Ao longo de seu pontificado, o papa João Paulo II por diversas vezes pediu perdão por erros cometidos pela Igreja Católica no passado. Este fato é significativo e tem repercussões no modo como a história da Igreja no Brasil deveria ser estudada. Neste artigo aponta-se para o debate historiográfico acerca de como o catolicismo conviveu com a escravidão (e participou ativamente dela); o trabalho se sustenta a partir de três correntes de pensamento: historiadores eclesiásticos que partem de uma compreensão da consciência possível em cada época; historiadores acadêmicos (laicos) que buscam ver a Igreja como uma instituição entre outras; e historiadores da CEHILA, que, desenvolvendo pesquisas próprias e/ou apropriando-se do trabalho de historiadores acadêmicos, buscam realizar uma leitura da história da Igreja centrada nos grupos marginais e em suas lutas de libertação. O artigo aponta para o conflito existente entre essas escolas.
For several times in the course of his pontificate, Paul Pope II had apologized for past mistakes of the Catholic Church. This is not only remarkable in terms of the Church’s actual policy but has also an impact on the study of the History of the Church in Brazil. One of the problems calling attention under this circumstances is the attitude of Catholicism towards (and its active participation in) Slavery. The article characterizes and evaluates three conceptual frameworks for a discussion of the aforementioned issue: The first is typical for historians committed to the Church who are particularly interested in the “Zeitgeist” as the overall background of concrete history. The second is favored by secular academic historians who consider the Church as one institution among others. Thirdly, there are historians associated with CEHILA (Commission for Historical Studies of the Church in Latin America and Caribe) whose studies show a preference for the interpretation of the Church as an agent for outsiders and their struggle for liberation.
"As duas espadas", no entender de Bernardo de Claraval, são o exército de Cristo, entendido por ele como os soldados e os grupos que estavam organizados para as Cruzadas, e a presença espiritual da Igreja como sinal indelével da vitória definitiva sobre as forças do mal. É claro que a maldade, aqui, está associada aos infiéis – os muçulmanos que "ocuparam" a Terra Santa e dificultaram aos cristãos o acesso a lugares sagrados, que eram objeto de profunda devoção. São Bernardo não encontra nenhuma dificuldade em apresentar a tarefa dos cruzados e, de modo específico, a dos Cavaleiros Templários, como uma conquista abençoada, desejada pelo próprio Jesus. Ao recuperarem para os cristãos a Terra Santa, os cruzados estariam, de fato, atuando como missionários e evangelizadores, numa demonstração viva da eficácia redentora do Cristo.
A Igreja Católica e as monarquias européias do século XII e XIII se unem contra o "inimigo comum" e iniciam um longo conúbio que durará, em alguns países, por mais de 500 anos. Desta relação, claramente demarcável pelo conceito de cristandade, resultará um progressivo envolvimento do Estado nas "coisas" da Igreja e, em períodos de papado forte (como o de Gregório VII), da intervenção da Igreja em assuntos dos Estados Nacionais. É claro que se pode afirmar que a cristandade, como tal, emerge a partir do Edito de Milão com Constantino no século IV, mas no medievo há uma tentativa da Igreja em controlar a ‘espada’ dos reis europeus, tendo em vista o combate espiritual (a espada empunhada pela própria Igreja) contra os inimigos da fé. É neste contexto que se consolidam os países ibéricos (Portugal e Espanha) enquanto monarquias cristãs, bem como, estados nacionais expansionistas. Nestes dois países o padroado régio irá passar, ao longo dos séculos XV a XVII, por diversas fases, mas, em geral, pode-se afirmar que será o poder do Estado aquele que se sobreporá às determinações e estruturas eclesiásticas. Nesse sentido, a Igreja Católica torna-se uma "força auxiliar" no processo de expansão marítima e implantação das colônias, legitimando as conquistas por meio do discurso e das propostas missionárias existentes em seu bojo.
Passados pouco mais de 500 anos do início da colonização/evangelização, ainda é difícil abordar este processo de modo tranqüilo ou isento de paixões. As controvérsias entre historiadores cristãos tornaram-se evidentes no modo como se avaliou e foi celebrada a chegada dos europeus/cristãos às terras de "pachamama" – identificadas pelos colonizadores pelo nome de América. Para um grupo de historiadores próximos à política, a teologia e as ações em geral empreendidas pelo atual papado, a ocasião é de júbilo, celebração da vitória da fé no Novo Mundo (ainda que percebam alguns limites e desvios). É a esse grupo que se pode designar, neste texto, como "oficial", pelo entendimento de que sua produção historiográfica encontra na estrutura vaticana a principal forma de divulgação e, por reproduzir uma História fortemente marcada por preocupações eclesiásticas.
Quanto ao outro grupo, formado por historiadores que consideram ser preciso pedir perdão pelos 500 anos de massacres e sofrimentos impostos a indígenas, africanos e seus descendentes, membros e/ou simpatizantes da historiografia produzida pela CEHILA, não há o que comemorar. Pelo contrário, é preciso buscar no passado colonial as "sementes do verbo" que sobreviveram, e/ou que indiquem espaços em que, efetivamente, houve evangelização. Na visão desse grupo, a resistência à opressão é indicativo da presença de sujeitos históricos até então ignorados pela historiografia "oficial". Entende-se aqui, de modo amplo, o que sejam resistências: lutas e organização de quilombos, organização de Irmandades e Confrarias de Negros e alguns aspectos da chamada religiosidade popular.
