guerreiras do imaginário chinês e a situação de violência a que as chinesas estão submetidas dentro da sociedade tradicional. O segundo artigo, de William César de Andrade - professor e pesquisador no Programa Memória e Caminhada das CEBs/UCB e membro da CEHILA/BR - trata do debate acerca da forma como o catolicismo conviveu com e participou ativamente da escravidão no Brasil.
Leandro Okamoto da Silva []
Ênio José da Costa Brito