Não tenho a ilusão de ser um observador (de minha janela) neutro diante dessas duas "correntes" historiográficas e de seus inúmeros embates. De fato, sou membro da CEHILA-BR e partilho da construção histórica empreendida por esse grupo. Uma última observação se faz necessária nesta introdução: tanto os historiadores "oficiais" quanto aqueles da CEHILA estão em diálogo e/ou confronto com os chamados "historiadores profissionais". Isto é, os historiadores que atuam nas universidades brasileiras e que, a princípio, não manifestam nenhuma vinculação eclesiástica. Sua produção historiográfica aparece em citações, alinhamento teórico-metodológico nas duas correntes objeto desta reflexão.
“Tanto que yo no sé cómo habría que lhamarles,
si monjes o soldados. Creo que para hablar con propiedad, sería
mejor decir que son las dos cosas, porque saben compaginar la
mansedumbre del monje con la intrepidez del soldado”
(Bernardo de Claraval)
São Bernardo pode ser considerado o maior ideólogo das Cruzadas, sendo seu discurso uma importante ferramenta na justificação da guerra santa aos infiéis e no processo de expansão ocidental no século XII. A História de Portugal é parte do processo de expulsão dos descendentes dos árabes da Península Ibérica, sendo interpretada como uma "reconquista cristã". Afirmar uma Europa cristã era fundamentalmente recusar legitimidade a qualquer alteridade, fosse ela representada por árabes, judeus e, posteriormente, por africanos, indígenas e asiáticos. A cruz, que vestia os cavaleiros e que ia à frente da tropa enquanto estandarte, era o principal símbolo de uma "causa": assegurar a evangelização entendida como expansão da fé. Nas guerras santas conduzidas pela Igreja Católica nos séculos XII a XVII, a cruz sempre se fez acompanhar pela espada. São Bernardo, ao escrever um sermão laudatório para os Cavalheiros Templários, situa a atuação desta milícia cristã como uma dupla ação: a) a espada que mata os inimigos da fé; b) a espada que evangeliza por afirmar a soberania de Cristo sobre os demais povos.
Os chamados "descobrimentos" realizados pelos europeus entre o final do século XV e o início do século XVI estão em estreita relação com o processo de expansão marítima e comercial da Península Ibérica (Portugal e Espanha). Numa linguagem atualizada, pode-se afirmar que esse foi um processo de globalização da economia e da cultura européia frente a regiões e povos submetidos à sua lógica. É impossível globalizar sem submeter os povos tornados periféricos, subjugados pelo interesses das metrópoles e de seus grupos dirigentes. Entretanto, globalizar exige, além de um grande aparato militar- portador, inclusive, de tecnologia bélica de ponta -, o permanente controle ideológico sobre os povos dominados. A ideologia dominante é um fator essencial à lógica do sistema e, quanto mais elaborada e inquestionável ela for, mais eficiente será o controle social sobre os grupos divergentes. No expansionismo luso-espanhol, o sustentáculo ideológico utilizado foi o catolicismo, estruturado num contexto de cristandade. Richard (1978/1982) define cristandade “como uma forma determinada de relação entre a Igreja e a sociedade civil, relação cuja mediação fundamental é o Estado. Em um regime de cristandade, a Igreja procura assegurar sua presença e expandir seu poder na sociedade civil, utilizando antes de tudo a mediação do Estado”. (Richard, 1978/1982, p. 9)
Para Azzi (1987), o processo de expansão portuguesa - visto como uma ação inerente ao contexto de cristandade - é complexo devido às diversas fidelidades em jogo, tendo em vista os interesses políticos, econômicos e religiosos envolvidos. Contudo, “O impulso mais forte que arrastou os portugueses às terras africanas foi, sem dúvida, o comércio de escravos...a descoberta do ouro, logo em seguida, tornou-se outro grande estímulo...a vida portuguesa é dominada desde o final do século XV pelo comércio do ouro e dos escravos e, finalmente, pelo monopólio das especiarias do Oriente.” (Azzi, 1987, p. 17)
Portugal, após um longo e doloroso processo de conquista de seu território, buscará se expandir por meio de empreendimentos marítimos, inicialmente descendo pelo norte da África (Ceuta em 1415). Nessa empreitada estão juntos o interesse comercial, a perspectiva militar de expansão do território português e a concepção de que Portugal é uma nova Roma. Evangelizar através das conquistas não é uma idéia nova - de fato, ela já aparece na reforma gregoriana e numa de suas expressões mais significativas: as Cruzadas.
A partir da reforma gregoriana vários símbolos e expressões típicas do poder secular serão incorporados à tradição e liturgia cristãs. Del Roio (1997) aponta algumas implicações desse processo: “No terreno da propaganda e dos símbolos, o embate implicou também mudanças significativas. Emblemas imperiais, a cruz, o globo terrestre e a espada representavam o cristianismo, a universalidade e a força...É desse período o uso da tiara pelos papas, representando três coroas...em certo momento da Idade Média significou a terra, Igreja militante; o paraíso, Igreja triunfante; o purgatório, Igreja penitente...era sobretudo o emblema da superioridade da Igreja sobre todas as demais coroas existentes na terra.” (Del Roio, 1997, p. 51)
No contexto da fidelidade aos interesses religiosos, torna-se básico explicitar a longa duração da cristandade como forma de relação entre os poderes secular e religioso. Gomes (1997) situa a origem da cristandade no tempo de Constantino e afirma sua continuidade até as revoluções burguesas e liberais. Para esse autor, apesar da existência de variações na forma como as relações entre a Igreja e o Estado ocorriam, efetivamente eram cristandades constantinianas. Os efeitos dessa união de interesses serão desastrosos para indígenas e africanos – considerando-se, aqui, a História brasileira. É enquanto cristandade que se deve refletir a "descoberta” e colonização do Brasil, processo levado à frente por um Estado moderno devidamente avalizado pela Igreja. Segundo Gomes: “O regime de união da Igreja e do Estado ainda era a solução ideal tanto para a Igreja, na luta pela sua unidade e identidade nos tempos modernos, quanto para o Estado, na sua afirmação como Estado soberano e absolutista. A cristandade tridentina mostrou-se instrumento indispensável para a consolidação da Contra-reforma, de um lado, e do antigo regime, do outro.” (Gomes, 1997, p.59)
Sem dúvida os conquistadores/colonizadores/evangelizadores refletem um contexto em que religião e vida social-política não estão separados, mas, muito pelo contrário, o expansionismo ocidental instrumentaliza-se de uma ideologia religiosa fundamentada no princípio de guerra santa – Cruzadas – contra os infiéis, os "bárbaros" e todo e qualquer opositor ao cristianismo na forma como a Igreja Católica o entendia nos séculos XV e XVI. Como já mencionamos, a justificativa teológica para esse processo expansionista/evangelizador deita raízes no pensamento de Bernardo de Clairvaux, mas só é possível na medida em que a Reforma Gregoriana situa a Igreja Católica como o centro de poder religioso e secular, ao qual todos os reis – e seus Estados - devem obediência. É claro que no decorrer do século XV e XVI as relações entre o papado e os nascentes Estados nacionais estará marcada por profundas tensões. Na França, para que o Estado pudesse se afirmar, foi necessário ao rei desmontar a Ordem dos Templários e estatizar seu patrimônio. Contudo, a condição de cristandade se manteve e a lógica das duas espadas – enunciada por Bernardo de Clairvaux - continuava atual: ”Hay que desenvainar la espada material y espiritual de los fieles contra los enemigos soliviantados, para derribar todo torreón que se levante contra el conocimiento de Dios, que es la fe cristiana, no sea que digam las naciones: Dónde está su Dios?” (Bernardo, 1997, p. 505)
Segundo Almeida (2001), o imaginário português estava marcado por imagens, expectativas e experiências religiosas em geral. Respirava-se culturalmente um temor diante das coisas sagradas: “No Portugal dos séculos XV e XVI, as relações místicas e religiosas permeiam o cotidiano. Essas manifestações explicitavam-se através das missas, autos de fé, procissões, execuções e martírios. Deus e o diabo travam uma luta intestina, as potestades celestes disputam o controle das almas.” (p. 237)
Passados 500 anos do início desse processo colonizador/evangelizador, ainda é grande a disputa pelo significado histórico do que ocorreu durante o período colonial – que, no caso brasileiro, se estendeu até o fim do Império -, sendo objeto de acirradas controvérsias a cerca dos benefícios e/ou malefícios trazidos às terras de ‘Pachamama’[1].
O 5º Centenário foi visto e proposto pela hierarquia vaticana como uma ocasião propícia a uma retomada do projeto evangelizador, sendo que o próprio papa João Paulo II cunhou a expressão NOVA EVANGELIZAÇÃO como o horizonte em que a celebração do acontecimento deveria ser visto. Desse modo, procurou-se afirmar uma leitura histórica centrada na consciência possível, isto é, a de que a Igreja agiu como agiu em função da realidade social, cultural, econômica e política em que estava inserida. Suas atitudes frente a escravidão do índio e do negro, a Inquisição e suas vítimas, as acusações de heresias etc., nada disso serve como indicação de que houve contra-testemunho.
Na perspectiva que denomino de oficial, há uma menção esporádica aos "erros", "excessos" e "desvios" cometidos no processo de colonização/evangelização, mas tudo isso permanece de menor monta, quando comparado com o ardor missionário, dedicação e mesmo martírio de cristãos frente à hostilidade e incompreensão tanto de indígenas e negros quanto de parte da população branca colonizadora.
Na abertura da Conferência de Santo Domingo, o papa João Paulo II procurou destacar o que, a seu ver, foi o lado positivo da evangelização. Nesse sentido, ressaltou o papel da Igreja na defesa da vida e na promoção da cultura nativa. Segundo João Paulo II: ”Desde os primeiros passos da evangelização, a Igreja Católica, movida pela fidelidade ao Espírito de Cristo, foi defensora infatigável dos índios, protetora dos valores que havia em suas culturas, promotora de humanidade diante dos abusos dos colonizadores, às vezes sem escrúpulos...Os dados históricos mostram que foi levada a cabo uma válida, fecunda e admirável obra evangelizadora e que, através dela, ganhou de tal modo espaço na América a verdade sobre Deus e sobre o homem que, de fato, ela mesma constitui uma espécie de tribunal de acusação dos responsáveis daqueles abusos.” (João Paulo II, 1992, p. 27 e 28)
O papa menciona "dados históricos" como prova irrefutável de que a evangelização ocorreu efetivamente e que os "abusos" foram prontamente criticados por "toda" a Igreja. Seu discurso é fundamental para os historiadores que afirmam que a Igreja Católica se preocupou com a sorte de indígenas e de negros fazendo o que era "historicamente" possível, atuando nos espaços em que, de algum modo, a "Boa Nova" pudesse ser anunciada. É representativo dessa postura o pensamento Rubert, tendo em vista a escravidão africana: “Já que não estava na sua alçada impedir o tráfico dos escravos africanos, procurou pelo menos suavizar-lhes a sorte e atraí-los à fé católica”. (Rubert, 1981, p. 291)
A Igreja fez o possível! Isto é, procurou impedir a escravidão do indígena, indivíduo encontrado livre e, que, em vários discursos, foi associado ao primeiro ser humano: era Adão antes do pecado original. Mas logo se "apercebeu" de que os indígenas não queriam se tornar cristãos, e o discurso missionário passou a refletir sobre a "bestialidade" dos nativos, de sua impudicícia e da necessidade do cativeiro como uma "pedagogia" divina para reconduzi-los ao bom caminho. Frei Benevate Motolinía constrói biblicamente uma justificativa para a presença "civilizadora" dos espanhóis: “Vieram a esta terra como a outro Egito, não com fome de pão mas de almas...e vieram e viram que morava nela horror espantoso, e cercada de toda miséria e dor, em sujeição ao Faraó, e renovadas as dores com outras mais carnais pragas que as do Egito.” (Reinés, 1992, p. 24)
A morte de Montezuma, bem como a "espantosa" vitória dos espanhóis frente aos indígenas, são vistas como uma confirmação da benção de Deus ao projeto colonizador/missionário. Matar os inimigos da cristandade – e os índios quando resistiam à colonização/evangelização eram vistos como culpados de perseverar em seus erros - era um serviço prestado a Cristo e à sua Igreja. Reinés recupera uma dessas falas: “Se Deus misteriosamente não nos quisesse salvar, era impossível escapar dali; ‘se Deus não quebrasse as asas deles (dos índios); Ele lhes deu tão boa dita vitória...” (idem, p. 25)
Mesmo a utilização do argumento da guerra justa parece legítimo aos olhos desses historiadores oficiais, pois, nos fundamentos da teologia vigente na época, marcada por um profundo desprezo ao corpo e ao próprio mundo – perceptível na oração da Salve Rainha e na Imitação de Cristo -, o principal apelo que norteava a atuação dos missionários era ganhar as almas para Cristo. Quanto à escravidão do negro, tanto no Brasil como nas demais colônias ibéricas houve pouco debate e/ou ações que visassem romper com seu cativeiro. Esse foi, para os historiadores oficiais, um limite típico do período histórico, claramente perceptível no silêncio dos jesuítas (uma ordem geralmente combativa na defesa dos índios). Rubert (1981, p. 290) menciona que mesmo os jesuítas foram pouco críticos em relação aos escravos africanos, chegando a possuí-los em quantidade suficiente para "tocar suas obras".
O máximo a que chegam os historiadores oficiais é o reconhecimento de que a escravidão foi uma violência perpetrada contra índios e negros, tendo em "algumas" circunstâncias o aval da maioria dos prelados e do clero em geral. No que tange ao processo de colonização/evangelização, esses historiadores minimizam os vínculos e os interesses que efetivamente uniram Igreja Católica e Estado, recaindo sobre o segundo a principal responsabilidade por não criar e/ou aplicar a legislação existente tendo em vista conter os "abusos" e os "desvios" cometidos por alguns colonizadores. Porque a Igreja tratou de modo diferenciado a indígenas e africanos? Essa é uma questão que os historiadores "oficiais" situam no campo das relações sociais já dadas, estabelecidas e, portanto, inquestionáveis. Baseando-se em escritos da época, Rubert afirma: “Parecia a todos uma mercadoria lícita! Os escrúpulos porventura existentes quanto à servidão dos índios, desapareciam com a servidão dos pretos...Nem os jesuítas tinham escrúpulos de possuí-los. Nóbrega, escrevendo ao provincial de Portugal, dizia: 'A melhor coisa que se podia dar a este Colégio seria duas dúzias de escravos'. Mais adiante tiveram o consentimento do próprio Geral da Ordem. Não faltou, porém, resistência dentro da própria Ordem no Brasil, quando à liceidade de possuí-los. Triunfou, finalmente, a opinião contrária, porque no Brasil de então não havia, praticamente, outro serviço senão o escravo.” (Rubert, 1981, p. 290/1)
Vainfas – que, enquanto historiador, assume uma postura diametralmente oposta a de Rubert – acusa abertamente a Igreja de afirmar ideologicamente a necessidade de escravizar o negro, para assim, poder salvá-lo de si mesmo.[2] Nesse aspecto, é preciso afirmar que Hoornaert aponta uma impossibilidade histórica entre ser parte do clero e da estrutura eclesiástica da época colonial e, de algum modo, assumir atitudes claramente antiescravagistas com relação ao africano: “Ora, os missionários bem podiam defender os indígenas enquanto estes eram livres, e discutir sobre a ‘liberdade dos índios’, mas quando se tratava de viver no Brasil, concretamente, a escravidão era funcional. A opção não era: ter escravos ou não ter escravos no Brasil, mas sim: ter escravos ou não viver no Brasil, pelo menos não viver dentro do sistema colonial estabelecido no Brasil.” (Hoornaert, 1979, p. 258)
D. Bettencourt, mesmo não sendo historiador, na Revista Pergunte e Responderemos (nº 448/1999) procurou "situar" o debate sobre a Igreja e a escravidão numa perspectiva de longa duração - sua reflexão parte do tempo de Jesus e chega até 1955. Sua posição é de que não se pode "julgar" o passado com os critérios de hoje; assim, tendo em vista que não havia certeza sobre o estatuto de humanidade de índios e negros, os brancos que os escravizaram agiram de boa fé (p. 403). D. Bettencourt também observa que o resgate de condenados à morte por meio da escravidão era uma prática de misericórdia inserida nos limites históricos da época (p. 403). Prosseguindo em sua argumentação, Bettencort observa que santos que foram profundamente preocupados com o humano (como São Paulo, S. Agostinho, S. Francisco de Assis e outro), sequer manifestaram repulsa ou viram a escravidão como algo intrinsecamente mal (p. 404). Sua conclusão está na linha do que temos chamado, neste artigo, de opinião dos historiadores oficiais: “Muitos dos que criticam o passado, detêm sua atenção apenas sobre os traços sombrios ou negativos do mesmo; baseados em considerações unilaterais, condenam as gerações pretéritas. Ora é preciso pôr em relevo a verdade na sua íntegra; esta apresentada, além de elementos sinistros, atitudes nobres dos homens e mulheres do passado.” (Bettencort, 1999, p. 404)
Para os historiadores "oficiais" e para aqueles que, de certo modo, a eles se alinham, um pronunciamento do papa (bula, breves, encíclica) ou mesmo do bispado no Brasil – tal como as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707) - parecem ter efeito de per se. Depois de publicados, é como se efetivamente produzissem resultados no cotidiano de senhores e escravos. Bettencourt (1999) destaca, nesse sentido, a importância da bula Veritas Ispsa, de Paulo III (1537) como um exemplo de intervenção da Igreja em prol dos indígenas e dos negros, tendo em vista seu conteúdo afirmar: “Pelo teor das presentes determinamos e declaramos que os ditos índios e todas as mais gentes que daqui em diante vierem à notícia dos cristãos, ainda que estejam fora da fé cristã, não estão privados, nem devem sê-lo, de sua liberdade, nem do domínio de seus bens, e não devem ser reduzidos à servidão. “ (aped. Bettencourt, 1999, p. 406)
Em sua mensagem aos afro-americanos durante a Conferência de Santo Domingo, João Paulo II reflete esta interpretação acerca da deportação e do que foi a realidade vivida no período colonial (e império no caso brasileiro), isto é: a implantação de uma cultura centrada na escravidão. Refletindo sobre a participação da Igreja nessa cultura, o Santo Padre optou por questionar as ações individuais que propiciaram situações de injustiça e de sofrimento para os escravos: “Estes homens e estas mulheres foram vítimas de um vergonhoso comércio, no qual tomaram parte pessoas batizadas, mas que não viveram a sua fé. Como esquecer os enormes sofrimentos infligidos, com menosprezo dos mais elementares direitos humanos, às populações deportadas do continente africano? Como esquecer as vidas humanas destruídas pela escravidão? Deve ser confessado, com toda a verdade e humildade, este pecado do homem contra o homem.” (João Paulo II, 1992, p. 202)
Na perspectiva dos historiadores que criaram a CEHILA – Comissão de Estudos da História da Igreja Latino-Americana -, as ações empreendidas pela Igreja em parceria com o Estado (no regime de padroado), além do imaginário cruzadista e diabolizador do outro, não eram as únicas possibilidades de vivência do Evangelho. Em seu entendimento, o Evangelho se fez presente na colonização/evangelização muito mais na resistência a esse projeto. Portanto, em sua perspectiva houve na evangelização opressora, de alguma forma, espaços de resistência que indicavam que a Igreja deveria ter adotado uma postura de crítica ao sistema e de proposta alternativa. Assim, a "verdadeira" evangelização pode ser constatada historicamente nas ações dos missionários que lutaram para que índios e negros não fossem vítimas de exploração e morte.
As fontes históricas disponíveis aos historiadores, sejam eles "oficiais" ou da CEHILA, é basicamente a mesma: documentos exarados pela estrutura eclesiástica, relatos diversos e obras literárias dos padres escritores – notadamente dos jesuítas -, atos e políticas desenvolvidos por Portugal através da Mesa de Consciência e do Conselho Ultramarino. Entretanto, é crucial na historiografia elaborada pela CEHILA a opção por uma aproximação com os seguimentos marginalizados da sociedade e "silenciados" na História oficial. Segundo Dussel - prefaciando o tomo 2 da História da Igreja no Brasil: “Entende-se teologicamente a história da Igreja na América Latina como a história da instituição sacramental de comunhão, de missão, de conversão como palavra profética que julga e salva, como Igreja dos pobres. Embora todos esses aspectos sejam expressões vivas de um só corpo, parece-nos mais conveniente, por razões evangélicas, históricas e exigências atuais, dar ao pobre atenção especial em nosso enfoque histórico. Pois na América Latina a Igreja sempre se encontrou diante da tarefa de evangelizar os pobres (o índio, o negro, o mestiço, o crioulo, os operários, os trabalhadores rurais e o povo).” (1977, p. 5)
O pobre em suas múltiplas faces latino-americanas, conforme sinalizado por Dussel, é o sujeito que a CEHILA busca historiar, resgatar do silêncio da "História oficial" resistências políticas, econômicas, culturais e religiosas. Na década de 80 do séc. XX houve muito debate sobre a figura sociológica do pobre, sobre a relação entre o pobre e o proletariado (do pensamento marxista). Da mesma forma, a própria CEHILA buscou refinar seu método de trabalho, aproximando-se das correntes de teoria da história críticas ao Positivismo. Do encontro entre academia e militância social é que se alimenta a historiografia da CEHILA, sendo que autores como José Oscar Beozzo, Eduardo Hoortnaert, Riolando Azzi e Enrique Dussel (geração fundadora) encontram atualmente boa receptividade no meio universitário. Contraditoriamente, por assumirem uma atitude crítica à instituição – a Igreja Católica -, esses autores sofrem internamente um prolongado processo de desgaste, em razão da "neo-romanização" em curso.
No que se refere à colonização/evangelização, Hoornaert, partindo de um dos sermões do padre Antônio Vieira, descreve a perspectiva dominante à época: “expôs em numerosos escritos sua visão acerca da colonização do Brasil, segundo a qual esta colonização está inserida numa ordem global emanada de Deus no sentido de permitir a evangelização do mundo inteiro. Sem colonização torna-se impossível a evangelização universal, assevera Vieira. Desta forma a descoberta e conquista das Índias foi julgada entrar nos planos de Deus, e foi mesmo considerada o maior acontecimento da história da salvação após a criação do mundo e a encarnação de Jesus Cristo”. (Hoornaert, 1982/1997, p. 65)
Enquanto historiador, Hoornaert não se restringe a indicar o pensamento de Vieira; de fato,, ele busca estabelecer nexos entre colonizar e evangelizar. A Igreja, enquanto instituição, não visualizava outro modo de ampliar a fé católica e, nesse sentido, compactuava com o processo de conquista e com boa parte de suas conseqüências sobre os povos submetidos. Muito rapidamente se desfez a idéia de que havia encontrado o paraíso e as relações com os nativos assumiram sua real feição de dominação e sujeição, inclusive religiosa. Segundo Azzi: “À medida, porém, que o nativo procurou resistir à invasão e usurpação de suas terras por parte dos colonizadores, começou a ser visto como inimigo da fé, impedindo a expansão do reino de Deus. Como adversário da cristandade, devia ser combatido e morto”.(Azzi, p. 189)
Morrer resistindo ou se converter e tornar escravo. Não existiam espaços de diálogo e/ou encontro com o diferente, o que, na prática, resultou em genocídio indígena e, posteriormente, africano. Para os historiadores da CEHILA, essas duas "opções fundamentais" não esgotam o que de fato se produziu na realidade brasileira, pois, mesmo a conversão, veio a ser, através do sincretismo, um espaço de sobrevivência de elementos significativos da cultura e do imaginário indígena e africano. Notadamente os africanos, devido a sua presença em quase todos os ambientes da sociedade colonial, terão maior êxito nessa forma de resistir.
Paulo Suess – missionário e membro histórico da CEHILA – agrega um novo elemento ao negar legitimidade ao termo Descobrimento, geralmente utilizado para descrever a "surpresa" com que os europeus se viram diante do "Novo Mundo". Para ele, isso é de uma forma de mascarar o discurso do opressor, que, na prática buscava invisibilizar os povos e nações que já ocupavam milenarmente estas terras. Suess indica como a imposição cultural dos conquistadores se fez acompanhar do cerceamento da História aqui vivida: “A vida de cada povo está abraçada e guiada por esses dois braços: pela cultura e pela história. Pela cultura e pela história cada povo constrói sua identidade e sua alteridade...Antes da chegada de Colombo ninguém dos 90 milhões de habitantes deste continente era chamado de ‘índio’. Foi Colombo que encobriu com este nome genérico os habitantes das Américas.” (Suess, 1992, p. 61)
Em seu esforço de construir uma Teologia da Libertação latino-americana, Gutierrez também buscou na História colonial um sinal de que houve recusa ao projeto colonizador/evangelizador promovido pelos países ibéricos. Ele dirige seu olhar para Bartolomeu de Las Casas, um missionário que inicialmente estava integrado ao sistema das encomiendas e ao cotidiano da escravidão indígena , mas que, em determinado momento, se dá conta do absurdo, da contradição estrutural entre colonização e evangelização. Gutierrez afirma: “Bartolomeu está plenamente consciente de que a pobreza presente do índio é resultado de uma exploração sem nome. Os naturais das Índias, 'oprimidos com sumos trabalhos e tiranias (mais do que pode crer), carregam em seus fracos ombros, contra todo o direito divino e natural, um jugo pesadíssimo e uma carga incomparável...(em outro texto)...tudo quanto de ouro e prata, pérolas e outras riquezas que foram para a Espanha, tudo foi roubado'”. (Gutierrez, 1993 p,157)
Para os historiadores da CEHILA, Bartolomeu de Las Casas não foi uma figura solitária a lutar contra o sistema. Outros missionários também criticaram duramente a aliança entre Igreja e Estado no que tange aos sacrifícios impostos aos índios. Dentre eles freqüentemente são mencionados Antonio de Montesinos, Juan de Zumárraga, Vasco de Quiroga, Juan Del Valle e, dentro de alguns limites, José de Anchieta, Manuel da Nóbrega e Antônio Vieira. Sobre o Padre José de Anchieta, Suess traça um perfil que ultrapassa a singularidade do indivíduo imbuído de uma missão e relaciona sua compreensão da cultura indígena como um grave impedimento ao diálogo cultural: ”Para Anchieta, o mundo indígena, que ele encontra, é o mundo da ‘desgraça’. O Deus-Tupã com seu clã de anjos, santos e missionários combate nos autos anchietanos o clã do Demônio-Anhángua com seus espíritos malignos, pajés/feiticeiros e índios não-convertidos. É preciso ‘vencer o diabo, mundo e carne, que continuamente contra nós pelejam e trabalham por nos vencer’, exorta o missionário no ‘Sermão da Conversão de S. Paulo.” (Suess, 1997, P. 520)
É gritante a divergência entre historiadores "oficiais" e os que pensam a história na perspectiva da CEHILA. Por mais que existissem indígenas que "amaram" e que "confiaram" em Anchieta, isto não pode servir como argumento para se ocultar a perspectiva de evangelização que o motivava. No citado artigo, Suess afirma que havia uma motivação evangelizadora em Anchieta, mas que ele não estava preparados para o reconhecimento da alteridade. Essa crítica pode ser estendida a Bartolomeu de Las Casas e a outros missionários engajados na defesa da causa indígena mas completamente omissos no que se refere à escravidão do negro.
Hoornaert aponta de modo explicito a relação existente entre estruturas de Igreja e estruturas do Estado português enquanto participantes do empreendimento escravagista. Para este autor a Igreja está diretamente envolvida: ela legitima a escravidão através do modo como concebe o batismo dos africanos e fecha os olhos às atrocidades cometidas desde o apresamento até a chegada desses homens e mulheres à América. Hoornaert afirma categoricamente: “O sistema sacramental funcionava também como regulador e legitimador da situação de escravidão: antes de embarcar para o Brasil os negros comprados tinham que ser batizados logo depois do pagamento do quinto real. O batismo fazia parte das formalidades do tráfico negreiro. Quanto ao casamento, não se hesitou em desfazer os laços conjugais contraídos na África e de condenar os escravos a uma vida de solteiro no Brasil. O papa Gregório XIII decretou, em 1585, que os casamentos africanos podiam ser desfeitos...legitimando desta forma o tráfico negreiro...o escravo não encontrou na Igreja nem apoio nem defesa. Ele teve que lutar só. Houve casos isolados de tomada de posição, mas o sistema todo estava baseado na escravidão e não podia solapar os fundamentos de seu próprio estabelecimento.” (Hoornaert, 1982/1997, p. 80)
Vainfas aprofunda questionamentos que já haviam sido levantados pela CEHILA e, ao propor uma interpretação cultural da História brasileira no período colonial, tece duras críticas ao modo como os intelectuais da Igreja e os letrados refletiram o significado religioso da escravidão. Após detalhar os argumentos apresentados por Antônio Vieira, Antonil e Jorge Benci, Vainfas conclui que havia um discurso legitimador da escravidão, que, apesar de apresentar divergências no que se refere aos argumentos, em nenhum momento colocava em questão a necessidade de se acabar com esta forma de expropriação do outro. De modo lapidar, ele afirma: “Em primeiro lugar, o predomínio do saber cristão-medieval, ora na versão patrística ora na escolástica: fruto do pecado original, punição, milagre da Virgem, penitência ou salvação da alma, por todas estas razões a escravidão é legítima. Em segundo lugar, a escravidão é o único meio de se criar riquezas no Brasil: as motivações econômicas, modernas, ficam aqui a descoberto. Em terceiro lugar, a escravidão é justa, ou pede sê-lo, desde que sejam lícitas as práticas de apresamento. Por fim, uma unanimidade notável: negros herdeiros de Cam, etíopes eleitos por Deus, pretos bem apresados ou simplesmente mãos e pés do senhor, os escravos legítimos são os africanos.” (Vainfas, 1986,100)
Na perspectiva da CEHILA, ocupam lugar importante os relatos referentes aos quilombos, a participação de negros em revoltas urbanas (como a dos Malês em Salvador), bem como a dinâmica de assimilação/resistência religiosa no contexto das Irmandades e Confrarias (notadamente as relacionadas a Nossa Senhora do Rosário, a São Benedito dos Homens Pretos e à Irmandade da Boa Morte). Os historiadores identificados com a proposta da CEHILA também buscam em algumas das revoltas "nativistas" sinais da resistência dos pobres, tais como a Balaiada, a Cabanagem etc. Coutinho (2003) destaca a criação, na CEHILA, de um grupo de trabalho dedicado a "História popular" da Igreja. Segundo ele: “Talvez esteja aí, na minha ótica, sua grande contribuição” (p. 78). De acordo com esse autor, esse grupo de trabalho voltou-se para a publicação de memória de velhos, encontros de poetas populares, publicações de assuntos/temas históricos em linguagem de cordel, organizou simpósios anuais e divulgou biografias de conhecidos personagens nordestinos, tais como Antonio Conselheiro e o Padre Ibiapina.
É um fato conhecido a estreita relação entre Teologia da Libertação e a própria criação da CEHILA, a organização do CIMI – Conselho Indigenista Missionário/CNBB, a ampliação das CEBs e, num contexto social mais amplo, o enfrentamento com a ditadura militar (1964-1985). Produzir saber histórico, no âmbito da CEHILA, é intelectualmente colocar-se militante na defesa do pobre, daquele que, segundo a historiografia oficial, já não existe e/ou nada tem a acrescentar ao conhecimento já estabelecido. A seu modo, essa construção militante da História é, também, uma forma fecunda de evangelização e, nesse sentido, é possível afirmar que: “Por razões evangélicas devemos assumir a causa e as lutas daqueles que foram espoliados e feitos injustamente pobres. Eles são os privilegiados do Deus da vida, que sempre toma partido por aqueles que gritam por vida e liberdade, como os judeus outrora escravizados no Egito ou exilados na Babilônia. Se o evangelho é boa notícia de uma vida terrenal fraterna e sororal e de uma vida eterna em comunhão com Deus, com os humanos e com toda a Criação, então é primeiramente para os espoliados. Para eles valem as bem-aventuranças e as promessas messiânicas de uma libertação integral!“ (Boff, 1992, p. 46)
Penso ter ficado claro para os leitores que nenhuma das duas posições historiográficas abre mão de seus pressupostos, bem como não acredita na possibilidade de revisar suas conclusões. Por motivos diferentes, historiadores "oficiais" e historiadores da CEHILA acreditam estar elaborando estudos e pesquisas históricas que melhor retratem a História do Brasil colônia. Entretanto, penso que há algumas considerações que podem aclarar mais o debate:
No horizonte da historiografia "oficial":
No horizonte da historiografia da CEHILA:
Efetivamente são divergentes os horizontes em que trabalham as duas correntes historiográficas aqui abordadas, sendo que, na atualidade, ambas continuam a produzir textos, organizar eventos e propor interpretações sobre a atuação da Igreja no Brasil. Porque não se evolui para um entendimento? Penso que a resposta é complexa e que intentá-la ultrapassaria o escopo desta reflexão. Entretanto, não se produz História para se estereotipar determinada leitura do passado. O historiador é sempre alguém situado em seu tempo, em grupos sociais bem definidos, que vive suas opções ideológicas, crenças e afetos de modo que sua interpretação estará sempre marcada por sua singularidade.
No momento em que escrevo há indícios de que o Papa João Paulo II esteja na fase final de seu longo pontificado. Este pontífice ampliou a Doutrina Social da Igreja ao incluir a noção de pecado social, celebrou a queda do "Comunismo Soviético", mas também reconheceu que há enganos no capitalismo (contrariando o que havia dito Leão XIII), percorreu e viu o sofrimento do povo em diversas partes do mundo. Ele também está associado à significativa redução do espaço católico ao diálogo ecumênico, a continuidade e a ampliação do fosso entre a Igreja e as questões mais candentes na área moral, um recrudescimento do clericalismo e do processo de hierarquização na Igreja. Enfim, sua figura desperta sentimentos contraditórios e avaliações profundamente distintas.
O apagar das luzes de seu pontificado repercute de maneiras diversas no âmbito do catolicismo e, de modo particular naquele que vivemos no Brasil, pois, após 25 anos de sistemática intervenção vaticana na sagração de bispos, na reorientação teológica dos seminários e no esvaziamento da CNBB, há um certo desencanto nos setores mais organizados e próximos à CEHILA. Interpretar o passado é, sem dúvida, pensar o presente, elaborando perspectivas que dimensionem sentido para os leitores da reflexão; é propor caminhos e alternativas à realidade atual. Assim, retomo aqui um dos momentos mais significativos da história da Igreja na América Latina: a Conferência de Puebla e a mensagem que os bispos aos povos da América Latina: “O cristianismo, que traz consigo a originalidade do amor, nem sempre é praticado na sua integridade mesmo por nós cristãos. É verdade que há muito heroísmo escondido, muita santidade silenciosa, muitos gestos maravilhosos de sacrifício. No entanto, reconhecemos que estamos ainda longe de vivermos tudo aquilo que pregamos. Por todas as nossas falhas e limitações, pedimos perdão, também nós pastores, a Deus e a nossos irmãos na fé e na humanidade.” (Puebla, 1979, p. 8)
A atitude dos bispos latinoamericanos precede historicamente os esforços de reconciliação acenados por João Paulo II e estava em sintonia com a pastoral desenvolvida no Brasil e em outros países, era representativa do esforço de aproximação da Igreja com os movimentos sociais, com as camadas marginalizadas e praticamente silenciadas por quase 500 anos. No pedido de perdão dos bispos havia um desejo de aproximação pacífica e co-responsável com as demais igrejas cristãs, com as expressões religiosas populares e com todos os grupos que propunham uma sociedade melhor. Me pergunto: que horizonte histórico efetivamente se descortina na fala do atual papa?
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[*] Professor e pesquisador no Programa Memória e Caminhada das CEBs/UCB e membro da CEHILA/Br.
[1] Um dos nomes dados ao continente por povos indígenas. Dom Pedro Casaldáliga também usa com freqüência o termo “pátria grande”, tendo em vista a perspectiva de uma identidade latino-americana.
[2] A dissertação de mestrado de Vainfas (indicada na bibliografia final) é inteiramente dedicada a mostrar como os padres escritores – que ele entende serem os intelectuais da época colonial -, por caminhos teológicos diferenciados e/ou por aceitação explícita do próprio "sistema colonial", afirmaram a necessidade inquestionável da escravidão africana.
[3] Essa crítica está mencionada em Coutinho, S. R. (2003). Para uma História da Igreja no Brasil: os 30 anos da CEHILA e sua contribuição historiográfica, in Siepierski, Paulo D. & Gil, Benedito M. (org). Religião no Brasil – enfoques, dinâmicas e abordagens. São Paulo: Paulinas, p. 86. O texto de Coutinho também apresenta um bom levantamento do debate interno à CEHILA quanto às metodologias e o rigor acadêmico.